sábado, 29 de outubro de 2016


sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Escuridão

Há pouco um vizinho à porta do meu prédio, olhando para o meu cão: 

-O meu morreu há uns dois meses. Desde aí é uma escuridão lá em casa.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Não antecipes a tristeza
de morrer: não queiras muito
às lágrimas: consola-te
bebendo-as. E sê grato ao dia
em que, vivo, as tragaste.


António Osório

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

O fim do mundo, ou o que fazer depois dos 30

Quando Xavier Dolan em 2014 (e então com 25 anos) venceu em Cannes o prémio do Júri por Mommy (Mamã, 2014) ex-aequo com Jean-Luc Godard não houve quem não reparasse no simbólico acto comparativo. E se os esperançados num novo wonder kid se apressaram a louvar a bonita “passagem de testemunho”, os cépticos viram este paralelismo como um símbolo do “declínio do Ocidente” (só que no cinema), e o filme do jovem canadiano como o mais perfeito exemplo desse Adieu au Langage (Adeus à Linguagem, 2014) para o qual o “jovem” franco-suíço alertava.

Gostos e ódios à parte é impossível ficar indiferente ao facto de Xavier Dolan ser hoje o cineasta jovem mais premiado do cinema contemporâneo. Não que isso ateste necessariamente qualquer qualidade, mas ao invés permita pensar essa precocidade por relação a dois modelos separados por um abismo: os modelos de Mozart e, just for the sake of our times, de Justin Bieber por exemplo. Talvez por isso, parte do que importa hoje nos filmes de Dolan seja menos o de os considerar anonimamente, de per si, mas antes essa lúdica tarefa de descortinar o genial na charlatanice ou viceversa.
Dois anos depois, Dolan volta a vencer em Cannes o grande prémio do Júri (desta vez sozinho) com Juste la Fin du Monde (Tão Só o Fim do Mundo, 2016). Pela primeira vez a trabalhar com um cast francês – Vincent Cassel, Marion Cotillard, Léa Seydoux, Gaspard Ulliel, Nathalie Baye – Dolan adapta uma peça de Jean-Luc Lagarce e filma em 6 dias no Canadá esta história de um jovem escritor que, depois de mais de uma década ausente, regressa à casa de família para lhes contar que a sua morte está eminente devido a uma grave doença. De certa forma Juste la Fin já tinha sido feito em 2013: Tom à la Ferme  (Tom na Quinta) também é a adaptação de uma peça de teatro e o regresso ao interior do Canadá para lidar com uma morte, a do namorado, e a indirecta revelação à família deste da sua orientação sexual.
Se neste filme, um dos seus melhores, havia uma ambiência de thriller, de peso psicológico em torno da homofobia e da dominação, agora, em 2016, este regresso ao tema do próprio regresso parece tornar-se um tanto abstracto narrativamente. O escritor Louis passa o filme a observar os efeitos que a sua ausência causou na sua família (a mãe que o admira não o compreendendo, o violento irmão que acha que esse tique do observador e do detalhe é uma estratégia de superioridade e a irmã mais nova, que cresceu com esse vazio da sua presença) e em contraste Dolan povoa o seu filme de uma banda som que é sobretudo (mas não só) uma banda grito-discussão. Se em Mommy esse falar constante provinha de uma doença bipolar do seu protagonista e de uma energia própria da juventude do cineasta que “gritava tecnicamente” (lembrem-se do formato aprisionante 1:1), aqui parece que Dolan quer trabalhar sobre a ideia do contraste. Diz-se tudo, agitam-se os corpos, dança-se, berra-se, enfim, uma gritaria sem fim, e são no fundo as palavras importantes que ficam por dizer.
Estratégia esta arriscada pois trata-se assim de construir um filme com um corpo histriónico e cujas personagens acabam por ficar pouco desenvolvidas e as situações algo formatadas (por exemplo, o filme apoia-se em demasia nesta ideia de uma nostalgia bonita e expressiva do relembrar do passado). Isto porque tudo se deve submeter a esta ideia de contraste entre o grito e a mudez. Mas sendo rigorosos Mommy já trabalhava este contraste: a noção que por detrás das asneiras e das discussões constantes se esconde o silêncio, a consistência e a felicidade das relações familiares. Contudo, este tinha um caminho com mais percalços narrativos. Juste la Fin du Monde acaba por ser um regresso aos temas de Dolan, mas sem ter algo de muito novo a dizer. Assim, ficamos apenas como os contornos, o estilo brique-a-braque do virtuoso que ora emula Gus Van Sant, ora faz lembrar Spring Breakers de Harmony Korine.
Leio por aí sobre a transcendência dos rostos destas personagens colocadas no “fim do mundo”. Talvez seja caso para dizer que um ambicioso projecto de projectar Dolan como um anti-Dreyer que chegasse ao mesmo objectivo, se cole demasiado ao mel do pior Wong Kar-Wai para lhe podermos dar crédito. Em resumo, este é talvez o filme que mais se parece com uma primeira obra dos que vi do canadiano, isto mesmo partindo do pressuposto de que um dos seus méritos é o de tornar as sequências de montagem-videoclipe em momentos mais refrescantes do que desvirtuadores de uma linguagem.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Night Pill #1


and I turned 'round and there you go
And Michael, you would fall and turn the white snow red as strawberries in the summertime
Maravilhoso excerto de uma entrevista com Burroughs e Cronenberg feita por uma senhora chamada Lynn Snowden:

