sexta-feira, 30 de julho de 2010

Do cânone ao caos

Ainda não vi Incepcion. Nem sei mesmo se o irei ver. Mais do que as suas imagens deixo-me fascinar pela sazonal onda de críticas, opiniões, indignações vãs. Ao apanhar essa vaga o que me pergunto é: se não vi o filme, se apenas terei lido sobre ele um ou dois textos na diagonal, porque é que eu tenho opinião sobre o filme de Christopher Nolan? Porque é que, apesar de nunca ter visto, admito, sequer um trailer, sei claramente o que não gosto nele, o que é “atacável” e, claro está, os seus pontos fortes. Será por não gostar ou ser fã de Christopher Nolan? Da sua obra, apenas vi três filmes: Memento e Insomnia de que gostei e The Prestige de que não gostei por aí além. Esta estatística pelos vistos faz de mim um apreciador do cineasta de origem britânica. Ora, se eu sou “fã” de Christopher Nolan, se gostei da maioria dos seus filmes, porque razão é que não tendo visto Incepcion, eu sei, (atenção, não é acho, é sei) que não vou gostar?


Não sei propriamente a resposta. Mas há em algo do que é hoje a prática de discussão do cinema - que começa muitas vezes em toda a blogosfera e demais plataformas digitais, meses, senão anos, antes dos filmes estrearem - uma pista de reflexão. A nova crítica cinematográfica tem sido um tema muito discutido sobretudo do ponto de vista dos lugares de legitimação. Os antigos, vêem-na como posição de total descrédito, os novos vêem-na como realidade que nem vale a pena discutir muito. É o que o há, com ou sem estatuto, em todo o esplendor do seu acesso à informação e, mais importante ainda, à opinião. A “nova crítica”, longe de ser o inferno como alguns o vêem, (ver o artigo de Paul Brunnick na Film Comment) ou o céu (ver este post do excepcional blog girish), o certo é que produz importantes transformações na forma de pensar as imagens e seu processo de integração na cultura contemporânea.


Das inúmeras perspectivas saliento duas que me parecem que podem ajudar a compreender o “dilema” Incepcion, multiplicável cada vez mais por inúmeras outras obras.

Do ponto de vista espacial, a abolição de fronteiras analógicas com a internet, permitiu, analogamente à explosão dos processos digitais no cinema, a multiplicação de espaços de opinião. Mais pessoas podem falar, pensar, escrever sobre cinema, sendo que já não existe um critério de legitimidade antes dado pelas publicações em papel. Agora, há por aí “raparigas do Ohio” a escrever sobre cinema mas é necessário encontrá-las. Não há, pois, uma diminuição da qualidade do que se pensa nem, ao invés, um aumento exponencial da mesma. Há apenas uma maior diluição e consequente necessidade de filtro. Para cada “rapariga de Ohio”, há sim 10 adolescentes de boné para quem o mudo ou o preto e branco no cinema são uma bizarria. Sabemos que dá trabalho filtrar. Ainda assim, parece-me que o reverso, a "mentalidadezinha" da escassez, era sobretudo comodista. Aliás, antes não significa que alguém tenha feito essa triagem. Como se refere no artigo de Brunnick, muitas vezes os lugares de proeminência crítica foram conseguidos por circunstâncias próximas do acaso. E isto leva-nos finalmente à referida questão da ordem da sociologia do espectador e seu “consenso tomateiro” adiantada por Luís Miguel Oliveira na sua critica a Incepcion. Este consenso explica-se, em meu entender, numa lógica de marketing (uma face visível é a aproximação a Matrix, ou a colocação do filme num imaginário perto da BD) que, para além de compreender o seu público-alvo, compreende precisamente a lógica de funcionamento dessa nova crítica cinematográfica. Se adiantámos que será necessário que se produzam filtros para separar o trigo do jóio de quem pode ou deve construir um discurso legitimador sobre as nossas imagens, pensamos: mas não será que o cânone instituído sobre a qualidade e valores maiores da sétima arte, está, como uma dúzia de outros cânones, a perder importância? Ou antes, a mudar de importância? Não é ele, cada vez mais um manifesto de impotência, um último reduto antes do caos? Uma bóia de segurança ao qual nos podemos agarrar? A questão é que, para estes adolescentes de boné, estes que me perdoem, a incorporação do cânone, em tudo o mais do que não seja mero conhecimento antropológico, é um movimento de estranhamento. E para mais, já não legitimador de arte nenhuma, e cada vez menos dos discursos que sobre esta se produzem.



