sábado, 24 de dezembro de 2011

Intermission


Bom, este blog decidiu aderir a este costume recente chamado Natal por isso vai de férias retomando a sucessão de inutilidades em Janeiro. Desde já um espectacular ano de 2012 para todos. Até já.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Eclipse da Intimidade



Recentemente num café lisboeta uma adolescente, prestes a pagar a conta ao balcão, recebe uma chamada e diz: ”O meu avô está hospitalizado. Tem um cancro num pulmão e em princípio é mortal.” Entretanto prossegue a chamada com algumas banalidades e ao fim de pouco tempo desliga. Paga a conta e sai do café. À partida, a brutalidade desta informação surpreende  pela aparente contradição subjacente à relação entre o conteúdo da mensagem e a sua forma (a entoação era inafectada, banal, com um volume suficientemente alto para que quem estivesse a uns poucos metros de distância ouvisse e soubesse daquela doença e provável morte iminente).  Não cairemos na patetice de julgar o sofrimento de um desconhecido pela entoação de uma frase.

A questão tem de pôr-se é no campo da compreensão dialéctica entre a esfera pública e privada. Já pelo menos desde os anos 30, e depois com Adorno e Horkheimer, que se percebia que a esfera privada tinha sido colocada no alvo dos interesses de um sistema público. A introdução de locuções como a “reserva da intimidade da vida privada,” “questões do foro íntimo e privado”, ou a expressão,  “por motivos pessoais”, só davam a compreender o óbvio: que essa reserva era admitida sob um olhar estritamente político, quer dizer, público e invasivo.

Desta feita, abrem-se dois cenários. Um mais provável é o de que a constante penetração de elementos que pertencem à nossa relação com aquilo que nos afecta (expresso ao nível dos sentimentos)  pela carga de um funcionalismo que nos ultrapassa (que pertence a uma comunidade), a um centro social que nos reclama, implica o repensar destas duas esferas. Por isso, não espanta que, como aquela adolescente, hoje, usemos como pharmakon, a exposição do que é só nosso, ou pensamos ser só nosso. É esse prolongamento do interior no exterior, da intimidade na devassa pública, da partilha de um evento pessoal ou de um desgosto no palco público (precisamente o local onde todas as dores privadas se desvanecem para dar lugar a uma dor abstracta), que permite ao indivíduo apaziguar o que ainda sente. Neste caso apazigua, mas outros casos conhecemos, em que o social é antes uma certificação do próprio sentir. E aqui entramos na segunda hipótese. É que a indignidade de espalhar aos quatros ventos que temos um avô que está prestes a morrer permite pensar o que faz esta contaminação do privado pelo público na reorganização emocional da nossa esfera emotiva interior. É que parece que a contraposição moderna entre o desgosto e a forma de entoar o desgosto, deu lugar a uma introdução indistinta, pos-ideológica, das frases e suas cargas emotivas numa máquina indistinta de sentenças que se esvaziam, que valem como puro entertainment, quer dos que as ouvem, quer dos que as proferem. Ora a falência dos espaços de intimidade está precisamente em jogo quando é o sistema, ou sistemas, quem certifica que tens uma vida interior e que ela merece ser vivida, apenas e estritamente, dentro dos limites do espectacular.

No livro quente, de ressaca do 11 de Setembro, BEM VINDOS AO DESERTO DO REAL, Slavoj Zizek fala-nos, após vários malabarismos à esquerda e à direita, de uma lição a retirar dos romances de Marguerite Duras. A lição é a de que o único meio para um casal viver uma vida verdadeiramente pessoal não consiste em ficar a olhar um para o outro, esquecendo o mundo à sua volta, mas em olhar juntos, de mãos dadas para o exterior, para um terceiro ponto. E prossegue com a ideia de que o resultado de uma subjectivação globalizada, ou seja uma uniformização do íntimo e pessoal, não provoca o desaparecimento da “realidade objectiva” mas sim da própria subjectividade. A subjectividade passa a ser uma fantasia fútil, enquanto a realidade social segue o seu caminho.

Ou seja, vai morrer-nos um avô, mais tarde ou mais cedo. Nessa morte, a nossa reacção a ela, não depende tanto de nós, mas sobretudo de uma formatação interior, de um ritual do sentimento uniformizado que serve todos os avôs e todos os netos. Nesse contexto só se verterão lágrimas sociais e os espaços de intimidade confundir-se-ão com os palcos. 

