sexta-feira, 31 de março de 2017

Abismos

Publicar textos, frases, o que seja, em digital parece revestir a forma de certos lançamentos vigorosos para o abismo. Tudo fica disponível - para sempre? até quando? - e as palavras caem, uma a uma, até formar frases, despenhadas, a florir na escuridão. E o som que fazem, ao chegar ao fim desse abismo, é nenhum, porque não sabemos sequer se o abismo tem fim, ou se é apenas o silêncio próprio que fazem os grandes abismos, esses que, como Nietzsche advertiu, nos olham por vezes de volta, marotos, sedutores.

quinta-feira, 30 de março de 2017

Sons de culpa





quarta-feira, 29 de março de 2017

Ligação ao Delito de Opinião

O Pedro Correia do «Delito de Opinião» convidou-me a escrever um texto para o seu blogue. Perante convite tão gentil, e ante a liberdade de tema e de dimensão que me deu, procurei fugir ao cinema, às artes, e encontrar um assunto da dita «actualidade». As recentes mortes de várias mulheres às mãos de maridos ciumentos fizeram-me recordar mares passados, navegados, sabe deus a que custo. Mares dos direitos e dos errados, dos códigos e dos justos. O texto foi escrito com o coração na boca, mas é melhor assim quando nos entregamos sem medos à ingenuidade.


Obrigado ao Pedro e passem por lá. Aliás, nem vale a pena sugerir pois quem gosta de escrever e ler em blogues, reconhece este espaço de resistência que é, que se tornou ao longo dos anos, o Delito de Opinião.

terça-feira, 28 de março de 2017

Tony Manero


O meu último texto na pala de Walsh é sobre o segundo filme de Pablo Larraín, «Tony Manero». Um filme sobre um homem obcecado em imitar de forma perfeita a personagem do John Travolta no «Saturday Night Fever». Uma obra onde o terror e a política ocupam espaços indiscerníveis.

segunda-feira, 27 de março de 2017




«Publicity speaks in the future tense and yet the achievement of this future is endlessly deferred. How then does publicity remain credible - or credibly enough to exert the influence it does? It remains credible because the truthfulness of publicity is judged, not by the real fulfillment of its promises, but by the relevance of its fantasies to those of the spectator-buyer.» -

 John Berger

sexta-feira, 24 de março de 2017


A força dos meus sonhos

«Apesar das ruínas e da morte, 
Onde sempre acabou cada ilusão, 
A força dos meus sonhos é mais forte, 
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias. »

In Poesia (Sophia de Mello Breyner)

quinta-feira, 23 de março de 2017

like a beam from a lighthouse


«The convention of perspective, which is unique to European art and which was first established in the early Renaissance, centers everything on the eye of the beholder. It is like a beam from a lighthouse – only instead of light travelling outwards, appearances travel in. The conventions called those appearances reality.»,

 in Ways of Seeing (John Berger)

Seminário de Crítica de Cinema


Publicidade fora do prazo é uma arte ao alcance de poucos. Foi com muito prazer que participei neste seminário na Universidade da Beira Interior, na Covilhã, a convite dos Professores Manuela Penafria e Paulo Cunha. Em breve as comunicações serão publicadas, espero que aí, já tenha acertado os tempos das divulgações. 


sexta-feira, 17 de março de 2017

For a country that prides itself on its democracy, as America does, there is a long train of literature that is passionately anti-democratic, and not just from the unreconstructed right wing. Sometimes the enemy was democracy itself; sometimes the enemy was the system, as when the Frankfurt School expatriates and other neo-Marxians blamed not the masses but the mass culture industry through which devious capitalists manipulated people – dumbing them down. And sometimes the enemy was just plain obtuseness, which is why critic Dwight Macdonald coined the terms "masscult" and "midcult" to revile not only low culture but also a middle-class culture that had ridiculous pretensions to be higher than low. Today critics are less likely to excoriate popular culture as a whole than its various components – from reality TV shows to popcorn movies to Justin Bieber – but the sentiment remains. Culture needs gatekeepers to protect it from the hoi polloi.

