quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Doclisboa: Lovely Diary

Sobre uma obra tão extraordinária como San Zi Mei (Three Sisters) de Wang Bing, vencedor do prémio deste ano para melhor longa metragem internacional no Doclisboa, apetece fazer de advogado do diabo. Não porque não tenha gostado do filme, bem pelo contrário, mas porque parece útil submete-lo a provações que melhor confirmem a sua genialidade. Primeiro: será que a sensibilização ocidental e premiação de um filme sobre a pobreza rural no outro lado no mundo é uma forma de nos fazer sentir bem, caridosos? Segundo: haverá um sentimento de compaixão perante as três irmãs que vivem e trabalham como adultos, o que implica uma vitimização da família? Terceiro: será a longa duração do filme de Wang Bing (153 minutos) um sinal de que não há no cineasta chinês uma escolha muito criteriosa dos planos, com se a quantidade fosse sinónimo de qualidade? Perante isto façamos de advogado do advogado do diabo. As duas primeira questões resolvem-se numa só. Obviamente que o nosso olhar não pode deixar de construir uma dificuldade, um engagement emocional que a espaços vê a figura da irmã mais velha, Sun Yingying, como heroína (que trabalha, vai à escola, é mãe) em relação à qual canalizamos sentimentos de compaixão, admiração, etc. Contudo, essa leitura surge por trabalho exclusivo da tecnologia mais relevante do cinema: a mente do espectador. As imagens de Wang Bing não constroem, quer simbólica, quer literalmente, essa vitimização ou exaltação de uma ruralidade. São imagens muitas vezes secas, desnorteadas, que trabalham sobretudo a micronarrativa no interior dos planos (de uma democracia vivencial de onde tudo sai e tudo entra a todo o momento: a ovelha que afugenta galinhas ou cães; o pai que arrota ou a irmã do meio que cai e suja a roupa nova) e sobretudo uma noção de presença. E isto leva-nos à desconstrução do terceiro ponto. Wang Bing filma muito, é incansável, está sempre lá (num dos planos da chegada do pai e das irmãs mais novas ao ponto em que caminham para o autocarro que os levará à cidade, o pai diz a Wang Bing: “chegaste rápido”. E é verdade, Wang Bing mostra neste seu último filme (como também já o fazia nas suas obras anteriores) uma atitude ética irreprovável, um comprometimento absoluto e exaustivo em relação ao tema e às pessoas dos seus filmes, mas também em relação ao cinema. A sua hipotética “falta de ideias” não é antes uma falta mas sim a compreensão de que a rodagem de um filme é o momento da procura. E nesse sentido o seu olhar é um espelho luminoso que irradia tudo o que vê com uma luz de serenidade frágil. Encontrar momentos que permitam construir ideias emocionais, de acção que serão concretizadas pela montagem. Wang Bing podia apenas aproveitar-se da singeleza do universo infantil, tão permeável aos momentos delicodoces, para alimentar o seu ego artístico. Muitos o fazem. Ao invés, San Zi Mei é sobre passar tempo com estas pessoas a partir do qual surgem momentos de intimidade com o espectador, compreensão da sua rotina, alegrias e dificuldades. Que se veja aqui uma ode à pobreza e à compaixão isso é um acrescento que algumas pessoas sentirão no seu olhar cansado, sedento de apaziguamento. Mas isso não está no filme, quero dizer. Essa presença e esse tempo que o filme busca são premiadas pela obtenção de momentos que transformam o filme num verdadeiro monumento há dignidade humana. E ao ver o último plano do filme penso no cinema Wang Bing como uma dádiva. Como ter a melhor mãe do mundo, cantou-se.
O filme de Salomé Lamas que arrecadou quase todo o palmarés este ano (melhor longa portuguesa, melhor primeira obra, prémio do público, prémio escolas) com Terra de Ninguém encontra um ponto de apoio no último filme de Rithy Pahn Duch, le maître des forges de l’enfer (Duch, Master of the Forges of Hell) de que falávamos há uns dias. Em ambos há uma figura que tem um passado ligado à execução de pessoas e em ambos o realizador decide dar o espaço à pessoa para se expor, redimir, reflectir. Enquanto que no filme de Rithy Pahn o espectador passa por vários momentos (de crença, compaixão, fúria), no filme português um dos seus paradoxos vai para além do “mundo entre mundos” do mercenário Paulo de Figueiredo: em nenhum momento, por maiores que sejam as diferenças culturais entre o protagonista e o espectador, por menos intrusiva que seja a voz baixa e pausada de Salomé que vai introduzindo notas sobre a sua relação com Paulo (e sobretudo com o seu discurso) – nunca, dizíamos, fica em causa a ideia clara que estamos perante um homem que até certo ponto estava numa posição “errada” (entre o regime e a sua tekné) que o canalizou para a morte encomendada de pessoas. E é muito curioso que esta “terra de ninguém” em que Paulo viveu (até ao final dos seus dias, a sequência final é explícita) produza um assassino de “brandos costumes” que ora explica quem são as suas amigas (as suas armas) ora se emociona e vai lá fora fumar um cigarro. Por sobre tudo isto, há uma outra “luta” a ser travada: a de Salomé com o espaço na procura de uma identidade cinematográfica para Terra de Ninguém. O dispositivo interpelante (as sombras, o negro, a “digestão” pelos capítulos, a voz of) prolonga um “limbo criativo” estabelecido entre a vídeo-arte e o cinema mas que ganha raízes num registo documental de maturidade autoral. Depois toda a gente há-de falar na importância do registo certo sobre um assunto sensível do passado pós-revolucionário nacional. Mas isso já será ruído...
Ainda algumas notas telegráficas sobre outros filmes e outras dispersões. Sobre curtas-metragens, que vi poucas:  Sergei Lonitza com O Milagre de Santo António não consegue disfarçar um olhar exótico sobre a dita festa portuguesa, é pena; Ziamlia, a curta-metragem de Victor Asliuk, que emparelhou com Arraianos, é um belo filme que vai da terra à terra guiado por um forte sentimento de humanidade que faz com que voluntários vasculhem e desenterrem os restos mortais de soldados soviéticos que faleceram na segunda guerra mundial para lhes poder dar um enterro digno; A Raia de Iván Castiñeiras Gallego é uma hábil homenagem “tarkovskiana” às gentes da Galiza, com um olhar curioso sobre o contrabando nessa zona de fronteira; (já agora sobre O Sabor do Leite Creme de Hiroatsu Suzuki, Rossana Torres, que vi na mesma sessão de A Raia, penso que insiste nesta ideia proustiana da lembrança da juventude em relação a duas irmãs nonagenárias mas dá-nos pouco além de mimar a experiência da lentidão na terceira idade no ritmo do filme). Ainda duas outras curtas, as vencedoras: Aux Bains de la Reine, que venceu o prémio nacional, dos luso-suiços Maya Kosa e Sérgio da Costa, mostra bons indicadores sobretudo na construção de um universo imaginário que vai um pouco buscar ideias ao cinema de João Nicolau. Pisca o olho ao espectador com cenas que provocam o riso (há um gag que parece um pouco uma imitação do national geographic nas termas) mas regra geral ainda padece dos problemas das primeiras obras, demasiadas ideias para tão pouco filme. O filme Dusty Night de Ali Hazara, que venceu a competição internacional, escreve bem a contra luz, uma mensagem de tristeza ditada pelo sísifico trabalho dos varredores de Cabul.
E finalmente dizer que este ano não houve “choques” na atribuição dos prémios (isso acontece em alguns festivais sobretudo quando os júris são de composição muito heterogénea) e que a insistência positiva em apenas três sessões diárias possíveis (não havia filmes à meia noite ou às 11 da manhã por exemplo) mostraram uma procura de coerência para o evento. O Doclisboa já há algum tempo atingiu o patamar de um dos melhores festivais internacionais de documentário e compreendeu que este ano tinha tempo para estabilizar e limar o conceito (as limitações orçamentais "ajudaram"), aprofundando algumas áreas ligadas à discussão e aos colóquios que prolongam essa experiência dos festivais como lugares pluri-disciplinares para pensar o cinema e o mundo através dele. Penso que nem sempre "mais é melhor" e, por isso, aposta ganha. Até para o ano.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Doclisboa 2012: “Julgava saber onde era a rua da saudade mas perdi-me.”