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Raccord possível


 
Hoje às 11:45 da manhã a sic notícias mostrou, ocasião insólita, em split screen duas imagens extremamente reveladoras. À direita implodia em poucos segundos a torre número 5 do Bairro do Aleixo no Porto. À esquerda, no debate quinzenal da AR entre Governo e oposição, assistíamos à «implosão» da soberania constitucional, debatendo-se a possibilidade de introdução de limites ao deficit na lei maior do Estado. Uma ideia de destruição a partir do seu interior, de dentro para fora, é também metaforicamente válida no que diz respeito aos efeitos desta crise sobre a União Europeia. Mas o mais relevante nesse possível raccord de implosões é a necessidade que o sistema tem de organizar o espaço geográfico das suas destruições. A medição e a calculabilidade da destruição contemporânea minimizam o estrago pela estratégia da colocar em palco a «falha», o erro. Se tem honra de antena o ir abaixo de um prédio, é porque a celebração do fim da ordem, do lugar vertical que envelheceu e merece ser substituído são mascaradas pelo espectáculo da sua destruição. Não menos assim é com o triste espectáculo da queda, em limites reservados, das velhas e devolutas soberanias europeias ante a necessidade de conter o inevitável: a escalada da dívida dos países periféricos da Europa Mercozy. Essa destruição merece lugar de palco priviligiado, a AR, pois é aí que o erro devém espectáculo, que o esgrimir de ideias na arena permite mascarar essa operação acéptica, implosiva diga-se mais uma vez, de remoção dos limites da soberania nacional ante as necessidades de um projecto à beira, ele próprio do colapso. Quem abrisse hoje a televisão à referida hora, poderia pensar na coesão hollywodesca do cinema clássico, tal a capacidade que estas imagens têm, de contrariar, ainda que por uns breves segundos, a absoluta dispersão, a total incapacidade de distinguir entre o que vai abaixo e o que cresce no seu lugar.   

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

UMA SEPARAÇÃO de Asghar Farhadi



Os primeiros planos de UMA SEPARAÇÃO (Jodaeiye Nader az Simin), de Asghar Farhadi - o «filme dos três ursos» como já lhe chamam pois arrecadou os prémios para melhor filme, melhor actor e actriz em Berlim este ano - não podiam ser mais clarom e higiénicom. Dois bilhetes de identidade fotocopiados e uma hipótese de separação. Nesta fractura não está só em causa um casal com uma relação prestes a terminar, mas sobretudo um horizonte de separação política: é que a vida é melhor fora do Irão do que no interior dele. A esposa Simin (Leila Hatami) quer levar a sua filha para fora para lhe poder proporcionar um futuro melhor. Contudo há um problema. Ou melhor, há dois. É que Nader (Peyman Moaadi), o marido, se opõe pois quer permanecer no Irão para tratar do seu pai com Alzheimer. E a própria filha não tem vontade de ir porque quer ficar com o pai. 

Perante esta separação inconcretizada, a geográfica, Farhadi parte num hábil processo de manufactura de uma outra separação, esta in locu, de criação de espaços no atafulhado dos décors reais, dos espaços juntíssimos da separada sociedade iraniana. É nesses espaços - escadas, corrimãos, ombrais de portas, persianas, janelas – tudo câmara à mão, que Farhadi nos revela o dissensual, o novo stress que chegou à sociedade iraniana, em parte também pelas sucessivas investidas do charme ocidental.

Assim, parte uma mulher, sai de casa a esposa empreendedora, com ambições de futuro, e entra outra, também ela casada, classe baixa, que precisa de fazer pela vida. Por isso, aceita o emprego desgastante de cuidar do pai de Nader durante o dia, enquanto este está a trabalhar. E há um pequeno conflito que se agiganta, transformando a segunda metade de UMA SEPARAÇÃO num processo kafkiano de apuramento de culpas. Um périplo que passa por hospitais, tribunais, escolas e onde essa culpa, em lugar de pender para um dos lados, se dissolve docemente, dando lugar a uma outra realidade. E é aqui que está a novidade do filme de Farhadi. É que ao invés das personagens silenciosas (o pai de Nader) ou semi-silenciosas (a filha adolescente do casal) serem soluções expectáveis para o conflito que vai opor a sua família à família da mulher que eles contratam, são meros espelhos que servem uma atitude de auto-confrontação, de confronto moral. Como se o silêncio do outro nos permitisse observar de frente, com maior clareza, a nossa própria inquietação.

Desta feita, UMA SEPARAÇÃO é uma obra que vai expondo as pequenas grandes faltas, os pequenos grandes desesperos de uma sociedade em transformação. Uma sociedade que sempre soube expelir do seu interior o incómodo mas que cada vez menos convive com o trauma de uma culpabilidade interior.  Sobre esta transformação UMA SEPARAÇÃO exibe como as fendas jurídicas se mostram no tecido religioso: jurar ou não sobre o Corão?; despir ou não um idoso senil?. E os extremos valores da honra e do amor, que sempre habitaram a espinha dorsal de um modo de pensar e agir, e porque não dizê-lo do próprio cinema iraniano, dão lugar a uma belíssima exaltação de uma compaixão dos perpetradores pelos perpetradores. Um jogo afinal vicioso, sem fim, e muito muito honesto.    

