quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Pousa na careca


pousa na careca, refaz-te da viagem, meu pequeno, o cata vento traz o aroma sudorífero, nunca quiseste ser um insecto da costa da caparica, ainda assim, tens parentes com lancheira, o mais novo está verde-varejeira de cansaço, há larvas a ganhar mais do dobro, a viver em condomínios feitos de cascas de melancia e tu, às vezes, merda nem vê-la. Tira um tempo para repousar as asas, esticar as antenas, pensar naquilo que te faz ser feliz, a leveza dos matadouros, o riacho dos detritos, os bailes do antropoceno. Fecha os olhos, medita e livra-te da confusão das posses, do ruído do pensamento, dessa amálgama de bastardos que dão por nome de mosquitos da fruta. És mais do que isto, o gordo onde estás pousado tem duzentos contos de ouro nos dentes e tu pensas, subitamente, em enriquecer. Mas não és como as formigas, aliás odeias essa espécie maldita e trabalhadora que nunca se senta para não gastar a nalga, que acumula e acumula e acumula e quando dão por ela esticaram as patas ou foram aspirados por uma brisa descuidada e o que é que cá andaram a fazer? Nada. Uma vida de sacrifícios e comunismos. Tu, ao menos, possuis colesterol até à epiderme, empanturras-te com caca dia sim, dia não, voas por aí até às tantas sem dar conta a flores, bichinhos ou a essas pessoas do demónio que nunca mais jazem. E pousas na careca do preconceito, e adornas os ramos de coentros da humanidade, e semáforo te assumes ante o amarelo torrado daquelas que fazem zum, zum e zum, e depois espetam ferrão no sexo oposto. Sente os teus momentos de vómito e de euforia, agasalha as migalhas, gastas a profanar o vício, e o néctar da chuva, aquele que deixa entrar o som e a fumaça, e esbanja-o que nem um paquiderme. Quando estiveres farto de tudo isto, de estátuas de sal, de monumentos de bolo e azeite, da luta com ancestrais, do Darwin e da Cristina Ferreira, voa para longe e manda notícias, se puderes, e talvez uma ou outra dessas remessas de emigrante, ou um salame, um beijo, quem sabe.

domingo, 26 de agosto de 2018

Hexed


Indicado pelo Adrian Martin, disponibilizado pela cinemateca digital que é o blog do Francisco Rocha cheguei a Hexed. Filme divertido, com um perdedor nato (a fazer lembrar o Paul Hackett do After Hours), que aprende à sua custa a ambição de viver numa cópia mais cool e famosa do que o original. Por falar em cópias, por vezes o ambiente não anda longe das paródias da época, estilo Hot Shots! ou The Naked Gun. Claudia Christian é a modelo bonkers ao dispor, tudo é exagerado, muito bem escrito, cartoonesco q.b., bandeiras americanas a envolver falsos suicídios, 15 orgasmos seguidos a chamar pelo papá, fardas verdão vivo, cabelos impossíveis. Alan Spencer, homem de um filme só, amigo de Andy Kaufman e Mel Brooks, assina aqui uma boa comédia para ocupar, sem problemas na consciência, 90 minutos do meu Verão.

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Memórias que desencarceram


Há memórias que corrompem. Mas há também aquelas que nos desencarceram das águas paradas em que atascamos. Era bastante jovem, as cores tinham promessas — vermelho para vermelhíssimo, o escuro "luminava" numa questão de minutos. Era o tempo das portas encerradas. Sentia-me seguro, inerte, construindo fortalezas de quotidiano, engenheiro da solidão e da ilusão. Era o tempo do raio, da enxurrada, do terramoto como forma de fertilizar o presente. Nem um segundo concedido ao silêncio da neve, ao zumbido dos insectos, ou ao amor invisível. Recordo-me hoje de tudo isso: um amor desses, invisível, cores fortes, animais alados com caudas de dragão e escamas. Corações desenhados a encarnado. Palavras como "adoro-te" escrito ao inverso, espelho infantil de quem aprende a registar as palavras. Quase sempre o sol enchia o topo da página, muito grande, raios enormes amarelos, do tamanho da dádiva. Muitas vezes eu aparecia; outras vezes com a namorada da altura. Não me recordo, até hoje, de nenhum que não falasse de amor. Um amor-dinossauro, um amor-meteoro, um amor com braços elásticos, cabelos em pé, e lábios contornados.