Tenho por hábito seguir sobretudo as competições quando estou num festival. Agora que penso nisso, a principal razão é porque são filmes que estão, em muitos casos, numa espécie de prova de fogo: ou alguém repara neles ou passam muitas vezes ao esquecimento (isto não se aplica tanto aos festivais “gigantes” claro).
Desta vez, tentei abandonar isso e vou respigando por aí filmes das várias secções. Também por isso dei comigo na secção que apresentava L’homme à la valise (1983) e Le déménagement (1993) de Chantal Akerman. E estes dois filmes, ambos feitos para a televisão e vistos hoje como intervalos entre as suas grandes obras, permitem-me apaziguar uma dúvida. Li uma vez que a realizadora identificava duas grandes influências na sua obra: os experimentais, dizia ela, deram-lhe o sentido de abertura, a liberdade; e, falando da importância de Pierrot le fou (Pedro, o Louco, 1965), puxava Godard e a nouvelle vague como responsáveis por lhe terem dado o seu ânimo. Ora, a questão para mim era: como identificar o ânimo de um cineasta? Ele não está necessariamente no seu estilo mas no impulso de alma (anima) que o guia nas decisões de mise-en-scène, a criação dos ambientes, etc. E baseando-nos nisto parece que nos vemos encerrados no problema de ter de extrair dos índices de visibilidade o que é invisível em Chantal. E assim sendo, tirando a luta punk com a cozinha e seus rituais da personagem principal na sua primeira curta-metragem, Saute ma Ville (1968), essa anima parecia-me ser muito anti-boulevard, anti-deambulação romântica, no fundo anti-nouvelle vague. Mas e então? Quer dizer, estes dois filmes não ajudam a reequacionar essa “neurose” de Akerman na relação com os interiores como espaços de segurança, onde o pensamento surge como roda viva. Mas há neles uma imagem idílica de felicidade. Em Le déménagement, o actor Samy Frey acabou de mudar-se para um novo apartamento e depois de o medir, num monólogo teatral que dura todo o filme (são trinta e poucos minutos, era um episódio de televisão para a série Monologues) constrói para nós a sua felicidade petrificada (um pouco como o Pigmaleão de Ovídio), o momento do passado em que havia outro apartamento e este estava cheio de mulheres, três para ser mais preciso. E estava apaixonado por todas [outra desmistificação: para quem pensa que Akerman faz um cinema de mulheres é preciso conferir este ou o último plano de La folie Almayer (A Loucura de Almayer, 2011), o seu último filme, que estreia esta semana em Portugal]. Em  L’homme à la valise, filme feito dez anos antes para a TV com o apoio do INA (Institut National de L’Audiovisuel), a ideia de felicidade é mais corriqueira: que o seu apartamento se veja livre da presença masculina (um amigo enorme em estatura que Chantal, que protagoniza o filme, não consegue expulsar da sua própria casa). O homem da “valise” é uma presença incomodativa (surge cortado pelo peito na maioria dos seus planos e os seus sapatos fazem muito barulho no corredor) e Chantal pensa em como pode organizar-se nas suas rotinas diárias para nunca ter de o ver. Se o tom do filme é cómico (e outra vez podemos adiantar o ânimo nouvelle vague por aí), o espaço da sua casa (a cozinha, a casa-de-banho, o corredor) ditam que a exploração da premissa desemboque (outra vez) numa obsessão sombria, neurótica. Fica mais um pormenor importante, que Chantal quer o seu espaço desimpedido para trabalhar. E é com ela a teclar furiosamente numa máquina de escrever, de costas, que o filme termina. Que a solução de todos os males seja o labor.
A transformação da comédia em obsessão de L’homme à la valise, começa quando a belga decide instalar uma câmara à janela ligado a um monitor para que possa ver a partir de dentro quando é que o seu companheiro de quarto cruza a rua para reentrar em casa. Essa imagem, repetimos, de 83, faz um raccord interessante com Low Definition Control Malfunctions #0 de 2011. Claro que o raccord oficial a ser feito não é desses quase trinta anos de diferença que separam as duas imagens, mas sim com a (re)evocação do problema da segurança e do controlo que o reboot dos sistemas de segurança e vigilância fizeram em consequência do 11 de Setembro e do retórico we against them, que apontava as câmaras a esses seres esquivos a que demos convenientemente o nome de terroristas. O documentário do austríaco Michael Palm debruça-se precisamente sobre as questões da ética das imagens das câmaras de vigilância, a redefinição do conceito de espaço público, o prolongamento arquivista do mundo pelo cinema (fazer um arquivo de todas as imagens e criar um “worldfilm”, como se diz a dado momento) mas sobretudo o prolongamento do controlo preventivo a partir do sistema panóptico de Bentham (Orwell, Foucault e Deleuze, entre outros, tinham tirado já ilações teóricas sobre isso mas as acções ainda não tinham acompanhado).