That's important because there may be no more powerful public emotion in America than the contempt for contempt. In this theoretically egalitarian society, condescension is practically un-American, which is why ordinary Americans always seem to yearn for some form of redress against those who seem to think they are above the so-called masses. (This is also, by the way, one of the primary features of American politics, and it helps explain folks like Joseph McCarthy, Richard Nixon and Sarah Palin, who understand how to nurse resentments.) To take it one step further, it is so powerful an emotion that it may have been the real fuel for the internet, one of the central functions of which has been to challenge authority – to provide a democratising voice against the custodians of official culture. Thus the old spent war between high and low seemed to reconstitute itself into a war between traditional media and new media.

quinta-feira, 16 de março de 2017

Insiang (1976) de Lino Brocka

Bebot: Admit it. You don't want to go to the movies with me. You don't love me anymore.
Insiang: I love you, Bebot. I love you but I don't like what you do to me in the movie theater.
Bebot: I'm a man, Insiang. I can't control myself.

Houve um tempo, nos anos 70 e 80, em que o nome de Lino Brocka (1939-1991) era sinónimo de cinema filipino, sobretudo pelas obras de pendor social e de oposição clara ao regime ditatorial de Ferdinando Marcos que com mão de ferro governou o país até 1986. Com quase 70 filmes no currículo, Brocka terá caído algures no esquecimento a partir do início dos anos 90, provavelmente devido à sua prematura morte – contava então apenas 52 anos – num desastre de automóvel. No ocidente, os olhos para a miséria política nas Filipinas (e também para o talento cinematográfico de Brocka) abriram-se pela mão do inevitável Pierre Rissient que seleccionou este Insiang (1976), que muitos consideram a sua grande obra-prima, para a Quinzena dos Realizadores em Cannes. Era a primeira vez na história que um filme filipino "subia a estes patamares".
Entretanto, o cinema do país foi ganhando outros  nomes – hoje o circuito de autor e o cinéfilo reconhecem imediatamente os nomes de Lav Diaz, Brillante Mendoza ou Raya Martin – e Brocka permaneceu como a influência sem nome em muitos destes artistas. Fast forward para 2015 e novamente para Cannes. O filme volta a passar no festival, desta vez em cópia restaurada pelo The Film Foundation para o World Cinema Project de Martin Scorsese, passagem que teve como rasto a edição em DVD e Blu Ray, pela British Film Institute, a qual junta outro dos seus filmes, Maynila: Sa mga kuko ng liwanag (Manila in the Claws of Light, 1975).

Se este trajecto nos indica que a obra de Brocka irá conhecer, pelo menos em parte, uma maior visibilidade no circuito do home cinema e do peer to peer, é altura de perceber porque tem razão de ser tal visibilidade. Vamos então ao filme. É difícil conter a metralha da metaforização quanto ao início de Insiang. Afinal de contas assistimos a um filme de uma jovem que se vê a habitar, com a mãe e com o namorado desta, num subúrbio pobre de Manila e que acaba por ser violada por este. Esse ataque à sua carne não deixa de ficar antevisto na sequência inicial na qual vemos o dito violador a trabalhar num matadouro local: isto é, a abrir porcos com uma afiada faca e a lançá-los, ao som da impossível banda sonora dos urros de desespero dos animais, para uma tina de água fervente e purulenta com o objectivo de lhes tirar a pelagem.