Recordo hoje tudo isto que me ofereceu, como se fosse um rei. Na altura a porta estava fechada e recebi todos estes desenhos por debaixo dela. Que nem um correio, um presente que só hoje chega ao seu destino. Crescer também é isto: perceber partes do passado como uma oferta desaproveitada. A minha irmã relembra-se certamente destes desenhos que me enviava por debaixo da porta, destas declarações de amor, da vontade de pertencer a um mundo maior. E eu lembro-me desta bondade garrida, inocente, desapegada, destrancada. Memória esta que, anos depois, me desencarcera, lamparina que me guia na escuridão.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

a mão no arado

Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solidário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã

Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente

Ruy Belo

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Ele confessava-lhe que não sabia escrever, mas que sabia ainda menos não escrever.
Estou há um par de dias com esta frase do resistente austríaco, Jean Améry, na cabeça: "Quem foi torturado passa a ser um torturado". No seu caso específico conta como as forças nazi o penduram no tecto e os seus ombros estalaram, com o próprio peso. Vinte e dois anos depois continuava a andar com os braços descaídos, por lhos terem deslocado. Tortura que vem do latim torquere, torcer já denuncia toda a inevitabilidade. Como uma mola que não volta ao sítio, quem foi torturado passa a sê-lo para sempre. Somos molas que vamos perdendo a elasticidade, uns de forma abrupta, outros de forma infinitamente lenta. «Quem foi torturado passa a ser um torturado». Certas palavras também nos torcem à sua maneira.
Para uma teoria alternativa dos media: as pessoas já não lêem livros: os livros são o tempo da solidão; hoje, os solitários abatem-se a sangue frio nas ruas do "isto é para si", nas avenidas do "eu também estou aqui": as redes sociais converteram o mundo numa grande e interminável tasca à qual se vai alegremente beber um copo e da qual só se sai, grogue e desorientado, a altas horas da noite: a realidade, essa mulher abusada que espera paciente por nós, certamente não merece este nosso alheamento, esta nossa violência quotidiana.

segunda-feira, 20 de agosto de 2018




Indecisos sobre o que ir ver ao cinema, propus o seguinte plano mirabolante à Filipa. Eu poderia escolher um filme à minha vontade, ela teria que o ir ver sem contestar e, caso não gostasse, eu comprometer-me-ia a ser o seu escravo doméstico no dia seguinte. Isto é, preparar em casa tudo o que fosse necessário para recomeçar a rotina de trabalho na semana seguinte, enquanto ela ficaria deitada no sofá, fumando seu charuto, caso lhe apetecesse. E assim foi, meus netinhos, o dia em que o vosso avô trocou o seu corpo por um Pagnol.
Quando "inventaram" o reflexo na água do rio alguém nos deveria ter explicado como tudo funciona. Se o olhar for sem profundidade, se fizer ricochete na água, o espelho apenas nos aguarda, nos revê em queda. É o espelho criativo, inocente, pronto a dar as boas notícias de mais um dia, mesmo que ainda sejam do dia anterior. Já se o olhar tiver profundidade, se for feito de "ângulos agudos" como dizia o Cesário, ele atravessa o espelho. E com ele poderemos ver o olhar compreensivo dos peixes, a ondulação atrevida das algas, o sol a penetrar no mar (o sol só sabe olhar a cortar). Lição: o espelho que nos devolve com toda a grandeza e honestidade são as coisas que nos olham. E isso é fácil de comprovar. Basta ver o sorriso da senhora do café, o gesto gentil ou amarfanhado daqueles que connosco partilham a vida. Neles podemos ver-nos verdadeiramente, um espelho que sempre nos diz quão belos, rudes ou dourados estamos.