O que é curioso é que há uma frieza “germânica” na relação entre as imagens que são exclusivamente de câmaras de vigilância, de ultra-sons, de ressonâncias magnéticas, de detectores de movimento com a opinião dos especialistas que vão trilhando um percurso teórico. À primeira vista parece ser um caminho árduo, maçudo, que usa a imagem como ilustração do logos. Mas a certa altura alguém diz, entre pessoas a passear na rua, em parques, a sair de edifícios: o que ver na imagem? É que há um modelo estabilizado pela cultura para o que vemos e não vemos, deixando “invisível” esse excesso informativo que o fotográfico traz consigo. A questão é que, tendo sido sempre o cinema uma máquina de controlo social, esse excesso jazia subjugado muitas vezes em detrimento da arte. As imagens ao serem inseridas no filme de Palm espelham esse limiar em que elas próprias se encontram: as imagens perdem a marca estética (perdem, porque são produzidas sem essa intenção) e convertem-se em interface, em bits, em estatística de controlo. Como se a construção destas imagens alterasse a desconfiança platónica face às mesmas na relação com o mundo, mas prolongasse o platonismo nessa ânsia de catalogar o presente e manipular a latência das imagens para um futuro perfeito: sem doenças, sem crimes, sem hasard. Há algo de profético neste projecto, como se a eliminação do erro escrevesse o futuro com a luz. Por isso, talvez não seja possível a Low Definition Control Malfunctions #0 construir-se sem ser contra um modelo interno que temos de documentário e de cinema. Mas como se lê na Apologia de Sócrates de Platão (ou mais à mão nas paredes do nosso metro): “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”.
Um bom exemplo de hermeneuta histórico, e mais particularmente dos efeitos do massacre levado a cabo pelos Khmer Vermelhos no Cambodja, é o cineasta Rithy Pahn. Não sendo conhecedor da sua obra (nem sequer daquela que alguns consideram o seu melhor filme S-21: The Khmer Rouge Killing Machine de 2003) fico impressionado por este Duch, le maître des forges de l’enfer (Duch, Master of the Forges of Hell, 2011). Sobretudo porque o sentido de urgência que existe no cambodjano ao filmar Kaing Guek Eav, mais conhecido por Duch, responsável pela prisão M3 e mais tarde pelo mortífero centro de interrogações e execuções S21 nunca põe em causa o espectador. Ao contrário do israelita Ra’anan Alexandrowicz [Shilton Ha’Chok (The Law in These Parts, 2011)] aquele apaga os seus traços no ecrã e deixa toda a performatividade à explicação, memória, remorso do próprio Duch. É a sua voz, tão transparente e oposta ao seu olhar aguado, que quase funciona como trilha sonora independente. Esta instaura um ritmo dolente e cândido (heresia) na evocação das torturas e da justificação dos seus actos. Por isso, há toda uma viagem que fazemos, um arco emocional que ora o coloca a emitir justificações e raciocínios plausíveis (note-se que Duch é um intelectual que cita a Bíblia ou o historicismo do historiador Savigny), ora usa expressões como “destruir pessoas” ou a frase do regime “mais vale matar um inocente do que deixar um inimigo vivo”. Por vezes ainda matematiza as suas mortes colocando o seu arrependimento em risco ante a câmara. Em planos frontais de Duch, sentado à secretaria por várias vezes coloca a sua mão esquerda sobre a mesa. E vemos sempre três dedos. Uma sensação de estranheza, mas pode ser da posição da mão, penso. Não estava certo que lhe faltasse nada. Mais tarde quando este examina fotografias e documentos finalmente vemos que lhe falta um dedo. Quando Deus criou Adão estendeu-lhe a mão e é o indicador “divino” que o toca. É esse o dedo que falta a Duch. Mas é nessas mãos, despojadas sabe lá por que causa do dedo criador, que Pahn decide acabar o filme: postas sobre a Bíblia num novo projecto de cristianismo que Duch abraça no cárcere que será a sua casa até ao final dos seus dias. Quem ainda não viu vale a pena espreitá-lo. Passa ainda dia 27 às 21:15 na Culturgest.
As mãos são também as paisagens cheias de sulcos e linhas preferidas de Stephen Dwoskin para o seu The Age is... (2012) Elas são um indicador da idade e que funcionam como índice da sua reflexão. Totalmente sem palavras e com música original de Alejandro Balanescu, o filme parece um daqueles poemas em que o seu autor faz das tripas coração para rimar. Tem desde a sua primeira imagem (e até à última) um impositivo tom poético, completado pelo constante ralenti das imagens. Parece uma visão um pouco anacrónica do tema, que nunca chega realmente a afirmar grande coisa e que não adianta absolutamente nada ao que já conhecíamos do cineasta. E não é porque as suas imagens não o permitam - idosos captados nessa nova posição no mundo, a andar, a fazer ginástica, a comer, a sorrir ou simplesmente a olhar. Parece que The Age is... nunca consegue abandonar uma forma de esboço, não sabendo muito bem como lidar com a herança simbólica de certas imagens levando-nos sempre para paragens e estados de alma reconhecíveis e fetichistas: as rugas, a pele, os ponteiros do relógio, a lentidão. Dwoskin tem no entanto o mérito de retardar um pouco a nossa percepção do real muitas vezes ao ponto de termos vontade de fechar os olhos e apenas ouvir. O envelhecimento através da música do filme e de alguns elementos sonoros que de forma pertinente se deixam presentes: o mastigar, o chupar um dedo, os pássaros, o lavar da louça. No fim de tudo a velhice soa a pós-clímax, a drama e a uma certa complacência romântica na dor de uma juventude perdida (alguns idosos vemo-los novos em fotografias, como que intimando o seu passado). A única coisa que aqui permanece jovem é a vontade genuína de observar de Dwoskin, embora sempre contaminada pelo lado ensaístico, vertido aqui em filme-lamento.