"William, interessa-se por insectos?" pergunta Cronenberg, sobretudo para meu benefício. A pergunta resulta num olhar cauteloso de Burroughs na nossa direcção. "Não propriamente," acaba por dizer. Após alguns minutos de uma conversa muito confusa, Burroughs exclama: "Oh, insectos! Julguei que tinha dito incesto'"

sábado, 15 de outubro de 2016

Fuocoammare (2016) de Gianfranco Rosi

Leio por aí que o novo documentário do italiano Gianfranco Rosi, embora seja sobre a ilha de Lampedusa (local de entrada na Europa de milhares de emigrantes clandestinos vindos do Norte de África e Médio Oriente), embora tenha sensibilizado a presidente do júri do Festival de Berlim, Meryl Streep, que lhe deu o Urso de Ouro pelo seu tema “urgente”, e que embora tenha convencido o primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, a levar 27 cópias do filme para os membros do Conselho Europeu, que, apesar de tudo isto não seria um filme que tomasse partido. Diga-se já que creio que nenhum espectador ao de cimo da terra duvidará do “partido” (no sentido político do termo) do realizador depois de ver Fuocoammare (Fogo na Água, 2016). E isso não é necessariamente mau.

É certo que Rosi, depois de ter vencido Veneza com o seu documentário anterior (sobre a Grande Raccordo Anulare, a estrada que circunda Roma) talvez tenha aprendido e extirpado um pouco o excesso humanista de Sacro Gra (2013) que procurava ver na observação mosaico dos habitantes dos arredores da capital um símbolo da decadência italiana. Mas este extirpar significa apenas que não há comentários em voz off e que na maioria dos casos o realizador se limita a filmar paralelamente, e com planos longos, dois universos que quase não se tocam. Temos então de um lado, a chegada e inspecção dos emigrantes em barcos sobre-lotados após dura luta pela sobrevivência, e do outro, o quotidiano de uma família de Lampedusa onde sobressai o jovem Samuele que ora vai com o tio pescador ao mar, ora cresce entre fisgas, destruição de cactos à faca (no filme anterior, Rosi filmava um cirurgião de árvores “para compensar”), e uma vida de ligeiros percalços.
Talvez a história da família surja assim como um contraponto, um filme activista que procura disfarçar o seu activismo. Ou então lançar o espectador na tarefa de traçar semelhanças entre os dois mundos. O da família de pescadores, que deseja ir para o mar, e os refugiados que “sabem que o mar não é uma estrada” (como canta, de improviso, um dos sobreviventes num dos momentos mais intensos do filme) e por isso dele querem escapar. Ou entre o olho preguiçoso de Samuele (o médico tapa-lhe o olho bom, para fazer o outro ver melhor) e o olho magoado de um dos refugiados, que, num daqueles planos arrasadores que destrói tudo em redor, chora uma lágrima de sangue.
O olho que pouco vê (o de Samuele, mas também o olhar ocidental que Rosi quer fazer vermelhor) não consegue enxergar o olho que chora. Uma lágrima salgada misturada com o sangue da sobrevivência, tal como o fogo invadiu o mar nessa velha canção siciliana que dá título ao filme e que um dos animadores da rádio local passa. Esta narra um episódio de bombardeamento de um barco italiano durante a segunda guerra mundial. Agora o fogo permanece no mar com esses corpos exaustos, desidratados, uns vivos outros mortos, que chegam aos montes e que ou são protegidos do frio em cobertores prateados ou, já mortos, são ensacados.
Refira-se ainda um outro plano, já perto do final em que Rosi filma o convés de um barco de refugiados, cheio de lixo, cobertores, garrafas de água vazias e pessoas amontoadas. Um quadro de natureza morta que é de facto composta de seres humanos mortos. Subsiste aqui a dúvida: qual partido toma Rosi? O da composição do plano ou a presença da sua câmara (apenas com o próprio Rosi à câmara e outra pessoa no som) naquele cenário flutuante de inferno? Pela prosa de uma tentativa de redenção pelas suas imagens e pelo cinema, ou uma poética assente na miséria humana? Estas oposições não podem deixar de pôr-se na carreira de um cineasta cujo tema predilecto tem sido a margem e seus habitantes, margens essas que progressivamente agora lhe conquistam um lugar no centro do cinema contemporâneo de prestígio.
Sobre essa dualidade, olhe-se para o Urso de Ouro deste ano, pesando os pratos da balança: se é verdade que há qualquer coisa de carnívoro em premiar o que quer que seja depois de vermos estas imagens, também é certo que esta promoção de Rosi talvez seja um preço justo a pagar pela realidade para que, de facto, mais consciências despertem o olhar para a tragédia que Fuocoammare quer dar a ver.

sábado, 1 de outubro de 2016

Jogado ao lixo




Imagem poderosa esta do fim de "Rabid" (1977) de David Cronenberg. Marilyn Chambers, actriz porno a quem lhe cresce uma pila na axila (sim, rima), jogada ao lixo. Corpo descartado, fim possível de uma epidemia que vive do sangue e da contaminação. Os primeiros filmes do canadiano, que têm premissas com maior longevidade do que as personagens que as carregam (cinema abstracto sobre tripas, sobre a política das tripas), têm em comum esta transformação do papel da sexualidade. Mentes que varrem corpos, corpos que produzem carne ao ritmo da sua ira, contaminações e experiências que alteram o papel da penetração, da maternidade, do solitário pensamento obsceno. O corpo da antiga sexualidade, uma sexualidade que se vendia, desejava, despojada e sem pudor é recolhida às terças. O domingo talvez seja o dia do papelão, mas a reciclagem começava aqui.