domingo, 19 de agosto de 2018

Escrevo uma coisa, ela poisa.

sábado, 18 de agosto de 2018

"A vida da sociedade, esse outro fenómeno natural, pelo contrário, despertou de novo com surpreendente rapidez. A capacidade que as pessoas têm para esquecer o que não querem saber, para não ver o que têm diante dos olhos raras vezes foi tão posta à prova como nesses tempos da Alemanha. Decidiram, primeiro por puro pânico, prosseguir como se nada fosse. O relato de Kluge sobre a destruição de Halberstadt começa com a história de Frau Schader, empregada do cinema, que vai ao trabalho com uma pá de protecção civil logo a seguir aos bombardeamentos, na esperança de «limpar o entulho ainda antes da sessão das duas»". 

in História Natural da Destruição de W.G. Sebald

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Ao prédio onde moro nunca lhe vi os alicerces. Não sei se está preso ao chão, como um desgosto acorrentado a um passado ou se, pelo contrário, vai dando pequenos passos, interiores, na esperança de um dia levantar vela e partir. Também nunca tive a coragem de fazer qualquer pergunta aos seus moradores, meus vizinhos. Somos parasitas de um prédio estaca?; ou hóspedes temporários de um prédio alado? Mas o facto de nunca ter feito estas perguntas não quer dizer que não tenha começado a tirar as minhas próprias conclusões. No andar do rés-do-chão mora um senhor muito sozinho, tão amável, e que precisa de muletas para fazer o trajecto diário desde a porta de sua casa até à carrinha que o leva ao centro dia. No meu andar, na porta da frente, uma senhora muito simpática pergunta-me sempre pelo meu cão; nunca lhe vi uma má cara, e, infelizmente, também já as suas pernas não funcionam tão bem; mas não é por isso que, com a ajuda de duas muletas, não deixa de subir e descer a nossa íngreme rua todos os dias. Finalmente, não posso deixar de referir o meu vizinho do último andar, aquele que sabe bem - até porque é o único com acesso ao telhado - que conversas tem o nosso edifício com o céu, que queixas lhe faz, que juras lhes pede. Esse senhor, não tão afável assim, não precisa de muletas. Mas coxeia muito de uma perna, como se o destino o tivesse tornado pesado, grave e lento. A razão não sei, mas são disparates... sou jovem, que sei eu? Contudo, quando ao subir a rua me começam a doer os pés, as articulações a inchar e o leve entorpecimento a chamar pelos meus membros inferiores, penso logo em tudo isto. E se alguém me perguntasse talvez respondesse que o meu prédio é uma árvore milenar, e os seus moradores, grossas raízes, lentamente a apontar para a terra, ficando... cravando... 