Embora haja notícias de que os dois últimos filmes de Apichatpong Weerasethakul, Mekong Hotel e Ashes (ambos de 2012) terão estreia comercial brevemente, não me pareceu sensato perdê-los em contexto de festival. Não há muitos cineastas que tenham uma aura profética tão forte como o tailandês: parece que carrega às costas o futuro do cinema. É certo que houve algum desapontamento no final da sessão entre algumas pessoas (isto para além das que dormem com Apichatpong, entenda-se; com esses a história é outra). E também é certo que essa aura “exige” um tom prolífico em relação ao qual é muito difícil manter índices de qualidade equiparáveis a obras como Sud Pralad (Febre Tropical, 2004) ou, claro, Loong Boonmee raleuk chat (O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores, 2010). O que equivale a dizer que os seus últimos dois filmes não podem deixar de ser periféricos em relação àqueles “gigantes”. Dito isto, e para além de um certo regresso ao primitivismo como marca autoral - o hibridismo genealógico dos seres, num contexto semi-realista, que volta a estar presente em Mekong Hotel (há fantasmas que comem vísceras, para ser curto e irónico), saliente-se dois pontos importantes no seu cinema e que nesta sessão estiveram à vista.
O primeiro ponto liga-se um pouco à tese heideggeriana do “homem como formador de mundo”. Essa ideia, que no alemão contrastava com a pobreza de mundo no animal, parece ganhar no contexto da arte, e mais particularmente no cinema do tailandês, uma dimensão estética. Ashes, que foi feito quase exclusivamente com uma LomoKino, parece comunicar com o dito cinema experimental mas para logo “escavar” um mundo. Neste, a falha, o snap (quer do shot, quer do som dele) parecem sugerir que o mecanismo rouba (escava, é mesmo a palavra) pedaços ao meio envolvente. Com isso Apichatpong produz algo ex novo, que é uma forma do documental “criar” a realidade, desenhá-la (“I quit filmmaking. From now on, I will draw”): o seu cão King Kong que já não ladra, uma jovem a pintar as unhas dos pés, ciclistas, fogo de artifício. Dir-se-ia de uma Tailândia a desaparecer, uma memória, um sonho, um sonho dentro de um sonho. O que é que isso interessa? São imagens lentas, desfocadas, pesadas, de um mundo visto como mancha e velocidade. E o mais chocante, ou contemporâneo, é que parece que há algo vindo do futuro que caminha para nós. O segundo ponto, mais presente em Mekong Hotel, liga-se a uma ideia de serenidade que o tailandês trabalha a partir da distância (a recusa dos planos aproximados que parecem contribuir para agigantar uma noção de intimidade), mas também da heterogeneidade. Percebemos que este segundo filme acopla momentos: a sugestão de uma atormentada “existência” de um fantasma, uma história de amor, a relação do espaço do hotel com o rio, a música omnipresente da viola de Chai Bhatana (o compositor), o longo plano final sobre esse mesmo rio e os rapazes que fazem jet ski. Na verdade, essa heterogeneidade, que é o oposto do que agarra o espectador à maioria das obras, é precisamente aquilo que constrói meticulosamente um projecto contemplativo e sobretudo de estado de alma. Por isso, ver Apichatpong é uma experiência sensorial mas sobretudo anímica. Há algo que conforta, que vem do domínio do invisível, e que ironicamente coloca o espectador numa situação de alheamento próxima daquela que, por outros meios, é certo, fazia o cinema clássico.
E agora é tempo de falar de três filmes enormes. Os dois primeiros, A Última Vez Que Vi Macau de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata e Arraianos de Eloy Enciso Cachafeiro, têm uma qualidade em comum: a hábil gestão entre o registo documental e o ficcional. Sobre o primeiro diga-se que tenho um certo receio de empregar a expressão que se vem desgastando com o tempo: “é um filme onde nada se passa”. Esta fórmula tem sido aproveitada para que se consiga excluir o filme de qualquer análise teórica que o reduza, por vezes que o confronte (claro que não estou a referir-me à expressão quando utilizada por aquelas pessoas que equivalem o “tudo” à narrativa clássica). Mas neste caso o “nada” tem uma natureza diferente, funcionando sobretudo como resíduo do ficcional. Explicamo-nos. Numa entrevista recente, João Rui Guerra da Mata salientava o desapontamento que sentiu quando voltou a Macau para fazer um documentário, que a sua terra de infância tinha agora muito menos interesse que a imagem que tinha em criança, paredes-meias com certas idealizações próprias da idade. Ou dizia da necessidade de inventar as histórias do Tintin que o seu pai lhe trazia em francês e que ele não conseguia ler. Ora este regresso a Macau corresponde a essa necessidade de ficcionalização de um espaço para lhe poder prolongar uma determinada dimensão mítica. Por isso, A Última Vez Que Vi Macau,tem um corpo documental mas uma cabeça ficcional. Um filme de acção sem acção, ou antes em que esta consiste em ver Macau. Isto é, assistimos à evolução de um filme de série B, noir - ou como num filme de John Houston [pensamos em The Maltese Falcon (A Relíquia Macabra, 1941] - em que todos os seus elementos estão marcados pela voz, pela sombra, pelo detalhe indicial no espaço. Todas as matrizes narrativas desse cinema estão presentes: o amor (Candy) figura sempre ausente, o encontro adiado pelo perigo, as mãos enluvadas dos malfeitores, o exotismo criminoso, o objecto fetiche (neste caso uma gaiola), os nomes extravagantes (Madame Lobo) e depois o cigarro, o whisky, a sombra. Ficam apenas as traves-mestras de género, em que visualmente só