segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

O filho de Saul

O húngaro László Nemes, 39 anos, venceu o prémio especial do Júri e o prémio FIPRESCI no festival de Cannes no ano passado com esta sua primeira longa-metragem. Mais do que a questão de ser uma obra de estreia, o significado político deste prémio prende-se com a inversão de uma estratégia contemporânea com que a história das imagens, e em particular o cinema, vinha retratando o irretratável, figurando o infigurável: o Holocausto. Numa carta aberta de 25 páginas dirigida ao realizador, o teórico de arte Georges Didi-Huberman descreve o filme de Nemes como um “sair do negro”, um trazer para a luz um pedaço da história que habita como um “buraco negro no meio de nós”, como descreve o próprio realizador.


Mas em que consiste de facto este trazer à luz? Falemos então do dispositivo de Saul Fia (O Filho de Saul, 2015), que vindo antes da sua história, parece ser já uma primeira machadada no reino da moral das imagens. Se o tema do Holocausto, depois da abjecção de Rivette e da objecção de Adorno, parece toldar a hipótese da pura e total visibilidade sem mais, consagrando antes o tal reino do negro, do silêncio e do irrepresentável [expressão de Claude Lanzmann, realizador do monumento às vítimas das atrocidades da 2ª Guerra Mundial, Shoah (1985)], o filme de Nemes não teme usar a ficção para se colocar no centro do inferno: uma dia e meio em Outubro de 44, no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau. Em apenas 85 planos-sequência, câmara à mão (e sempre à altura do homem), o filme acompanha o  judeu Saul Ausländer, membro dos Sondercommando (unidades de trabalho compostas por prisioneiros que se dedicavam à limpeza dos campos e sobretudo à eliminação dos cadáveres), numa tentativa desesperada para evitar que o corpo do seu filho seja queimado como os outros, procurando um rabino para um enterro próprio, com um mínimo ritual funerário. A câmara, como companheira de inferno, procura nunca ir além do que Saul vê e ouve. O realizador, fazendo uso de objectivas de 40 mm, reduz o campo do visível ao mínimo para que todo o horror permaneça na constante falta de profundidade de campo.

primeiro plano do filme mostra bem do que será feita esta travessia. No início é o negro, claro, e um espaço com duas árvores. Ouvem-se os passarinhos, mas também alguém que cava na terra e um apito. A câmara está instável, como sempre vai estar, e algumas figuras vêm ao longe caminhando, indistintas, para nós. Saul chega até muito perto da câmara, é esse o limite da visibilidade clara, e vemos pela primeira vez o seu rosto inexpressivo e fechado. “Vamos”, diz-lhe um colega dos Sondercommando, cruz vermelha pintada nas costas do casaco. Este vamos é o mote para um constante percorrer labirintico, de um vivo que já se sente morto e que paradoxalmente vai querer “salvar” outro morto, o seu filho: salvá-lo do pó a que o querem reduzir, do pó que será lançado nas margens do rio Vistula.

A grande virtude do dispositivo montado por Nemes é a compreensão de que existe uma alternativa entre a pura visibilidade do horror (é o problema da esteticização, do show da morte como algo atraente e belo) e o puro silêncio do negro. Essa alternativa é o véu da descrição, função desempenhada pelas imagens desfocadas ao longe, uma falta de profundidade de campo no interior de tão profundos e atrozes campos. Esta solução intermédia, pelos pedaços de visibilidade que Saul Fia nos dá a ver, é esse espaço de sombra que ora nos mostra, ora nos sugere. Por isso, a falta de profundidade de campo é a maior personagem do filme, não só por estabelecer a distância correcta de um ponto de vista crítico e inovador para a experiência dos campos de concentração, mas também por trabalhar a dimensão sensorial da desorientação do seu protagonista. Saul vê coisas em fragmentos, é puxado, encurralado, está sempre a caminho de, sem ter tempo sequer para o desespero e o luto. São o táctil e o sonoro, mais do que o visível, as matérias primas de fabricação do terror.

Se as imagens são turvas e nem Saul nem nós sabemos para onde vamos (nessa indefinição, o rosto “morto” do poeta húngaro Géza Röhrig é chave) o som, pela sua nitidez, trabalha a nossa memória. O bater das portas dos fornos, os gemidos das pessoas a serem gaseadas, o crepitar do fogo, os gritos estridentes das ordens alemãs, os passos (ora apressados, ora desconjuntados), os sussurros de palavras contrabandeadas às escondidas, tudo compõe essa estadia no inferno, essa travessia operática com planos intermináveis, como se Nemes escrevesse com frases curtas (cada plano longo, várias frases curtas, como solavancos) e nunca as terminasse, como se filmasse o medo, a desorientação, com a incredulidade das reticências. Estadia no inferno que é o périplo de Saul, mítico, circular, com a obsessão como motor, inspirado na filha de Édipo na “Antígona” de Sófocles que também tenta enterrar o irmão, ou mesmo na procura de Orfeu que desce aos infernos pela sua Eurídice.