Aqui há apenas uma coisa morta

"Estou deitada na mesma cama em que morreu a minha mãe há muitos anos; no mesmo colchão; sob a mesma manta de lã negra com que nos tapávamos as duas para dormir. Nessa altura eu dormia ao seu lado, num espacinho que ela me arranjava debaixo dos seus braços. 
Creio ainda sentir o ritmo pausado da sua respiração: as palpitações e suspiros com que ela embalava o meu sono... Creio sentir a pena da sua morte...
Mas isto é falso.
Estou aqui, de boca para cima, pensando nesse tempo para esquecer a minha solidão. Porque não estou deitada só por um bocadinho. E nem estou na cama da minha mãe, mas dentro de um caixão negro como o que se usa para enterrar os mortos. Porque estou morta.
Sinto o lugar onde estou e penso...
Penso no tempo em que amadureciam os limões. No vento de Fevereiro que partia o caule dos fetos antes que o abandono os secasse: nos limões maduros que enchiam com o seu aroma o velho pátio.
O vento descia das montanhas nas manhãs de Fevereiro. E as nuvens ficavam lá em cima à espera que o tempo bom as fizesse descer ao vale: entretanto, deixavam vazio o céu azul, deixavam que a luz caísse no jogo do vento descrevendo círculos sobre a terra, revolvendo o pó e batendo nos ramos das laranjeiras.
E os pardais riam; debicavam as folhas que o ar fazia cair e riam; deixavam as suas penas entre as agulhas dos ramos e perseguiam as borboletas e riam. Era esse tempo. 
Em Fevereiro, quando as manhãs se enchiam de vento, de pardais e de luz azul. Lembro-me.
A minha mãe morreu nessa altura.
Eu devia ter gritado; as minhas mãos deveriam ter-se despedaçado, esmagando o seu desespero. Assim terias querido que fosse. Mas porventura não era alegre, essa manhã? Pela porta aberta, o vento entrava, quebrando os ramos da hera. Nas minhas pernas, a penugem começava a crescer entre as veias e as minhas mãos tremiam, mornas, ao tocar os meus seios. Os pardais brincavam. No campo, debulhavam-se as espigas. Lamentei que ela não voltasse a ver o vento a brincar nos jasmins; que fechasse os olhos à luz dos dias. Mas por que razão deveria chorar?
Lembras-te, Justina? Dispuseste as cadeiras ao longo do corredor para que quem viesse vê-la esperasse a sua vez. Ficaram vazias. E a minha mãe, só, no meio dos círios; a sua cara pálida e os seus dentes brancos quase imperceptíveis entre os lábios arroxeados, endurecidos pela morte lívida. As suas pestanas já quietas; quieto já o seu coração. Tu e eu, ali, rezando terços intermináveis sem que ela ouvisse nada, sem que tu e eu ouvíssemos nada, tudo perdido na sonoridade do vento sob a noite. Puseste o seu vestido negro, engomado no colarinho e nos punhos para que as suas mãos parecessem novas, cruzadas sobre o seu peito morto; o seu velho peito amoroso sobre o qual, a um tempo, dormi e que me deu de comer e palpitou para embalar os meus sonhos.
Ninguém veio vê-la. Foi melhor assim. A morte não se partilha como se de um bem se tratasse. Ninguém anda à procura de tristezas. 
Tocaram na aldraba. Tu saíste.
(...)
E as tuas cadeiras ficaram vazias até que fomos enterrá-la, com aqueles homens contratados, suando por causa de um peso alheio, alheios a qualquer pena. Fecharam a sepultura com areia molhada; baixaram lentamente o caixão, com a paciência que caracteriza o seu ofício, sob o ar que lhes refrescava o esforço. Os seus olhos frios, indiferentes. Disseram: «É tanto.» Tu pagaste-lhes, como quem compra uma coisa, desatando o teu lenço molhado de lágrimas, espremido e voltado a espremer e que guardava agora o dinheiro dos funerais...
E quando eles partiram, ajoelhaste-te no lugar onde a sua cara tinha ficado e beijaste a terra e poderias ter aberto um buraco, se eu não te tivesse dito: «Vamos, Justina, ela está noutro sítio, aqui há apenas uma coisa morta.»

Juan Rulfo - «Pedro Páramo» (Tradução Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues e Virgílio Tenreiro Viseu) 

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Pedro Páramo




"Não saíra ainda completamente do deslumbramento quando alguém disse a Carlos Velo que eu era capaz de recitar de cor parágrafos inteiros de Pedro Páramo. A verdade ia mais longe: podia recitar o livro inteiro, de trás para a frente e de frente para trás, sem um erro significativo, e podia dizer em que página da minha edição se encontrava cada episódio e não havia um só traço de carácter de uma personagem que eu não conhecesse a fundo." 
Gabriel García Márquez

segunda-feira, 6 de agosto de 2018