funcionam os indícios, o contorno, sendo que tudo o mais, a concretização, é expulso para off (não vemos o “recheio”: as mortes, o herói, o inimigo, a presença humana). Mas a intenção do filme, e nisso reside a sua subtil inteligência, não passa por recriar um projecto de ode ao detalhe, ao descentramento da acção, mas sim por tirar a “carne” do ficcional e visualizá-la, em espelho (em contraste, às vezes) com imagens de Macau, com o documental. Embora pareça que exista um trajecto que o João Rui tem de perseguir, muito deste é do domínio da espera, do gaze, da perda geográfica e emocional. A palavra perda é mesmo uma das chaves do filme: perder um encontro, um amor, mas também perder-se no espaço, perder uma visão idílica. E esse percurso, num “terceiro acto” soberbo, descola desse ficcional que vinha brincando com a verosimilhança, e ficamos com o espaço já perfeitamente “contaminado” pela inspiração clássica – os tigres desmaiados, os tiros e os fogos de artifício, os planos e o som das águias no céu. O filme despede-se de Macau, sob a égide de um qualquer fim da humanidade. Ficam os edifícios, os gatos e os cães omnipresentes e uma ideia de regressão até ao início. Não ao início da imagem mítica de que se havia partido, mas sim ao início dos tempos onde o fogo, os homens das cavernas, o primitivo ainda tinha todo um caminho à sua frente para trilhar. Filme soberbo que esperamos tenha a oportunidade de chegar às nossas salas em breve.
Há também uma importante participação da ficção no projecto de Eloy Cachafero sobre a regressão da ruralidade, designadamente numa aldeia entre a Galiza e Portugal. Mas ao contrário de Fogo de Yulene Olaizola, que também está na competição internacional e com o qual partilha uma intencionalidade, Arraianos é um filme de uma extrema ambição que só chega a essa ruralidade depois de impor uma destreza absolutamente excepcional na mescla de preocupações de olhar documental, drama de costumes, performatividade, tragédia e ensaio filosófico. Esta falta de fronteiras (o importante não é unir tudo mas sobretudo tornar o processo criativo em algo uno, em que não se pense na fronteira) parece estremecer tudo à sua volta, deixando, curiosamente, o filme afirmar-se com algo da ordem do sólido, do granítico. Sabíamos ser possível impor um olhar na incerteza e relativismo, hoje? Eu tinha as minhas dúvidas... “O mundo está ao contrário. (...) Fomos nós, ninguém mais que fez o cerco, esta gaiola sem saída, transtornámos a ordem primordial”. Isto coloca Eloy na boca dos seus arraianos, a partir de uma peça teatral. Uma “heresia” em forma de fábula em que o ambiente fantástico (a fotografia de Mauro Herece e a mistura sonora de Vasco Pimentel são um espanto: os guizos... os guizos... o vento, os pássaros, o fogo, é toda uma orquestra) está muito além do romantismo rural. Trabalha-se antes a nitidez do cinema nesse processo em que as fotografias do passado queimam e as “árvores que são todas iguais” geram uma individualidade da expressão misteriosa em quem as abate. Próximo, despojado de intelectualismo, é a filosofia da espera (esperar sempre) da luta (lutar sempre) que mostra a acção criativa sobre a realidade como aquela que realmente a puxa para a frente. Entre a cigarra e a formiga, entre sonhar e comer, não pode haver distinção. Essa fluidez que trabalha o incompreensível e o mistério como aquilo que realmente apanha a verdadeira dimensão documental de uma situação já valeu a nomeação de Arraianos ao prémio cineastas do presente em Locarno. E não me parece que fique por aqui...
Como isto já vai longo, queria apenas fazer breve referência a outra obra-prima do cinema novo iraniano (por mim, podem mesmo tirar-lhe o novo), Sib (A Maçã, 1998) de Samira Makhmalbaf. Agora não me interessa tanto discutir se o filme, que recebeu uma menção especial do Júri em Locarno, teve o dedo da família gerando a glória precoce da cineasta então com 17 anos. Sendo uma obra indiscutível sobre a formação infantil, a liberdade e a relação entre pais e filhos, convém que se diga que esse estado de "lição" é feito com uma maçã e uma serra: o pai tranca as filhas porque quando tem de sair a esposa invisual não consegue controlar para onde estas vão; não sabem falar e nunca foram à rua; uma queixa dos vizinhos traz uma assistente social a casa que faz o inverso, tranca o pai que tem de serrar as grades para poder sair e liberta as filhas; é aí que estas aprendem o valor do dinheiro ou o sabor de uma maçã. Esta descrição serve para incitar todos a irem ver o filme que ainda passa no último dia do festival, dia 28, às 16:15 na Culturgest. Mas o que me merece a atenção é que esse didactismo infantil do filme (tão caro ao cinema iraniano, basta espreitar a carreira de Kiarostami) é atingido aqui por uma via que não podia ser mais alheia a um dictum. Por isso, relembramos esse lixo retórico que invade as escolas de cinema sobre a necessidade de resumir um projecto numa frase e que vem na sequência da identificação "indispensável", "tortuosa", "esotérica" entre uma história e o seu realizador. Como se essa súmula de identificação, que em muitos casos leva o inexperiente aluno a extrair logo a moral de uma história ainda por narrar, pudesse converter o anónimo em autor. Por vezes, apaziguar o terror de vir a ser um tarefeiro leva a inverter os papeis: um autor é o que cria com uma marca e não o que marca através da criação.