Estas imagens "violentas" seguem depois com o genérico, música flautada, doce, e as primeiras impressões de pobreza e dureza na vila de Tondo – meninos descalços a apanhar pedras do chão, homens em tronco nu a carregar pesadas cestas, pratos de arroz servidos de um balde na rua – mantêm um certo registo realista e documental que vai acompanhar todo o filme. A partir daqui seremos introduzidos à família da mãe Tonya (a recorrente actriz de Brocka, Mona Lisa), traída e abandonada pelo marido e que expulsa de casa a cunhada e seus filhos para poder receber um homem mais novo, o seu namorado, Dado. A filha, Insiang (Hilda Koronel) trabalha duramente apartando a ira da mãe, e espicaçando o seu próprio namorado para poderem sair daquela "prisão" de pobreza e opressão.

Uma das ideias que tem sido recorrente é a de associar este Insiang ao subgénero do thriller e do terror, rape and revenge mas com um fundo melodramático. De facto, sem querer revelar muito do desfecho final, torna-se difícil saber quem é vítima e quem é carrasco no argumento escrito por Mario O'Hara, e sequer perceber completamente qual a dimensão e o alvo da vingança da jovem que, se é fisicamente abusada por Dado, não é menos violada psicologicamente, pela própria mãe. Esta relação mãe-filha, tema recorrente no cinema filipino da época, é tratada de forma suficientemente ambígua por Lino Brocka para que não saibamos bem que parte do filme possui uma dimensão de tragédia grega ou shakesperiana (fala-se muito dos ciúmes de "Othelo" a propósito do filme) e que parte se constrói no puro artifício da cor, do uso da música (aos uivos dos porcos, junte-se o uivo dos vizinhos e o correr constante da torneira em casa), da representação, por vezes, over the top. Esses são os elementos que convocam Douglas Sirk [em especial, Imitation of Life (Imitação da vida, 1958)] ou o seu "seguidor" alemão, Fassbinder, para a equação do melodramático e do kitsch no filme filipino.

Se falámos sobretudo do lado exagerado e da dimensão trágica ela não é desligável do fundo dos planos de Brocka que raramente procuram o grande impacto emocional mas preferem salientar as grades da "prisão social" em que vivem as personagens.  São sempre as roupas estendidas, as fábricas em construção ou as ruas cheias de gente. E são literalmente as ripas de madeira que separam os espaços das casas e da lojas do exterior, e figurativamente os preconceitos de um universo machista no qual os homens encontram sempre justificação para os seus actos de cobardia, terror ou preguiça. É o namorado de Insiang, Bebot, que tem medo de Dado e prefere afastar-se dela a enfrentar o seu agressor. É outro rapaz que gosta de Insiang mas que não tem coragem para lhe contar, excepto quando já parece tarde demais. E finamente, o próprio Dado, desempregado, que vive do álcool e do jogo, pago com o dinheiro de Tonya, e que, quando confrontado por esta sobre a violação da filha lhe diz: "It's your daughter's fault. She bathes naked and lies nude in bed. I'm just a man..." Algo semelhante (ver epígrafe) já tinha saído da boca do namorado que acaba por aproveitar-se dela numa cena muito vermelha e artificiosa em que ele a leva a um quarto de hotel para terem sexo em troca, presume-se, de ajuda contra a opressão de Dado.

Termino com duas imagens fortes deste Insiang: uma, a sequência azul escura (é a luz da noite filtrada pela lua?) em que Insiang vem fechar a torneira que corre água a meio da noite e Dado a agarra, não sem luta, terminando por desmaiar nos seus braços, desnudos e tatuados. A violação segue-se em off, mas este esbracejar já deixou tudo tão evidente e desprotegido... Duas, aquela em que a filha revela à mãe, na prisão, como se vingou do seu namorado e no fundo... dela. As lágrimas correm, pedindo perdão, e o rosto-ecrã da mãe mantém-se impassivo, fecha-se como um "the end" para o filme. Só depois, já Insiang se vai meter outra vez na prisão das ruas de Manila – planos largos e desolados [se I Spit On Your Grave (Mulher Violada, 1978) fosse um melodrama?] - é que desabam as lágrimas da mãe, entre-cortadas pelas barras da prisão.