Pela perturbadora experiência que é ver Saul Fia pode dizer-se que um filme destes não se aconselha. Mas muito pior do que aconselhá-lo é não o fazer, pois é importante testemunhar como o cinema inventa mecanismos para suportar os traumas do passado. Se urge ver este filme com o seu trajecto sem heróis, impuro, sujo, sem redenção ou penas spielberguianas, também se diga outra coisa. Se alguma vez o cinema desafiou a ideia da arquitectura das suas salas como espaço de culto religioso — no qual entramos num altar de separação para olhar para cima, para a tela, onde um mundo irreal desfila antes nós — então este é o filme para tal desafio. Não existindo um espaço de respiração devocional para o espectador, Saul Fia faz desejar uma sala de cinema onde em vez de olhar para cima pudéssemos olhar para baixo, ou pelo menos de frente. Não por sinal de respeito mas por virtude de uma luta corpo a corpo com as nossas acções, com a nossa história.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

A fuga do estilo

Desde o Génesis que uma das dádivas que Deus propôs oferecer ao homem foi a possibilidade de gerar uma inúmera prol. Uma descendência tão farta como o número de estrelas, num remédio contra o fim da existência individual e estéril. A vontade de deixar descendência pode ser vista como um desejo de inscrição. Morremos mas queremos que a nossa semente perdure. Almejamos gravarmo-nos nas entranhas da terras, imiscuir-nos com as outras sementes sazonais da terra, tal como um cinzel modula a pedra ou o ferro. Desta última actividade de inscrição surge o estilo, como instrumento necessário à escrita suméria cuneiforme ou a outros sistemas anteriores à escrita. Mas o acto primeiro — mítico (mudo), mágico (circular) — de inscrição é aquele pelo qual Deus moldou a sua imagem em barro (em hebraico adamah), no qual insuflou o seu sopro e daí criou o homem (Adam). Esse mito mostra como o homem é o material espiritualizado que nasceu do "coito" entre a argila como material (a grande mãe) e o sopro-semente insuflado por Deus (o grande pai). Mas sobretudo mostra também a precedência do acto de inscrever sobre o de escrever, ou mais concretamente, sobre a sobrescrita. 

Todas estas ideias não deixam de ressoar hoje. Sobretudo quando a tendência decrescente da natalidade (já conseguimos contar as "estrelas" de cada família na sociedade ocidental) também pode ser colocada lado a lado com a evolução da escrita. Do cinzel, ao pincel e ao píxel, há todo um estilo que se reconfigura. E com ele a diminuição da importância da inscrição (física) como marca visível de um estilo. Como se a passagem do monumental ao documental, do talhar ao pintar sobre, nos dissesse também ela qualquer coisa sobre a menor necessidade de marcamos sobre a terra o nosso estilo. Porque se a inscrição é mágica, o escrever dilacera a imagem e busca o conceito para as linhas da "tapeçaria" que enformam os textos. Estes como obras a várias mãos, com a trama horizontal do autor e a trama vertical do leitor a cruzarem-se num ponto de tecitura variável.

A evicção do estilo do homem — como o de Abraão, a quem, já com 99 anos, Deus prometeu multiplicar a "descendência até ao infinito" —, parece vir a par com a mutação do estilo da escrita. Com o digital, a visualidade da escrita (que já havia abafado o auditivo) parece atingir a fase em que descarta as letras. A matematização descarta o processual, casual, ondulatório e estabelece perfis e diagramas para "analisar" e "conduzir" a sociedade. Mesmo os números decimais são abandonados em favor do que Flússer chama uma "primitivização do mundo dos numerais", através do sistema binário infantil. Neste sistema é cada vez mais difícil prever um estilo (da inscrição do homem como homem que age, mas também do homem que se multiplica) e cada vez mais fácil antever a reprodução (também humana) sob um modelo copy/paste, no qual Deus e a descendência de Abraão já não se distingam a não ser na sequência diferente de zeros e uns.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Quando ao romper da manhã um pássaro esvoaça junto à minha varanda, pergunto-me se estarei errado.

Quando ao fechar da tarde um carro rola a toda a velocidade pela estrada da minha rua, então sei que estou certo.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

De noite

Até hoje já por duas vezes tive de passar a noite num hospital. A primeira há mais de 10 anos, a segunda há pouco mais de uma semana. Lembro-me de muito pouco da primeira vez. Não me recordo da cor dos lençois, nem da voz dos enfermeiros. A minha curiosidade, fluorescente, invadia tudo. Sei que havia uma pessoa com a qual partilhava o internamento mas não sei quem era ou do que padecia. Era novo demais para pensar na morte ou em como aquele quarto podia servir para nos separar do mundo. Lembro-me da minha família a rodear-me descontraída — o meu problema estava longe de ser grave — e de estar sobretudo focado na fome e no frio. Não comi nada durante 24 horas. Estava nu, em todos os sentidos. Nada sem ser a bata da operação e depois o frio do recobro. Ainda me lembro da protecção da cintura para baixo que me puseram para que não pudesse ver como me cortavam. Estava consciente e conseguia ver a máquina das batidas cardíacas. Observava o meu rosto no reflexo das lâmpadas da sala e entretanto devo ter adormecido. Só senti medo uma vez: quando me empurraram suavemente o corpo da maca para o elevador que descia à sala de operações. Um medo estranho, futurista, de quem entra numa nave espacial e que se prepara para voar para um mundo qualquer. A noite passei-a bem pois tinha muito sono. Um sono sem sonhos, como se fosse mais para despistar a fome do que a dor. Essa nunca a senti, nem depois. Era jovem demais e só olhava para dentro. Dessa vez o hospital foi sobretudo para mim como um hotel exótico, no qual chegamos depois de caminhar um dia inteiro, tapete de boas vindas, calor, experiência única.