domingo, 21 de outubro de 2012

Primeiros dias do Doclisboa: o desenraizamento também é uma questão de olhares

Os festivais de cinema abrem e fecham sempre com pompa e circunstância (eventos dentro do evento, momento revista Caras ao qual muita gente vem mais marcar o ponto do que ver o filme em si). Sobre isso, nenhuma crítica em particular, na medida em que o evento pode ser também uma estratégia como outra qualquer do cinema chamar pelas pessoas. Este intróito semi-ressabiado serve para dizer que há muito era impossível obter bilhetes para ver o último filme do João Rui e do João Pedro A Última Vez que Vi Macau (2012). Por isso a minha entrada foi pelas “traseiras”, discretamente, para ver Nuukuria Neishon (Nuclear Nation, 2012), documentário do japonês Atsushi Funahashi sobre o êxodo da população de Futaba, local que alojava há décadas a central nuclear de Fukushima que sofreu rupturas na sequência do terramoto e tsunami que assolaram a região.

Entrei na sala ainda com as imagens de poesia que Paradjanov criou para a homenagem ao poeta Sayat Nova a ocupar toda a minha memória emocional [o filme é, claro, Sayat Nova (A Côr da Romã, 1968), que tinha visto umas horas antes]. E instalou-se imediatamente um choque que toda a frontalidade e composição dos planos do cineasta arménio (o vinho a ser despejado do cântaro, o plano picado da morte com o poeta estendido e as galinhas a derrubar as velas) faziam falsos raccords e surgiam desarmados pelo olhar instável, um pouco desleixado, dos primeiros planos de Funahashi. Enfim, penas da poesia sobre a realidade. É que é um olhar, o do japonês, que demora a instalar-se, titubeante, a entrar em dois espaços descaracterizados: Futaba, do qual as sucessivas catástrofes varreram a presença humana tornando-a numa paisagem de destroço quase impressionista, e os locais de exílio destes refugiados nucleares habitado agora por pessoas que estranham o local, a comida, o desenraizamento. Por isso o cinema aqui presente mostra-nos o combate que o documental trava consigo próprio quando entra nesses espaços que são no fundo os espaços do trauma, do cinema pós-traumático. Quando o ar se torna semi-respirável (literalmente) as câmaras entram e começa o dilema de explorar ou não, o que contar, como gerir a emoção. O cineasta japonês nisso é muito salomónico deixando que o lado procedimental do filme [lembro sobre esse “método” a obra-prima que venceu a competição internacional em 2005 Yan Mo (Before the Flood) de Yu Yan e Yifan Li acerca do realojamento dos habitantes de Fengjie perante a iminência da construção da barragem das Três Gargantas na China], acompanhado pelos seus 125 minutos, ao longo das quatro estações (um élan muito oriental) engrossem a estrutura do que quer filmar.

Há todo um mosaico de situações que apanham as impressões e os rostos dos sem-casa (que dormem num ginásio, que não têm dentes para as refeições que lhes são distribuídas, que entre a dor e a espera fazem aeróbica e ouvem concertos improvisados de covers manhosas dos Beatles), mas também o regresso temporário à terra da qual tiveram de sair. São os momentos que servem para ir buscar coisas que deixaram saudades [sapatos ou os DVDs de um senhor cinéfilo que relembra entre outros títulos Mad Max (As Motos da Morte, 1979), porque será?)] e em que Funahashi deixa entrar o vídeo (momento incrível) que um pai e um filho filmam na zona contaminada: menos de duas horas para prestar homenagem à esposa e mãe que faleceu na catástrofe; a duração limitada para os sentimentos. Obviamente que a nação nipónica, nuclear pelas piores razões, como sabemos, nunca permitirá que Nuukuria Neishon descarte um discurso anti-nuclear. O focar no presidente da câmara de Futaba, nos seus remorsos pela sua parte activa em ter perpetuado a aceitação da instalação da central de Fukushima no seu território [era um balão de oxigénio económico para a região, até descontos nas contas de electricidade tinham (!)], abre o filme a esse problema político de jogos estratégicos de poder, de supremacia do Estado em detrimento das pessoas. Mas sempre numa circularidade aberta entre emoção e activismo muito mais complexa. Um belo exemplo dessa célebre expressão de Levinas que me surge a propósito desta circularidade: “pensar através do outro”.  Esse outro mostra a reconstrução das pessoas para quem Futaba passa a ser uma homeland idílica, onde agora mumificam vacas sem ter que comer e que beber e à qual um dia regressarão. Reconstrução do papel do espectador que esperava uma lição mais asséptica, da lavagem que se segue à experimentação do inferno.