Dois momentos trágicos num filme tão mágico e tão seco, como corpos a serem abatidos pela vida, pelo passar do tempo.

quarta-feira, 15 de março de 2017

O nosso maior crítico

Há uns anos estava eu a terminar os meus estudos de cinema no conservatório pensei em perceber se seria possível fazer um estágio curricular nessa «casa de vício e de virtude» chamada Cinemateca Portuguesa. Ao longo desses anos tinha passado intermináveis horas naquelas salas de cinema e pensar agora em estagiar naquela «igreja», que tanto me tinha dado, parecia-me uma pequena homenagem. Mas quem contactar? O «deus» João Bénard estava fora de questão (como chegar à fala com ele?, o que lhe havia eu de dizer, afinal?). De resto, não conhecia mais ninguém. Mentira, conhecia e admirava os textos do Luís Miguel Oliveira que sabia que lá trabalhava na programação. Então resolvi fazer essa «loucura» de lhe mandar um email, não só escrevendo-lhe sobre como gostava do que escrevia, mas sobretudo perguntando-lhe quem poderia contactar para saber se seria possível um estágio. O Luís agradeceu o email e encaminhou-me para a pessoa certa, já não me recordo quem. Entretanto, fui a uma pequena entrevista, fiquei no estágio e foi aí que de facto vim a conhecer o Luís um pouco melhor. Ao longo dos anos torná-mo-nos amigos, não muito próximos é certo, mas o suficiente para partilhar algumas refeições e sobretudo, entre uma e outra piada, falarmos um pouco de cinema, essa «holy whore».


Mas não vinha aqui falar-vos do Luís, propriamente. Vinha falar-vos antes do seu trabalho enquanto crítico de cinema.  O jornal "Público" recentemente disponibilizou os links para os textos que escreveu de 99 até agora e são 384 páginas de links para textos. Ou seja, são 384 páginas de provas de como o Luís é, de caras, o nosso maior crítico de cinema. E sei bem que, embora a crítica genericamente seja um exercício parcial e apaixonado, muitos dos outros críticos portugueses, alguns dos quais conheço e outros dos quais me orgulho de ser amigo, certamente concordarão comigo. Se digo que o Luís é o nosso melhor crítico não o digo de forma vã e desapaixonada. Ao olhar para a tarefa de crítico, um exercício hoje em perigo de extinção (e na expressão «crítico de cinema» são ambos os termos que estão hoje em perigo), tenho de dizer que parte daquilo que me impele (ainda) hoje a escrever sobre imagens se deve aos textos, às reflexões, às dicas, às provocações, às piadas do Luís, que ao longo dos anos me fui habituando a ler, passado que estava o estado do concordar ou do discordar sobre os filmes. Aliás, hoje quando leio o Luís, já não é (apenas) para saber o que ele achou do novo Gray ou dos enganos dos óscares. Leio-o porque quero saber como é que o Luís vê o mundo, como está, quais as suas alegrias e medos. Essa partilha, que só está nas entrelinhas do que escreve, é o que faz a grande crítica de cinema. Faz emergir o homem do meio das imagens, do meio da literatura.

Dir-me-ão: mas isso não é motivado por essa tal leitura recorrente de alguém que admiramos intelectualmente e que entretanto se torna um amigo? Talvez. Mas digam-me cá: quem em Portugal é capaz de escrever textos complexos com prosa assim tão leve e simples? Quem é capaz de manter um fino sentido de humor sobre o cinema, os filmes, (a vida), sem nunca procurar culpados e procurar vinganças? Quem é capaz de fazer exercícios de divagação de memória prodigiosa e de, através de um ou dois detalhes visuais, nos colocar no centro da acção de um filme ou da obra de um cineasta? Quem em Portugal resiste, como o Luís, a escrever pondo o ego de fora, ou refugiando-se em expressões poéticas quando o argumentário secou? E, finalmente, quem é capaz de tornar, como ele, um filme medíocre numa estimulante démarche pela história do cinema, num trampolim para deliciosas histórias de pura cinefilia? A resposta a estas perguntas é simples. Muitos críticos conseguem-no,  embora parcialmente. Mas talvez só o Luís reúna todas estas qualidades, a todo o tempo.