A segunda questão têm a ver com o tempo.
A nova crítica produz também, em meu entender, uma modificação temporal na forma de discutir cinema. E aqui voltamos à questão inicial . Eu nunca vi Incepcion e, no entanto, não gosto dele porque sei que nele estão coisas com as quais não concordo, e que, de acordo com os meus critérios de qualidade do que deve ser um bom filme, ele a isso não corresponderá. Posso estar enganado? Sim posso. Mas não é provável. Mas então, com que instrumentos me dotou essa “nova crítica” que me permite fazer o mais injusto de todos os juízos: falar mal de uma coisa que não conheço? A. O. Scott num artigo sobre o filme no New York Times fala desta questão, desta onda sazonal de indignações que a propósito de certas obras nascem, muitos antes sequer destas verem a luz do dia. Como se só a ideia de um filme assim, representasse uma visão qualquer do que deve ser o mundo e neste, por extensão, as suas imagens e as suas histórias. Neste caso, haverá uma batalha ideológica entre viver analógico e viver digital? Entre uma forma que entretem uns e aborrece outros? Entre uma nova e uma velha crítica? Entre um cânone e um caos?


Seja como for há temporalmente uma aceleração na forma como as pessoas recebem os seus filmes e depois se manifestam. E ainda, diz Scott, numa inversão na forma de julgar o objecto artístico. Será possível que um filme seja uma obra-prima antes de ser visto, incorporado, analisado?

“What is odd about these questions, which shrewdly invite a second viewing, is that they seem to come at the end of the argument about “Inception” rather than at the beginning. Film culture on the Internet does not only speed up the story of a movie’s absorption of a movie into the cultural bloodstream but also reverses the sequence. Maybe my memory is fuzzy, or maybe I’m dreaming, but I think it used to be that “masterpiece” was the last word, the end of the discussion, rather than the starting point.

But in this case we end up with where we should have started, wondering what the movie is about, what it means, puzzling over symbols and plot points. It’s almost as if we’re all in a movie that’s running backward, like “Memento.” Which was totally overrated. Unless it was a masterpiece. I’m going to have to see it again”(...).

É provavelmente esta aceleração e inversão que fazem com que não goste de Incepcion sem nunca o ter visto . Ou talvez por ser representante de uma cultura “lenta". Ou talvez por gostar de bom cinema. Não sei.

8 comentários:

  1. Compreendo mas não concordo muito com isso. Eu não posso falar mal ou bem de algo que nunca vi (e este algo pode ser um filme, pode ser um livro ou uma música ou um quadro...). Também desconfio que vou detestar o Inception, aliás, já o detesto agora com toda a onda de grande filme que se gerou por aí fora. Mas ainda não o vi e, consequentemente, não posso dizer que é uma merda (que é o que me apetece dizer). Percebes? Falando do Oliveira e da sua crítica, lembrei-me da do Mourinha e duma "bacourada" que o homem disse e que agora ando tudo p'raí a falar, a do "blockbuster" de autor. Ora, não podia ser mais ridículo. Como é que um blockbuster que se predispõe a ser cinema fácil, mainstream extremo, pirotecnia, pode ser de autor? Só o Mourinha e os pseudo-cinéfilos que votam no imdb é que sabem.

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  2. Acho muito interessante o que escreves. Quero reler com mais atenção, porque o seu conteúdo vai muito além do filme "Inception".