O primeiro filme que vejo na competição internacional chama-se Fogo e é uma co-produção mexicana e canadiana realizada por Yulene Olaizola. Não conheço a realizadora e espreito os dois títulos anteriores Paraísos Artificiales (Artificial Paradises, 2011) e Intimidades de Shakespeare y Víctor Hugo de 2008. Leio também sobre os temas serem sugestivos, o lado construído do estilo documental, o ennui, os cigarros, os takes longos, a influência de Pedro Costa. Tudo isto faz sentido nesta nova tentativa da realizadora agora sobre o processo de avanço da tundra na ilha de Fogo no norte do Canadá. Os seus habitantes têm de sair, o "fogo deu lugar ao gelo", a paisagem é inóspita. Parece cirúrgica a inserção da obra no centro do bom gosto da cinéfilia documental: os planos longos em tableaux nas reticências do fade to black, o desaparecimento da “ruralidade”, a relação visceral com a natureza (vai lá cortar uma árvore para eu ver como isso é belo), o vento, a orquestração dos diálogos (os planos dos interiores em que os habitantes saboreiam uma última bebedeira – “it’s good til the last drop”, em que se tratam por son, sir, boy, parecem reciclar para o documental o ambiente de Béla Tarr), a pose ascética dos que não querem partir. Parece que estou a caminhar no sentido de desfazer o contrato de Olaizola. E estou de certa forma, na medida em que vejo as costuras da sua boa vontade, na medida em que há uma espécie de nostalgia por antecipação (do que era antes: não só da terra mas da juventude destes senhores) que não dá uma visão desprendida do que é ter raízes num espaço e num passado (porra, às vezes é preciso ter sorte para que o genuíno, mesmo quando fabricado, irrompa). É o contrário das extraordinárias Raíces (1943) de Frida Khalo. E é paradoxal: se essa fabricação à la mode ficção/documental serve pouco o filme, são esses os momentos que nos esmurram. Os diálogos no interior como já referi (num filme que procura preservar a relação dos habitantes com o exterior que os “expulsa”) mas também essa sugestão absolutamente ficcional e que vem do “fogo”, da luz do sol que se põe, ainda radiante – numa altura em que todos se decidiram a ficar custe o que custar, e os cães, esses, já partiram. Isso não deixa que silencie o óbvio: a lentidão se tida como um mecanismo isolado soa a lição de cátedra e o ritmo é um filho pródigo do filme, não da intenção.

Foi um privilégio incrível ver a abertura da retrospectiva Chantal Akerman com a própria a pouco mais de um metro de mim a apresentar D’Est (1993). Pareço uma adolescente a falar do Robert Pattinson mas há uma razão que extravasa a minha admiração. É que a realizadora belga, visivelmente constipada e abatida, falou do facto do seu documentário não ter lá nada, não ter planos informativos. Não há lá nada, só há pessoas e só há olhares. Relembro o texto que escrevi aqui há dias a propósito da antevisão do festival. Sobre D’Est (não tinha revisto o filme na altura) escrevia que as pessoas e os lugares “parecem esperar pacientemente um futuro que os envolva”. Ora, sobre isto, digo, é mandar para o caixote do lixo. Não é nada assim. Depois de rever aquele que considero o melhor filme de Chantal vejo que a espera é, quando muito, um tema subliminar do documentário. Costuma dizer-se que há quatro estatutos que colocam Chantal fora da espinha dorsal de uma noção de mainstream cultural (ou como ela lhe chamaria, do poder do dinheiro e do phallus). São eles: o ser mulher, o ser belga, o ser judia e ainda cineasta experimental. Estas quatro condições colocam-na numa margem (identificável mas que não deixa de ser uma margem) a partir do qual podemos receber esta sua obra rodada na Ucrânia, Polónia e Alemanha de Leste. Não se trata de criar grelhas nem de fechar o filme no facto das filas de espera que Akerman filma em gares, nas ruas geladas à noite, em mercados, poderem remeter para essas outras filas históricas da Segunda Guerra Mundial (embora Chantal tenha despertado para essa ideia à medida que o filme ia sendo feito). O interessante, dizia, passa também por pensar a importância, a poeticidade e a beleza de D’Est como ligada à capacidade desse seu estatuto de outsider lhe ter permitido ver o leste a partir de um mecanismo — o travelling (literalizando-o como forma de viagem e sempre da direita para a esquerda, isto é, de leste para oeste) que constrói e destrói a todo o tempo a paisagem. Mas que sobretudo esvazia (não há lá nada, repito) para depois poder(mos) construir coisas de vário fabrico. Por exemplo, essa lateralidade do seu cinema (onde resta a questão de saber se é o spot ideal ou o mais seguro para a observação de Chantal) permite criar essa fronteira no espaço (outro dos seus temas) para a construção de um monumento político ao olhar dos povos. Esse olhar e devolução de olhar em circuito, que parece às vezes literalizar o museu imaginário e Malraux, possui esse alcance de criar um espaço de contemplação in locus. E depois essa contemplação é também deixada à fruição do tempo (como se lêssemos a Avenida Nevsky de Gógol e substituíssemos a pseudo-animação realista da sua voz por uma frieza que é o animo próprio de Akerman). Tudo isto e mais alguma coisa em D’Est, obra bela, importante e poética, não necessariamente por esta ordem, filmada em 16mm e que tivemos a oportunidade de ver em 35. Um privilégio. Só mais uma coisa: a dada altura há um plano lateral de um palco e de uma pista de dança. E claro cantam e dança-se. As influências podem surgir de onde menos se espera. Será de mim ou é possível antever o Miguel Gomes aqui?