Não creio que valha a pena trazer para aqui exemplos concretos da sua prosa, que urge publicar como um todo, como provas do que acabei de dizer. Basta pegar num texto ao calhas e tudo se torna tão evidente. Isto porque cada texto de Luís Miguel Oliveira é a prova de que Luís Miguel Oliveira é o melhor crítico de cinema português da actualidade.

segunda-feira, 13 de março de 2017

Sanshō Dayū


«Sanshō Dayū» de Kenji Mizoguchi, passando-se no período Heian da história do Japão (794 - 1185), não deixa de ser um filme sobre o complexo de culpa nipónico em face das decorrências da Segunda Guerra Mundial. É também um filme sobre a instauração da democracia e do liberalismo no país.  E sobre o papel subalterno e sacrificial do sexo feminino numa sociedade machista e feudal. Sobre a instauração da lei por contraponto com os privilégios de sangue. Sobre o fim da escravatura, sobre a importância de se ser ser humano, isto é, um ser com piedade, ou como dizem os ensinamentos do pai ao filho, Zushio, «without mercy, man is like a beast. Even if you are hard on yourself, be merciful to others".

Mas dizer isto era não dizer nada sobre «Sanshō Dayū». «Sanshō Dayū» é um filme sobre cantar para se chamar os filhos, numa música que desaba pela planície e atravessa espaços e tempos. É um filme sobre ramos de árvores que apenas se partem a quatro mãos, sobre estatuetas e deuses da piedade, sobre as ondulações da água que lembram do sacrifício e do passado, sobre a impossibilidade de ver o rosto de um filho mas sabe-lo de cor. Mas mais. «Sanshō Dayū» é sobretudo um filme erguido sobre o cinema que ali está (para todos os que o quiserem ver) como um «ferro em brasas», como o que os escravos sentem na carne ao tentar escapar do campo de trabalho de Sansho the Bailiff. Um ferrete que marca para sempre os que tentam escapar, como marcado fica o olhar, a memória, a visão do mundo do espectador que, como eu, o vê pela primeira vez.  De «Sanshō Dayū» não há escapatória possível. E tão reconfortante é saber que ele aqui nos fica como uma prova, na pele e no olhar, do quão belo o cinema em tempos foi. 

sexta-feira, 10 de março de 2017

Animais alternativos

Gaivolta – uma gaivota bem domesticada;

Elefonte – um elefante com uma tromba multiusos;

Hihihiena – uma hiena onomatopeica;

Tu-Barão Trepador – um tubarão que lê Calvino;

Lulalálá - uma lula nos ensaios;

Bufálico- um búfalo orgulhoso da sua masculinidade;

Formega- uma formiga com a mania das grandezas;

Arranha- uma aranha preguiçosa para cortar as unhas;

Baileia- uma baleia que entrou no conservatório de dança;

Óhvelha- uma ovelha de rudes modos;

Crocãodilo- um crocodilo de pai desconhecido;

Abreutre- um abutre que tenta sempre meter o bico onde não é chamado;

Leopardoce- um leopardo com diabetes tipo 2;