Entretanto o tempo passou. Ou escoou, não sei bem. Mais de uma década depois voltei ao hospital. Outra vez o mesmo problema, longe de ser grave. Outra vez uma noite. Mas não era a mesma noite. Já não senti a fome e o frio. Os lençois eram brancos, tão quentes, a bata azul, tão fina. Ao meu lado um senhor a ouvir notícias do benfica, tão forte e descontraido. E eu tão fraco e só, apesar do apoio familiar. Na cama a seguir a essa um senhor dos seus setenta e cinco anos que se esforçava por manter o sorriso. Tinha um andarilho para ir à casa de banho durante a noite. Ouvia-se muito o metal. Contava anedotas de Co-lombo e o barulho da serra eléctrica a perfurar-lhe o joelho. Talvez fosse velho demais para a operação, mas de olhos alegres e vivos o suficiente para não lha terem recusado. Ainda um quarto companheiro de enfermaria, um senhor também já de certa idade, com problemas na próstata, urina com coágulos. Ouvia tudo isto sem querer e essa era a única dor que podia sentir. Doía-me a dor deles, mas permanecia calado. Os enfermeiros ora se riam oram eram autoritários. Uma amostra da vida num espaço à parte da vida plena. A noite, esta, foi interminável. O sono interrompeu-se inúmeras vezes. Não eram os sonhos, era o desamparo. Sentia-me tão só e injustiçado por estar a provar com a antecedência de anos e anos um gostinho da vida quando se vai. Acordava a pensar que ali não era o meu quarto, que aquelas já não eram as minhas pernas, que não podia sentir vontade de mijar. Mijar sentado aos 35 anos anos soa a impossibilidade. E por isso esperava pela manhã, doce, para que me viessem as minhas pernas, aquelas que me podiam acompanhar à casa de banho como gente saudável. Deram-me de comer mas não comi, estava demasiado triste, ignorava os roncos do estômago.

Desta vez lembro-de tudo. Da anestesista me dizer, ao entrar na sala de operações, "não o quero ver com essa cara". De me perguntarem se ainda sabia o nome, segundos antes de um gelo me invadir metade do corpo e adormecer logo de seguida. Recordo-me do barulho dos pensos a saírem da carne e da urina com cheiro a soro. Também não vou esquecer de como o cirurgião se enganou no meu nome ou dos planos subjectivos do caixão de Vampyr, quando olhava o tecto ao ser carregado pelo corredor em cima de uma maca. No dia seguinte quando recebi a notícia da alta vesti-me como pude, desejei as melhores aos meus companheiros de desalento, e saí, a coxear muito, do quarto. Preferir esperar já fora da enfermaria, meio deitado, junto à máquina do café, que me viessem buscar. Pegaram em mim, um taxista ucraniano levou-me a casa e, quando cheguei, parecia que tinha esquecido tudo. Não me lembrava das feridas nem das pessoas, da dor nem da noite. Tudo aqueceu subitamente. Senti fome. Momentos depois, ver televisão e falar com as pessoas que amo pareceram-me as dádivas mais maravilhosas do planeta. Mas nessa noite não dormi.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

O borrão e o orgasmo

Ontem o À pala de Walsh juntou-se ao colectivo de arte White Noise na inauguração de um espaço na Guilherme Cossoul para futuras actividades culturais. Começámos por nos juntar à exibição de um filme, com a já habitual rubrica Filme Falado, mas desta vez ao vivo e com público. Nessa conversa que integrava o convidado Vasco T. Menezes muito se falou sobre Una Lucertola con la Pelle di Donna de Lucio Fulci. Ou no título em brasileiro Uma Lagartixa num Corpo de Mulher (desculpem mas não podia passar a oportunidade de escrever a palavra lagartixa... duas vezes).



E de tudo o que se disse ninguém pegou no borrão do início, genérico de um louco genial, nem Pollock nem Malevich o sonhariam. Uma amálgama vermelha, disforme, muito vermelha, a chocar com as letras amarelas do título. O ácido será. Ele pode dar origem a todas as visões: o sonho ou a realidade, a morena ou a loura,  a vítima ou a assassina. E claro, a lucertola ou a donna. Mais do que acertar no que pode ser o borrão, este filme de Fulci é em desvario e, em potência, todas as formas.  Tudo o que há de vir pouco sentido fará, mas virá. Engraçadinho que isso se tenha depois convertido na bula interpretativa dos sonhos da psicanálise. 

Mas há que ir mais longe. Então e o vermelho? Lá mais para a frente no filme, Mrs. Hammond, a protagonista, é perseguida por um maníaco num hospital psiquiátrico onde está internada. Ao fugir dele entra numa série de corredores todos brancos, portas fechadas. Então Fulci faz esta coisa estranhíssima: filma a mulher de perfil e nada de pormenores ao longe. Ele vem atrás dela, isso nós sabemos. Subitamente vemos uma pequena mancha... vermelha claro... que se torna evidente ao longe. Por um momento pensamos que é o seu assassino que subiu a se prepara para a alcançar. Mas esse borrão é trazido para a visibilidade e vemos que se trata de um extintor. A sério, um extintor? Porquê? Nem vale a pena perder tempo, pois logo a seguir há a dita cena dos cães esventrados ligados a uns tubos numa sala com instrumentos médicos. Cenário esse que, como se sabe, é o mais corriqueiro nos hospitais psiquiátricos...



