segunda-feira, 24 de agosto de 2020

A família

 Costuma dizer-se que o cinema e as suas personagens são a família de substituição dos cinéfilos. Não venho discordar, apenas acrescentar. Acordei a pensar nos amigos que ao longo dos anos fiz por causa do cinema. Nessas pessoas que estão perto, muitas vezes fisicamente longe, e que vejo sem ver praticamente todos os dias. Uma imagem, uma reflexão, um pedaço de insight ou memorabilia que faz unir, discutir, abrir o território do pensamento e do sonho. Pensei nisto esta manhã pois tentei imaginar a minha vida sem estas pessoas. Não consegui. Para um cinéfilo, os outros cinéfilos com quem partilha o seu olhar são a sua família. Não uma de substituição, mas uma que acrescenta e invade aquela com que nasceu. Mesmo quando discordamos muito, sinto que seguimos sempre no mesmo barco. Levados pela mesma onda de crença num cinema que transforma, que levanta do chão. Sinto que estamos juntos e que não há solidão, nem distanciamento social (ou lugar-sim-lugar-não numa sala de cinema) que abale isso. Aos membros da minha família do cinema o meu amor, a minha dedicação.


sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Tchekhov e a ilusão

 


Abusador e sem muita relevância a tarefa de procurar uma só palavra que seja o fio que lace as quatro peças mais conhecidas de Anton Tchekhov, "A Gaivota" (1896), "Tio Vânia" (1899-1900), "As Três Irmãs" (1901) e "O Ginjal" (1904). Vem-me à cabeça a palavra ilusão (perdida) - são duas palavras, afinal - e com elas os ideais da escrita e da arte de Tréplev desfeitos a tiro; a juventude desaproveitada, a vida não vivida do tio Vânia; as três irmãs iludidas sobre a vida fora da sua propriedade, na grande Moscovo e no amor verdadeiro; e, finalmente, Andréevna, iludida sobre a manutenção de um passado ligado a uma juventude e ao ginjal. Também à manutenção de uma ilusão de classe que deixará de o ser, antes que venham os veraneantes e os comerciantes cortar as árvores, desfazer a mística do verdadeiro ennui. "As Três Irmãs" e "O Ginjal" funcionam como uma espécie de inverso, parece-me, sendo que na primeiro as personagens querem sair do espaço rural e na segunda querem a todo o custo ficar. Curioso que entre o partir e o ficar, a comédia destas peças tem também a ver com a bipolaridade do tédio: ora maravilhando ora angustiando sobre o presente insatisfeito, o tanto que não se conseguiu, ou o tanto que já não volta. Não é por acaso que quase todas as peças tem um momento de elogio do trabalho, por contraposição a uma devassidão, a uma mediania, a uma pobreza de espírito na Rússia da época. Em Tchekhov há sempre um idealista, que verbaliza um futuro melhor, liberto destes tédios rurais, mas ele, como os demais, também acaba meio perdido ou, pelo menos, a caminho de parte incerta. E de galochas rotas! Mas livre! Com ironia, entenda-se... Resta saber se esta queda da ilusão é para o autor russo uma forma de pessimismo, ou pura e simplesmente, uma outra forma de encenar o envelhecimento.