    Agora, quanto ao "Inception", que o fundador do IMDB considerou "o filme da década", ainda não vi, mas irei vê-lo brevemente. O trailer pareceu-me muito promissor: poderá ser, de facto, um "blockbuster de autor", como "Alice in Wonderland" obviamente não era (e aí Luís Miguel Oliveira enganou-se ou quis enganar-se, na minha opinião). E, tal como tu, não sou grande fã de Nolan - sobretudo dos seus horrorosos Batman.

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  3. Eu compreendo o que queres dizer, mas eu próprio acabei por ir ver o filme. Como blockbuster claro que está uma coisa fenomenal, mas agora se é cinema de autor aí já não concordo.
    O orçamento deste filme é de 200 milhões, e o mal disto tudo é que estes filmes estão a levantar demasiado a fasquia para os espectadores, e daqui a algum tempo já ninguém quer saber de ver cinema de autor, a não ser na internet.
    Se pensares ver o filme, vê-o descontraídamente, e vais ver que até são duas horas bem passadas.

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  4. Carlos, Álvaro, Luís: sobre o "cânone" na idade do caos digital, sobre a "autoridade" do crítico, do historiador ou do arquivista, leiam este artigo que saiu na Rouge há coisa de dois anos. Vale bem a pena.

    http://www.rouge.com.au/12/hediger.html

    Abraços

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  5. Álvaro: eu não falo do filme em concreto pois não o vi; agora, posso falar do que ele representa, com maior ou menor flutuação.

    Luís M. : Inception pode ser um blockbuster de autor, pode ser um blockbuster sem autor e mais, pode Nolan ser um autor… sem talento? A liberdade autoral só por si não chega. Aliás, o cinema europeu está repleto de “autores” sem talento.

    Luís: obrigado pela sugestão. Vou ler brevemente.

    É engraçado esta ideia do “blockbuster de autor”. É uma manobra inteligente por parte dos estúdios mas isto já se está à espera. Estes termos que dotam estes filmes de um pretensiosismo há partida (nisto concordo com o L.M.O. a 100% cento) tentam fazer aquilo que fazia a “política de autores”, mas ao inverso. Esta pegou numa data de cineastas “populares” e valorizou-a sobretudo pelo que fizeram no passado. Aqui, estas tentativas de colocar certos autores que trabalham em sistemas mainstream e dotá-los de uma aura autoral, pretende-se que tenham efeito imediato. E por isso essa valorização autoral surge, a meu ver, precipitada, pois está demasiado próxima de nós, e os filmes, esses, não foram suficientemente integrado pela realidade histórica a que pertencem. E por isso, chamar Chris Nolan de autor é injusto. Não porque não o possa realmente ser, mas porque no presente esse cunho é vazio, significa algo profundamente indeterminável.

    Abraços e obrigado por participarem da discussão.

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  6. A Verdade é que criticamos ou falamos do filme/realizador pelo que o filme nos disse ou nao.
    Um filme é sempre uma perspectiva emocional intima. Se o filme nos diz algo , adoramos. Se nao nos diz nada, detestamos.
    A critica no fundo é sempre Pessoal, que muitas vezes encontra eco nos pontos de vista de outros, que outras vezes antagoniza a visao de outro, e pronto........

    Quanto a Nolan no geral tenho gostado dos filmes dele. Mas isso sou eu

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  7. Por curiosidade e por seguir o realizador, espero ver este filme em breve e confirmar se é tão grandioso quanto os críticos afirmam. Veremos!

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  8. Inception é um filme inteligente (coisa rara hoje em dia), é grandioso e é seguramente um blockbuster de autor, da mesma forma que Die Hard ou Predator também o foram nos anos 80 pela mão de John McTiernan.
    Inception não só é inteligente como sim, coloca a fasquia muito lá em cima. Só assim pode o Cinema, Arte e Indústria popular sobreviver. E é óbvio que quem não conseguir vislumbrar a coerência estética que faz com que este seja um dos melhores filmes do ano então precisa de tratar o seu anti-americanismo primário pela via mais benigna que consiste em aperceber-se que o autor é britânico... se isso não resultar pode sempre rasgar o seu cartão do PC/BE e deixar de lado a greve de banho.

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