Mas ainda o borrão. Dele devêm todas as possíveis formas com a câmara frenética de Fulci a querer experimentar tudo, a querer esventrar qualquer vislumbre de convenção. Alguém sob o efeito de ácidos poderia pensar que uma mulher é um lagarto... Quem sonha pode pensar que viu de facto... Num filme tão hitchcokiano — comece-se com Vertigo pela relação feminina no duplo, Spellbound pela questão psicanalítica e Stage Fright pelo paralelismo entre o flashback que mente e aqui os sonhos mentirosos — ainda podemos pensar noutra impensada relação. É que Lucertola começa como se Carol fosse a Iris de The Lady Vanishes. Ambas num comboio, ambas a não saber se o que viram aconteceu de facto. Ou sonho ou conspiração, no caso do paralelo entre os filmes é a mesma resposta para ambos. E nessa passagem entre o filme de 38 e o de 71 há um mesmo corredor de comboio. Corredor que para Fulci é o oposto dos ameaçadores espaços abertos: é antes um portal em que uma angústia pode devir num orgasmo. Sempre sempre estamos em processo do "tornar-se", do borrão vermelho a mutar em esquemas recônditos para ocultar (para não deixar ver) o resultado do prazer. O único prazer possível para Mrs. Hammond só pode estar atrelado a uma cama, o leito conjugal, apertado entre prisioneiras barras de ferro. E do marido, nem vê-lo.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Estrelícias


terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Uma nota sobre higiene dirigida aos fascistazinhos do presente

No mundo do oito e do oitenta em que se vive o eugenismo virou de direcção. Não se trata mais (ou apenas) de Madalenas louras e Salvadores altos e empreendedores. Agora chegou a vez de evicção do direito à escolha de terminar a vida, de fumar até que nos espirre sangue dos pulmões ou de apagar cirurgicamente as referências aos negros e aos escravos em algumas pinturas célebres para aliviar "desconfortos" daqueles que só sabem viver no presente, e sem sentido de passado. Trata-se de uma revisão retrospectiva da história, adaptado aos tempos actuais do feeling good, de quem fez merda no passado e tem agora de carregar com a cruz da discriminação positiva.

Risível, sim. Como a ida ao ginásio e a lógica do self made man de barba aparada e dentes brancos a foder o próximo para se pôr em bicos dos pés em nome das suas convicções. E chego a uma palavra decisiva: convicção. Os erros ou factos da história não são matéria de convicção. Nem para um lado, nem para o outro. Por isso é tão risível e perigoso o branqueamento da história como é o seu ataque com base numa crítica à ideia de tolerância. A tolerância actual não é um erro. Não é falta de tomates, como se aproveitam descaradamente os novos fascismos para atacar essa higienização. A tolerância é uma virtude, de colocação do eu no lugar do outro. Quem vê esta força como fraqueza não está em condições de pedir à tolerância que deixe de ser (como parece cada vez mais acontecer hoje) um valor que tudo devora e a todos se impõe. Porque essas pessoas, esses fascistazinhos do presente e do punho, só querem substituir uma higiene por outra, uma tirania do tolerante pela tirania do convicto. 

Batatas, língua e pés de porco em Frenzy

Num documentário sobre a rodagem de Frenzy, um regresso em final de carreira de Hitchcock à sua Londres, o argumentista Anthony Schaffer explica como conseguiu amenizar as imagens que o mestre tinha na mente. Primeiro, através da repetição da frase You’re my kind of woman dita pelo serial killer a Babs na cena em que ele a leva ao seu apartamento. Nós já o tínhamos ouvido dizer a mesma coisa antes de estrangular e violar a ex-mulher do herói. Essa repetição permitiu a Hitchcock a não menos perturbadora retirada em travelling pela escada do prédio até à rua. Famoso e abjecto encobrimento. Dentro no apartamento sabemos nós muito bem o que se terá passado enquanto os comerciantes do mercado de vegetais de Covent Garden passam pela rua mas inocente do mundo. A segunda água na fervura foi quando Schaffer disse a Hitchcock que não podia usar planos muito apertados de Brenda — dos seus lábios, suor e saliva — na cena da violação e estrangulamento pois isso era demais. O realizador respondeu-lhe com um nonsense my boy, mas o certo é que passado uns dias de montagem, cena particularmente difícil que demorou 3 dias a filmar, voltou atrás e retirou esses planos da versão final. Nessa cena o que nos fica é o suor do Rusk, o violador, o seu lovely, lovely, lovely enquanto a fode, o plano das mamas de Brenda e aquele momento horripilante em que Hitchcock nos dá aquele plano médio dela, estrangulada, língua ao lado. Língua que fará um raccord (não no filme, mas na minha cabeça) com a mão de porco que come o inspector da polícia.
Frenzy é um filme que corta em pedaços a ideia de que à medida que ficamos velhinhos nos tornamos mais simples e subtis. Pelo contrário. Nunca a não ser em Psycho (e creio que o desejo de aproximação naquela cena era a vontade de voltar ao chuveiro de Janet Leigh) Hitchcock estaria tão no puro terror. Como se fosse o excesso a vontade de um cineasta que já pode fazer tudo. Mas esse excesso é produzido através da transferência do que pode ser gráfico. Primeiro pelo humor macabro que é, sabe-se, um Hitchcock touch. Como é que uma cena em que um assassino parte os dedos de uma mão a um cadáver que já violou e se encontra em rigor mortis no interior de uma saca de batatas na parte de trás de um camião pode ser cómica? Mas é-o de facto e esse desvio torna-o ainda mais perverso. Depois a segunda transferência é a da comida: nojenta, rebentada, já meio comida, poeirenta, intragável. Essa ligação entre o cadáver do início que boia no rio e os pedaços de peixe que boiam na sopa horrível que a mulher do inspector lhe prepara. A mão sobre o pescoço das vítimas e o pé sobre as uvas desfeitas no chão do mercado. A poeira das batatas na testa do assassino e depois, como prova, na seu casaco. A maça roída a dois, entre a violada e o violador.