A SEPARATION estreia amanhã, dia 15, em Portugal.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Colheita de 2011


FILM SOCIALISME - Jean-Luc Godard
RESTLESS - Gus Van Sant
UNCLE BOONMEE WHO CAN RECALL HIS PAST LIVES - Apichatpong Weerasethakul
ESSENTIAL KILLING - Jerzy Skolimowski
MEEK'S CUTOFF - Kelly Reichardt
SOMEWHERE - Sofia Coppola
TREE OF LIFE - Terence Mallick
TRUE GRIT- Irmãos Coen
SANGUE DO MEU SANGUE - João Canijo
SUPER 8 - J.J. Abrahams

(Este ano ficou muita coisa por ver... o Moretti, os Dardenne, o Oliveira, o Iosseliani, o Suleiman, o Cavalier, os filmes do Frammartino, do Puiu, do Ujica, do Kechiche, enfim outro top 10 seguramente)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Drive - Nicolas Winding Refn



Videoclip é um lugar de passagem de imagens, ele próprio constituído um lugar de passagem na relação de heterodoxia da lógica vídeo por referência ao cinema. Mas mais do que saber se o videoclipe pode «sujar» o cinema, concentremos-nos em como pode remediá-lo (re-mediar). Câmara Lenta, imagem em freeze, deformação cromática e óptica, dependência da música, chromas, etc., isto são pontos objectivos que podemos agarrar quando falamos da estética videoclipe. A questão é que quando o cinema recebe essa estética tem a tendência a depreciá-la por referência ao concentrado de ideias formais (que implicam um concentrado de ideias de conteúdo, é certo) que fazem esquecer a nobreza narrativa ou, por sua vez, pós-narrativa da sétima arte. Contudo, estes elementos quando integrados numa lógica cinematográfica têm meios, eles próprios, de fazer esquecer a lógica decorativa que preside à comunicação com o público-alvo adolescente dos videoclipes, e mostrar a articulação destes elementos numa outra lógica de expressão, que pode e deve influenciar o cinema. Ou seja, há uma nobreza de expressão na linguagem de videoclipe que convém não ser obnubilada.

É com estas relações em mente que partimos para DRIVE, de Nicolas Refn, vencedor do prémio de melhor realizador na edição deste ano do Festival de Cannes. Apesar de não ter escrito o argumento - baseia-se numa obra neo-noir de James Sallis – Refn continua, sobretudo após PUSHER e BRONSON, numa via tortuosa e perigosa de afrontação dos dilemas ora patetas ora reais da masculinidade, através da explicitação da violência, que, num sistema de referências cool, só permitiu nos últimos anos considerar Tarantino, e mais transversalmente Kitano. E pelo caminho muitas fraudes, Gaspar Noés e companhia, muitos «génios» de profissão que vivem de manipular masturbatoriamente o vazio.

Ora DRIVE, não é masturbação visual, nem é obra de um aluno que copia e copia mal. DRIVE é um filme que não tem pudor, quer dizer, «arma-se em bom», desde logo erguendo esse valor do que é explícito, deixa pouco por ver, dá tudo, quer na lógica do que poderemos qualificar como videoclipe, já lá iremos, quer no seu sistema de referências. Ryan Gosling, o protagonista de DRIVE, é um stunt man em filmes de Hollywood, além de trabalhar numa garagem de um amigo. Apaixona-se, ou quer proteger, a vizinha do lado e na tentativa de ajudar o seu marido, ex-presidiário, vê-se no meio de uma armadilha. Esta sinopse, que podia ser a de um filme de acção straight to vídeo dos anos 90, é a plataforma de uma esquizofrenia saudável de elementos que vão desde os chase films dos anos 70, com Ryan Gosling, no seu scorpio jacket, a fazer a ponte entre Steve Macqueen e a parolice musculada de Vin Diesel, o ambiente tensional e atmosférico da banda sonora à anos 80. Depois há ainda a mecânica cirúrgica das sequências de acção como em Tarantino, a imobilidade melvilliana de Gosling, a fotografia de Newton Sigel, as caricaturas para cinéfilo ver de Ron Perlman e Albert Brooks, e por aí fora, numa rede interminável de referências.

Então, qual é o drama? O drama é que há pouco drama. O mundo de DRIVE é um espaço de imobilidade no que toca ao conflito emocional, à redenção operativa, à obsessão platónica pelo content above form. As personagens de DRIVE são assim e não evoluem, embatem umas nas outras como num entusiasmante ou entediante jogo de pinball, mas daí não saem. E é aqui que cabe referir que a suposta lógica «videoclipeira», «adolescente», de concentrado de estereótipos, em DRIVE encontra uma expressão digna que não deixa esconder uma vontade de ser cool, mas que constrói um universo de ritmo sonoro e visual que se sustém por si só. Dessa forma, esgravatar conteúdo dramatúrgico em DRIVE é procurar falsas pérolas, é infantilizar a dimensão performativa que a estética videoclipe pode aportar à permeabilidade (Gosling não é o imóvel? O que pouco fala e muito vê?) do cinema. E é esse embate cinema / formalidade sem conteúdo que permite a Nicolas Refn precisamente descolar da pura lógica do videoclipe. É que essa recriação de universos já trilhados (Coen, Mann, Tarantino…), com mais ou menos formalismo, também pode criar real, ou seja, conteúdo. Aquilo que «faltaria» a DRIVE.     

Se bem que faltando o engenho narrativo da maioria dos universos citados com que DRIVE quer comunicar - e que contaminam a grelha de análise do espectador - convém que se diga que o filme de Nicolas Refn é, a espaços, um verdadeiro festim para os olhos, e sobretudo para os ouvidos. E é, seguramente, um dos melhores filmes de 2011.