quarta-feira, 8 de março de 2017

terça-feira, 7 de março de 2017



«Revendo então a rapariga do balouço, Lola Montès da minha estimação ou os planos-seqüência e o split screen de The Boston Strangler (Meu Deus e esquecia-me eu de falar de Tony Curtis!), perguntei-me porque é que nunca tinha pensado num ciclo Fleischer em Lisboa. Falei com ele (olhos muito azuis, cabelos muito brancos, a simpatia em pessoa) e aceitou logo o convite. Disse-me que estava a escrever memórias e que contava publicá-las em 1993. Seria um bom ano para a retrospectiva. Depois escrevemo-nos (guardo cartas de Fleischer na Cinemateca), as memórias saíram - Just Tell Me When to Cry - mas, quando começaram as buscas das cópias, eram pálidas e louras as cores que jamais vira tão verdes ou tão encarnadas. Resolvi adiar, até que houvesse material mais condigno. Nunca desisti, mas o tempo foi desistindo por mim. O gênero de coisas que nunca se faz, mas que eu, em me distraindo, deixo correr até ser tarde demais. Agora, há melhores cópias. Mas não pode haver um Ciclo Fleischer com Fleischer, porque Fleischer se foi embora para não mais voltar. E não acredito que haja nunca um ciclo Fleischer, porque o único que o podia organizar - modéstia à parte, ou não desfazendo, como preferirem - está a três meses de ser abatido ao ativo, em tempos em que a faca e o queijo se juntaram em boas mãos. Richard Fleischer não é comida para ratos, ainda por cima daquela espécie que, ao contrário da Alfreda de Agustina e de Oliveira, não foi educada a roquefort nem a camembert».

segunda-feira, 6 de março de 2017

A morte laranja de Edward G. Robinson


Não posso dizer que «Soylent Green» seja um dos meus Fleischers favoritos. A razão talvez seja porque as cores verdes da fotografia, das imagens promocionais, esmorecerem hoje na tela, assim como desmaiaram quase todos os filmes distópicos da época, ou anteriores, lembro-me do «Fahrenheit 451» ou do «Barbarella». São filmes que, como apostam numa visão para o futuro, são logo desmentidos por esse futuro, entretanto tornado presente. Ou quase, estamos já próximos do 2022 em que se passa esta história de crime de magnatas, de bifes pendurados como jóias, de oceanos mortos e -  imagem impressionante esta - escadas de acesso aos prédios cujos degraus estão cheios de pobres a dormitar e em que o porteiro se converteu num barrigudo de camisola de alças, empunhando uma espingarda automática.

Além dessa visão de um mundo extinto, o mistério que ocupa Charlton Heston - actor cujas linhas duras, dentes quadrados, sempre parecem ser adequadas à dureza apocalítica do presente - empalidece nas buscas de um motivo e de um grande culpado para o assassínio da personagem de Joseph Cotten, empresário das Soylent Corporation, produtora de comidas artificiais, uma vez que as que outrora conheceramos estarem reservadas à elite. Em vez disso, a «última ceia» que partilha com Edward G. Robinson, e a «ida para casa» deste (Robinson morre no filme e, na realidade, 9 dias depois) tornaram-se o centro cinéfilo intemporal deste filme. Há um lado triste e lírico nessa cerimónia pop fúnebre do seu adeus, um Robinson, muito debilitado a ver imagens do mundo como este era no passado - os mares, os animais, os céus, ao som de Tchaikovsky, Beethoven e Grieg - e Fleischer a participar nessa derradeira homenagem, através de grandes planos para imortalizar o rosto alheado, saudoso de um dos maiores actores da história do cinema.

Há uns meses escrevia aqui sobre o final de «Rabid» de Cronenberg, mais particularmente sobre um corpo jogado ao lixo como marca da falência deste e da crescente interpenetração com a «carne» tecnológica, temas que muito interessaram o realizador canadiano. Aqui, em «Soylent Green» os corpos também são metidos em camiões do lixo e - spoiler - convertidos secretamente nessa espécie de contraplacado verde que as pessoas comem chamado precisamente «soylent green». Mais interessante do que este desfecho circular, canibal - e Fleischer sabe-o, pois termina com o recorte da mão levantada de Heston a avisar o seu chefe do esquema maldito e a ser levado (para ser comido?) por aqueles que sabemos já estarem envolvidos -, é pensar nessa passagem do corpo de Robinson, actor cansado do cinema que por ele passou (tão diferente e vital o fim dele em «Little Ceaser», por exemplo), aos actores sem corpo, aos filmes sem cinema, a um mundo todo verde sem já espaço para uma morte laranja (a cor do pôr-do-sol, mas também a cor favorita da personagem de Robinson).