O desvio do horror para o grotesco da comida, do perecível e do podre, permite ser porco e aterrorizador sem o mais imediato. É pois essencial a todos saber gerir a porcaria. Por isso Frenzy é um filme tão extremo, que se devora com ruído, que aproveita o baixo e o prazer como últimos refúgios de um corpo também ele em irremediável decadência.   

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Aos 35 já devemos saber apanhar na tromba

Ontem pela primeira vez na vida vi The Set de Robert Wise e tenho 35 anos. A mesma idade de Stoker, a personagem de Robert Ryan, um pugilista que já caiu demasiadas vezes ao ringue mas que insiste que ainda pode vencer. A namorada só quer que ele desista pois aquilo não é vida para eles. O meu umbigo insiste em chamar o filme para junto de mim, como uma parábola sobre a vida. A perceber o final triste como feliz. Stoker, que todos acreditavam que ia perder o combate contra um jovenzinho de vinte e poucos, afinal não foi ao chão e venceu. Velho demais mas era dele aquela última glória da perseverança. E conseguiu-o sozinho, com a dor do banco vazio da namorada que nem o combate foi ver. Mas o preço da vitória, por não ter cumprido a sua derrota arranjada (até ao perder se tem um papel a cumprir), foi esfacelarem-lhe a mão num beco sem saída. Stoker não vai poder lutar mais e, por isso, Julie chora de alegria junto dele. Ela afinal venceu o combate do futuro, dos dois juntos para sempre sem os murros e toda aquela noite...
Mas assim como não precisamos de artistas demasiado focados em si e que não olhem para o que os rodeia, talvez também não precisemos dos espectadores amarrados aos filmes como espelhos distorcidos. Afinal, o cinema serve para ver mais, não o mesmo, no diferente. Por isso, é preciso passar além das tabuletas-aviso do filme. Depois do genérico, Wise, com um plano de grua, aproxima da rua à fachada no recinto onde os combates têm lugar: Paradise City. Mais tarde podemos ver o nome do hotel onde Stoker e Julie estão hospedados: Cozy Hotel. Nomes idílicos e enganadores para tão ferozes lutas. Dois ringues. Um de facto onde o pugilista veterano ainda consegue aparar os golpes que o separam de um golpe derradeiro, de génio, de bilhete para um futuro grandioso tão imaginado; o outro, o ringue mais sério, o do amor, onde Julie está prestes a ir ao tapete: Maybe you can go on taking the beatings. I can't... 


Passar além das tabuletas significa não opor demasiado estes ringues, não conceder à parábola do paraíso, dos sonhos e do confortável uma excessiva importância. Como dizia Hitchcock: se a vida não faz sentido porque é que um filme há-de fazê-lo? Baralhando a lógica podíamos ficar com o seguinte: com os planos do gordo que come sem parar ao assistir aos combates, com a mulher com ar excitado e sanguinário que pede para um combatente matar o outro, com um homem que faz sempre o mesmo gesto como se estivesse ele no ringue. Estes são os habitantes habituais e voyeuristas dos combates (da vida) de Stoker. É aqui que entra o cozy e esse escândalo de poder conceber uma vida de derrotas feita. De ir, uma e outra vez ao tapete, e de mesmo assim rejeitar a ironia da tabuleta, do tapete da nossa casa. Paradise City pode bem ser o lugar onde vamos ao chão. Onde aprendemos a cair.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

39 Steps: a emoção como um movimento degrau a degrau

Para mim não restam muitas dúvidas que quem subir cronologicamente, degrau a degrau, a carreira de Hitchcock chega a The 39 Steps, sua 19ª obra, e pensa: não, ele nunca fez um filme tão bom como este. Talvez se fique com dúvidas em relação a The Lodger, The Ring, ou, admito mesmo, à segunda metade de Murder!, com uma brilhante aparição de Esme Percy, a antecipar o Hans Beckert de M no ano seguinte. Mas em 39 Steps tudo parece conjugar-se. O grande tema de Hitchcock — o homem inocente que toda a gente julga culpado — com as cordas do suspense e da surpresa a serem puxadas a bel prazer, surge complementado com a emoção do romance. Quando Hannay vai para a Escócia há uma sucessão de sequências exemplares dessa complementaridade. No comboio, o suspense de não ser detectado pela polícia com o beijo a Pamela, sua posterior companheira de fuga e de algemas. Como em The Lodger ou Number Seventeen as algemas são o anel que força, o objecto que obriga à junção de contrários, muitas vezes até descobrirem que não são tão contrários. O último plano do filme mostra isso, a algema real que deu lugar à algema emocional, que se torna evidente quando o par dá as mãos. Depois de se escapar, a cena já em terras escocesas na noite em que, a caminho de Alt-na-Shellach, pernoita na modesta casa de um agricultor. Aqui o suspense continua com a chegada eminente da polícia, mas vai além com o flirt entre Hannay e a esposa do dono da casa, mulher muito mais nova. Terceira sequência: chegada a casa do Professor Jordan com dois momentos seguidos de surpresa. Ele, que era suposto ser o homem que o iria auxiliar a esclarecer a sua inocência em relação à morte de Annabella Smith, é afinal o homem sem parte do dedo mendinho, o alemão responsável por roubar os planos secretos britânicos. Jordan dispara sobre Hannay e, segunda surpresa, já nas instalações da polícia percebemos que sobreviveu, pois um livro de hinos religiosos no bolso do casaco (pertencente ao agricultor e que a sua esposa lhe deu para fugir durante a noite) aparou a bala. Na polícia não acreditam na história dele e volta a ter de fugir, assim sempre. Ao contrário de North by Nortwest, que tem semelhanças de argumento incríveis (por exemplo, a cena do comício político é muito semelhante à do leilão no filme de 59) aqui parece não haver espaço para a respiração. A respiração é dada pela amor e humor da relação de Hannay com as mulheres: primeiro com a espia, depois com a esposa do agricultor, e, finalmente, a única que não acredita nele, aquela que ele vai ter de dominar e algemar, a personagem de Madeleine Carroll.

39 Steps é mesmo uma escada que se sobe emocionado e ela é um bom exemplo de movimento. O filme termina com a revelação do segredo de Estado britânico mas isso já não interessa. Os segredos ficam a meio, alguém tem de os memorizar mas não nós... São cenoura para fazer correr os espectadores e personagens. Curioso ou não num filme onde as emoções e motivos das personagens são concretos, o conteúdo desses mesmos motivos não interessa, é abstracto. Precisamente o inverso de muitos filmes hoje feitos com mundos e fundos. Emocionalmente inertes mas com um argumento super pormenorizado, com viagens no tempo, saltos para dentro de sonhos, dimensões à la carte. Filmes muito concretos, hiper-realistas, que fazem da emoção um mero detalhe abstracto. Exactamente, o movimento inverso da obra prima de Hitchcock que concretiza a emoção numa série de peripécias redondas e abstractas. Não é por acaso que se costuma dizer que a felicidade não é a meta, é o caminho. Esse caminho pode ser uma escada, um súbito amor, uma inesperada luta pela sobrevivência...

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

O novo número da ANIKI- Revista Portuguesa de Imagem em Movimento já está online. Nesta edição faço uma recensão ao livro O espectador (In) Visível- Reflexividade na óptica do espectador em INLAND EMPIRE de David Lynch de Fátima Chinita.

O link aqui.



domingo, 7 de fevereiro de 2016

The Hateful Eight (2015) de Quentin Tarantino

Pouco após a estreia de (Oito e Meio, 1963) o que de mais comum se podia ouvir sobre o filme era que o divertimento autobiográfico de Fellini era brilhante à superfície mas no fundo desprovido de conteúdo significativo. Se essa mesma originalíssima ideia já vem perseguindo o Tarantino “fabricante de catálogos derivativos de citações” desde o início da carreira, agora que chegamos ao seu oitavo filme (sem meio), essas mesmas vozes voltam a tornar-se mais evidentes. E aparentemente a relação entre os dois filmes não termina aqui. É que se conta que na origem de esteve um esquecimento da ideia original para o filme por parte de Fellini, que depois derivou na história que conhecemos, de um realizador em bloqueio criativo. Não se pode propriamente falar em bloqueio de Tarantino em relação a The Hateful Eight (Os Oito Odiados, 2015) mas sabe-se como esteve prestes a desistir do projecto quando o argumento que escreveu se publicou na internet antes da rodagem. Assim como o mesmo viria a acontecer com o próprio filme, mesmo antes de se poder ver em ecrã grande o resultado dos gloriosos e coloridos 70mm que Tarantino escolheu para o formato do filme. Seria aliás interessante confrontar esse choque entre um filme que vive sob o signo do fechamento (das suas personagens numa pousada, abrigados do frio e de uma monumental borrasca lá fora) e essa “abertura” congénita a que esteve condenado desde as suas fases muito muito iniciais.

Depois de matar nazis em Inglourious Basterds (Sacanas sem Lei, 2009) e de colocar os negros a rectificar a história da escravatura americana em Django Unchained (Django Libertado, 2012), Tarantino resolve avançar uns anos até à ressaca da guerra civil norte-americana e jogar um xadrez sanguíneo a oito peças com os despojos humanos do conflito. Nas montanhas do estado do Wyoming, o bounty hunter John Ruth (Kurt Russell) leva de carruagem uma fugitiva, Daisy Domergue (Jennifer Jason Leight) até à cidade de Red Rock para lá ser enforcada e receber a devida recompensa. Na eminência de uma forte tempestade de neve resolve dar boleia a outro “colega” de profissão, o Major Marquis Warren (Samuel L. Jackson), ex-combatente pelo exército do norte, e a Chris Mannix (Walton Goggins), suposto novo xerife de Red Rock, pró Sul e homem pertencente às milícias da lost cause. Estes quatro vão encontrar outros quatro quando pernoitam na estalagem de Minnie. Entre estes está o habitual Michael Madsen como Joe Gage (o cowboy que vai ter com a mãe pelo Natal), o carrasco de Red Rock (Tim Roth), o mexicano Bob (Demian Bichir) e Sanford Smithers (Bruce Dern), um ex-general que lutou com o exército da Confederação.