Personal Shopper (2016) de Olivier Assayas

Segundo reza a história, em 2015, Assayas estava nos Estados Unidos a preparar uma produção americana que caiu por terra mas não foi por isso que ficou parado. Mantendo a sua impressionante média de um filme a cada dois anos, escreveu, num ápice, uma espécie de volátil declinação de Clouds of Sils Maria (As Nuvens de Sils Maria, 2014), o seu filme anterior. Se neste explorava sobretudo a relação da grande actriz francesa (Juliette Binoche) com uma sua assistente (Kristen Stewart), agora resolve manter apenas Stewart, na mesma como assistente de uma mulher de elevado estatuto, ao caso uma modelo muito famosa para quem serve de “personal shopper”.

É pois no meio de jóias da Cartier e de vestidos de milhares de euros das mais luxuosas lojas de Paris e Londres que vamos encontrar Maureen Cartwright, (a personagem de Stewart) e o seu dilema espiritual: o irmão medium morreu subitamente mas prometeu que do além vida lhe daria um sinal. Pois que tudo se trata então de perceber que a sua carreira na pintura está em pausa até que o bendito irmão lhe parta um copo ou lhe abra uma torneira na sua antiga casa. Até isso acontecer, Stewart ganha a vidinha agarrada ao expoente do materialismo, maldizendo a sua sorte.

Personal Shopper (2016) é então uma história de fantasmas muito cosmopolita e ao mesmo tempo um coming of age de uma jovem à procura de um rumo para a sua vida. Mas é mais, Assayas quer reflectir sobre o omnipresença das redes sociais como uma nova espiritualidade. Através do telemóvel de Stewart, os fantasmas devém um thriller sobretudo a partir do momento em que começa a receber mensagens de um desconhecido colocando-nos num dilema ghost in the machine, pondo-se a dúvida se o suspeito é de carne e osso ou é apenas uma claridade marota, desejosa de prolongar o seu amor fraternal.
Na sua crítica ao filme anterior, o João Lameira falava da importância do subtexto de Clouds. A mesma coisa parece acontecer aqui. O caminho do terror sobrenatural, assim como o do thriller (que apesar de tudo é bem mais interessante com as cenas em que Kristen experimenta os vestidos da sua patroa a lembrarem a duplicidade de Vertigo ou o papel das mensagens de telemóvel não lidas em tempo real a desabarem no presente como a iminência de um crime a qualquer segundo) não são bem resolvidos por Assayas uma vez que desde início nos são apresentados como cosidos um ao outro.

Já o subtexto, ou o espírito para lá do texto, resulta melhor. Os olhos (não amargos) mas de olhar cansado de Stewart denunciam o “excesso de real” que reconhecemos, os cafés, os cigarros, a presença constante do telefone, as compras, as viagens irrequietas, os táxis, etc. Então é sobre este cansaço que opera esta procura de uma espiritualidade, espaço esse do qual as outras personagens surgem arredadas. Se sugiro que Personal Shopper possa ter ficado apenas com o espírito do filme anterior de Assayas é porque parece que todas as suas personagens aqui se evaporaram. A personagem da patroa de Stewart é semelhante, mas passa-se de uma Binoche presente a uma Nora von Waldstätten praticamente ausente, sempre inacessível ou no fundo dos enquandramentos. O mesmo se pode dizer que as presenças masculinas que rodeiam Maureen, todas elas fantasmáticas: já se referiu o irmão morto, mas o mesmo acontece com o namorado distante, intermediado (enclausurado) pelo janela do skype, ou com o namorado de Kyra que é uma figura intermitente.