Estas duas equipas jogarão esse tal xadrez, que no cinema de Tarantino não é um jogo assim tão parado, mais perto da reencenação indoors da célebre batalha de Baton Rouge que opôs Norte e Sul. Claro que as equipas e as regras nunca são muito rígidas, ou não tivessem todos as suas razões e não fossem todos hateful. Para arrumar de vez com as preocupações de encontrar seriedade em The Hateful Eight diga-se então que, entre o Cristo crucificado do início e o demónio que dança do fim, há essa preocupação de traçar tangentes entre o santo e o demónio, os bons e os maus, no whodunnit onde todos, mais ou menos, did it. E ainda no capítulo do revisionismo histórico, o poder redentor da ficção, que já vinha dos dois filmes anteriores, não deixa de ter eco na saída de sobrevivência para toda uma eminente matança. Uma saída que mais do que pôr a hipótese (para logo depois a falsificar, deixando os seus ecos a pairar) de Marquis Warren ser mesmo pen pal de Abraham Lincoln (incrível como Tarantino brinca com Spielberg no final do filme) esclarece esta possível união norte-sul, negro-branco, para escapar às tentações do “demónio” que pelo caminho vai perdendo os dentes e adquirindo tonalidades vermelhas…

Embora estas camadas possam acrescentar algo aos filmes de Tarantino há depois que ter em conta aquela frase reveladora do carrasco quase na hora de filme quando diz que dispassion is the very essence of justice. Se no filme se quer falar num processo civilizacional que implica a administração impessoal da justiça contra as angry mobs, não há como não pensar no crítico como aquele carrasco que procura incessantemente uma justiça, uma seriedade no acto de dissecar os filmes de Tarantino. Pois bem, não há muita justiça a encontrar em felatios na neve, vómitos ao metro ou cabeças que explodem. Mas há justiça em determinar a violência gráfica (aliás nunca a violência foi tão inócua e caricatural como aqui, mostrando que esta não se mede pelos litros de sangue e vísceras), a misoginia ou o racismo das n words, como assuntos determinados pelo contexto, pela comédia que rejeita a fronteira entre os assuntos sacros e os temas permitidos. E justiça maior há também em ver como séria a reterritorialização dos géneros: aqui o western encontra o whodunnit e o filme de terror, com Jennifer Jason Leigh entre o burlesco e a vítima do terror mais sanguinolento, como uma menina saída de Carrie (1976) ou The Exorcist (O Exorcista, 1973).

Das inúmeras filiações ressaltam à vista duas. A primeira, interna, que por virtude da compressão do espaço e dos jogos teatrais da infiltração e detecção do culpado, liga a oitava obra à primeira, Reservoir Dogs (Cães Danados, 1992). Nessa relação com o espaço — o sul e o norte mas também o lá fora, frio e branco, e o cá dentro, quente e vermelho — The Hateful Eight escolhe o primeiro mas não como elogio do teatro. Se a profundidade de campo desmistifica essa hipotética relação, há qualquer coisa de depuração nesta escolha do interior como o espaço acolhedor onde se contam as histórias, um verdadeiro centro do cinema de Tarantino. O seu pólo de atracção sempre foram, de facto, as histórias contadas pelas personagens, em tom sarcástico e saboreando lentamente cada palavra. “You’re starting to see pictures, aren’t you?”, pergunta Marquis, olhando para a câmara, a meio de mais uma história rocambolesca. Sim, estamos. E essas imagens internas são o resultado da escrita de Tarantino, dividida em capítulos, ministrada de forma precisa sob o confortável calor da lareira (ou da sala de cinema), entre golinhos de cognac e tiros em slow motion.

A outra filiação clara é à estrutura de The Thing (Veio do Outro Mundo, 1982) o “remake” que John Carpenter fez de The Thing from Another World (A Ameaça, 1951) de Howard Hawks. Não só ambas as histórias são sobre uma série de homens fechados num espaço com neve lá fora a adensar a paranóia, tentando detectar quais deles são os inimigos (ou numa versão mais literal, quem são os monstros, sendo que, como se vê, em Tarantino, todos são inglorious basterds), como partilham o mesmo actor (Kurt Russel). E até algumas das músicas não usadas por Ennio Morricone para a banda sonora do primeiro fazem agora parte do ambiente acústico, algures entre o terror e o western spaguetti, que o italiano compôs para o filme. 

Entre as tradicionais escolhas do Dj Tarantino, que ajudam a completar a banda sonora, há uma peculiar. Numa sequência em que Joe Gage vem cá fora procurar uma pessoa, pode ouvir-se os acordes suaves de “Now You’re Alone” de David Hess, actor e compositor da banda sonora de Last House on The Left (A Última Casa à Esquerda, 1972), o primeiro filme de Wes Craven. Esta escolha inusitada não só assume claramente a inspiração do terror de The Hateful Eight, como deixa a pensar se o nono e penúltimo filme de Tarantino entrará por esse terreno. Aí, seria curioso pensar na opção que fará entre o terror sério ou a paródia. Isto porque a grande seriedade de Tarantino é a de não se levar muito a sério.

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Carol

Em 1945, o britânico David Lean realizou Brief Encounter (Breve Encontro, 1945) sobre um affair vivido por um casal, homem e mulheres casados, no final dos seus trintas, entalado numa vida de pseudo felicidade. Quem o viu sabe que esse momento de amor era um comboio súbito que apenas passa uma vez na estação (curioso que no filme de Haynes os comboios, sendo o símbolo masculino por oposição às bonecas, são também esse sinal de viagem idílica). Mas quem o viu, sobretudo não esquecerá a mão que Trevor Howard coloca no ombro da sua amada Celia Johnson em jeito de despedida — “I felt the touch of his hand on my shoulder and then he walked away” —, impedidos que estavam de se despedirem propriamente. Esta mão, este gesto do adeus possível é como começa Carol (2015), o último filme de Todd Haynes.


Se há aqui uma ressonância ela é demasiado forte para se explicar numa mera curiosidade cinéfila. Seguramente que se pode começar por aqui, pela dimensão neoclássica do cinema do norte-americano que, à parte os seus filmes “musicais” [Velvet Goldmine (1998) e o mais recente I’m Not There (Não Estou Aí, 2007)], se foi aproximando do trabalho arquetípico sobre o dilema da mulher desamparada, embatendo no muro das convenções sociais. É certo que Safe (Seguro, 1995) ainda é um filme independente (na forma e no conteúdo) mas há nele o iniciar de um caminho que vem inquirindo as mulheres americanas bem vividas e melhor casadas. Acerca das suas perturbações psíquico químicas, questões raciais e de adultério [o melhor dos seus filmes, Far From Heaven (Longe do Paraíso, 2002), inspiração tirada de All That Heaven Allows (Tudo o que o Céu Permite, 1955) de Douglas Sirk] e agora o problema de uma mulher poder amar outra em plenos anos 50 de uma América pós Guerra, a braços com uma perseguição homossexual (o dito “lavender scare” por relação com o “red scare” comunista).

Carol é a adaptação de um romance de Patricia Highsmith intitulado The Price of Salt, escrito em 52 sob o pseudónimo de Claire Morgan. E nele a escritora assume uma relação com uma mulher mais velha, casada. É aqui o papel de Cate Blanchett que seduz uma jovem (Therese Belivet, interpretada por Rooney Mara) que encontra numa loja, durante o Natal, envergando um belo chapéu alusivo à época. O filme de Haynes centra-se narrativamente no encontro, desencontro e reencontro do casal, tendo como fundo um processo de divórcio de Carol e a luta pela custódia da sua filha. Se ao casal se juntar, a ex-amante de Carol, a agora confidente Abby (Sarah Paulson), percebemos que o trio feminino deste filme (ao qual poderíamos juntar a figura da própria escritora da história) é não só o seu centro, como se escuda de um conjunto de homens não muito inteligentes, largueirões na fisionomia e no pensamento.

A história é simples e simples a mantém Haynes. Perante isto há que interpretar qual o sentido do gesto dessa simplicidade. Os mais apressados dirão: Carol é uma história de amor ponto, nem procura sequer filmar uma especialidade qualquer no retrato daquele amor homossexual. Carol e Therese são dois seres humanos que se desejam e nem sequer falam do mundo que as rodeia, é a aproximação que as define. Esse argumento procuraria trazer a realidade retratada para a norma (esforço que aplaudiríamos caso correspondesse ao filmado). Do outro lado, igualmente apressado, vê-se em Carol a entrada subtil na corrida oscarizável com três etiquetas: o filme de qualidade; o filme sobre questões sociais importantes que o discurso liberal da academia costuma anualmente premiar; e, finalmente, o filme que, depois de Blue Jasmine (2013) de Woody Allen, poderá vir a dar em anos consecutivos o prémio de melhor actriz a Blanchett.

Mas convenhamos, mais importante do que tudo isto é o gesto sobre o ombro de Rooney Mara em que Haynes cita Lean. Ou o plano em que esta surge enquadrada à noite com um candeeiro de rua antes de apanhar o taxi (outra citação, neste caso de Sirk). Estes indícios mostram-nos que Carol não quer ser um filme bandeira de nada, sequela no feminino de Brokeback Mountain (O Segredo de Brokeback Mountain, 2005). E chegamos ao neoclassicismo no qual Carol é uma evocação de Katharine e Belivet de Audrey. Ambas Hepburn. Chegamos ao verde e ao vermelho, cores deste “Christmas Carol”, captadas pela imagem granulada da película super 16mm com que o filme foi captado. Chegamos à banda sonora que alterna o piano e o violino ternos de Carter Burwell e o jazz intimista de Billie Holiday e Georgia Gibbs. E finalmente ficamos com os sorrisos subtis, entoações e olhares de Blanchett que procuram sair de uma contenção da qual não pode sair. Esse dito no não dito, a sugestão do toque, da cor e da textura são os sinais de uma lava proibida num filme que retrata um período em que o lesbianismo era, ou uma questão de moral, ou uma questão de psicoterapia.