Por estas razões, o thriller e o terror são corpos demasiado pesados para a leveza desta ideia de Personal Shopper: a virtualidade das relações humanas capaz de configurar as pessoas em espectros do quotidiano. Mas depois ficamos com o corpo de Kristen Stewart – temeroso, agitado, desejante – à volta do qual a câmara gira. É esse corpo, como lutador incansável contra a invisibilidade, que contradiz afinal tudo o que acabámos de ver. E ainda bem que assim é. Afinal parte do fetichismo da cinefilia começa aqui: Stewart veste as roupas de uma estrela, um realizador filma até à exaustão a “sua” estrela. Essa cinefilia parece também fazer parte do sentido do prémio de realização que o francês venceu em Cannes no ano passado por este filme.

domingo, 5 de março de 2017

Jackie

 Os meus olhos de rato velho e preconceituoso, confesso, olharam para o poster de «Jackie» e pensaram: «não, não vou ver isto». Mais uma biografia onde se sucedem cenas apressadas e metidas a ferros para ilustrar a cronologia de uma figura histórica, ao mesmo tempo que se tece um documento laudatório, uma lavagem da história salientando pequenos/grandes feitos e removendo cirurgicamente nódoas de pequenos/grandes pecados? Hmm... O certo é que, nunca tendo visto um filme do chileno Pablo Larraín, tinha, apesar de tudo, alguma curiosidade. Há que dizer que a recepção do filme, pelo menos entre nós, e embora com algumas excepções, passou um tanto despercebida.



Percebam-me, não é que Jacqueline Kennedy não saia favorecida do filme, é apenas porque parte da técnica do seu favorecimento é menos narrativa e mais... cinematográfica. Desde os primeiros minutos, após o dispositivo de entrevista que vai permitir recordar os eventos da morte do John Kennedy, somos instalado com Portman no luto imediato. Não vimos as célebres cenas da explosão da cabeça do presidente americano (nem precisávamos), e já acompanhamos as lágrimas e trejeitos traumatizados da primeira dama, já seguimos o espectro magro a avançar pelas corredores e salas enormes da Casa Branca, a desorientação de uma mulher entre tanta gente a dizer coisas de dimensão política e pragmática tão distantes deste primitivo sentido de perda de um ente querido.

O obsessiva câmara de Larraín ao seguir Portman, a frontalidade das suas composições da Casa Branca naquele espaço tão vasto, vão meticulosamente construindo esse luto, essa desordem da psique. E curiosamente a nossa empatia não surge do que Jacqueline acabou de viver mas sim da junção da nossa memória histórica dos eventos com o sangue dos vestidos, as jarras coloridas, os espelhos que devolvem uma presença inquieta, as linhas rectas de um espaço que parece ter perdido todo o sentido.

Por estas razões «Jackie» é um filme que procura, pela comprometimento com uma proximidade e um ponto de vista individual de uma mulher - que nunca, nunca larga, vejam aquelas planos contra-picados do seu rosto entrevisto pelos véus negros, na parada nas ruas; foi uma decisão sua para homenagear o marido perante o povo nas ruas, mas este povo eclipsa-se praticamente da lente de Larraín -, mas dizia, esse comprometimento ao individual é a opção que permite explicar-nos a relação entre o glamour da política e o desgosto de uma morte. Aquilo que deixa compreender os rituais de uma cerimonia fúnebre de estado (com todas as precauções e maquinações politicas que isso envolve)  e um desejo de dizer adeus a um marido.

Posso admitir que a banda sonora de Mica Levi (o compositor do sobrevalorizado «Under the Skin») ou ou os diálogos com o padre (um dos últimos papéis do genial John Hurt no cinema) puxem o filme para aquele território que vos descrevi no início. Mas o que fica deste «Jackie» é sobretudo um filme construído sobre a paranoia de uma mulher a quem lhe caiem os miolos do marido no colo e que depois tem de arrumar as suas coisinhas da casa onde morava e decidir onde e como vai enterrar o seu homem.