E ao terceiro dia do Doclisboa continuou-se a falar de raízes. Shilton Ha’Chok (The Law in These Parts, 2011) do israelita Ra'anan Alexandrowicz é um daqueles filmes que encaixa na perfeição nesse dilema que é fazer um filme importante. A intenção é explorar os mecanismos que deram origem a um ordenamento jurídico ex novo por parte de magistrados, conselheiros e legisladores israelitas que permitiram dar cobertura legal à ocupação da Faixa de Gaza e da Cisjordânia desde 1967. O cineasta com imagens de julgamentos, recursos, leis, tudo found footage, tinha esse problema específico de dar-lhe uma forma cinematográfica. O que pensou não foi mau. Foi colocar os magistrados que ia entrevistar num estúdio com algumas dessas imagens a passar em fundo. E depois fazer uso de um paralelo entre criar um ordenamento e a possibilidade que o realizador tem de criar realidades através das imagens, tudo isto bem à vista pelo uso do dispositivo meta-documental. Que dizer? As pessoas baterem palmas e com razão uma vez que se trata de mostrar a lei como ficção para cobrir atrocidades e porque ninguém desinteressado e com poder (isso é impossível?) fez ainda alguma coisa contra isso. Contudo, há um problema em tentar pensar uma forma para um conteúdo ou vice-versa. As suas coisas casam-se mal em Shilton precisamente porque as imagens que o cineasta usa não comunicam (vão muito para além) do programa pesado de filmar como redenção do realizador: o julgamento dos juízes. A cadeira, o modo de entrevista indiciam isto, um interrogatório, com a voz baixa e controlada do realizador na penumbra. Mas há um outro julgamento a decorrer muito mais subterrâneo: o das acções daqueles homens (que acreditam nessa possibilidade de criar uma lei para aplicar a um outro que não nós) perante as imagens, os documentos produzidos por esse esquema imaginário a que deram origem. E desse julgamento, por muito que nos custe, todos eles saem ilibados... Pode ser que surja o tal “julgamento da História” (o tal que Ra'anan não sabe do que se trata) e repare isso. Para já fica o moto claro no final do filme: “o tema deste documentário aguarda julgamento”. É verdade e por isso paremos as filosofias.

Até porque a história da sessão seguinte sobre cinema experimental começa com um rapaz dos seus 12 anos sentado na fila em frente à minha a explicar à mãe o que é a expressão “pioneer in action sequence”. Dizia ele: “é  uma cena de acção nunca vista como no The Bourne Ultimatum (Ultimato, 2007) ou no North by Northwest (Intriga Internacional, 1959)”. Perdão? Como disse? Enquanto isso, Augusto Seabra apresentava a sessão e falava dos modos de olhar e dos festivais como espaços para pensar o cinema. Ora, nem mais. Sobre Free Radicals: a History of Experimental Film (2011) há um lado meio poético que tem a ver com o free do título. Este parece indiciar que Pip Chodorov, pelo facto de ser ele um cineasta experimental (também porque o seu pai Stephan Chodorov, um produtor de televisão, fomentou desde que ele era criança a convivência com pessoas como Jonas Mekas ou Stan Brakhage), vê quase todas as figuras do cinema experimental ora como amigos, ora como ídolos. Daí essa noção romântica de liberdade, que até está presente no filme por uma certa naiveté, um certo gosto mainstream (provocamos) que trai um pouco a exegese necessária à fabricação de um história. E por isso Free Radicals é menos uma história do experimentalismo no cinema e mais uma homenagem sobretudo aos cineastas que depois estiveram juntos na edificação dessa “cinemateca” norte-americana do cinema independente e avant-garde que é o Anthology Film Archives. Nenhum mal nisso. Ficamos sempre com histórias inestimáveis para contar: o momento triste em que Ken Jacobs confessa que no passado, sem dinheiro, faminto, tirou uma vez costeletas de um caixote do lixo e as comeu; a fórmula de Hans Richter: “I give chance a chance”; o último filme de Stan Brakhage feito na cama quando estava prestes a ser levado pelo cancro; os filmes caseiros da família do próprio Pip mijados pelo cão, dando-lhes automaticamente um look experimental, etc etc. Fica por contar toda a História mas há histórias suficientemente esclarecedoras que certamente cumprirão a sua função: pôr o miúdo de 12 anos a pensar nesse lado B da história do cinema.

(Nota trágico-cómica: em homenagem às pessoas acometidas de um súbito laxismo intelectual eis a resenha de tom extremamente sarcástico -  D’Est e Nuukuria Neishon um thumbs up. Free Radicals e Shilton Ha’Chok um thumbs down. E um middle thumb (o que é isso?) ao Fogo.)

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Sistemas de Gosto

Is it possible to establish any kind of objective knowledge about these crossroads where cinema always is at? Can we get further than just a discussion of personal tastes and preferences?

Adrian Martin: Well, we must get further than just ‘personal tastes and preferences’! I deeply believe that taste is a kind of prison for oneself – when a critic finds himself or herself always rigidly repeating the same opinions, the same positions, the same likes and dislikes (that is the kind of bad posture which Pauline Kael bequeathed to criticism). Critics should feel free to bring in their own emotional reactions to films – it is hard to keep them out of writing – but the phenomenon known as the ‘gut feeling’ or gut reaction can become a terrible end in itself: ‘this film makes me angry or it makes me happy, so it's a rotten film or a great film, and I’m not going to discuss it any further.’ The important thing is always argument, analysis, logic. I have an irrational side (critics need it), but my rational side believes in logical demonstration: if you can prove to me that what are saying about a film makes internal sense, if you can marshal the evidence from the film itself to back up what you say, then I too can be persuaded to disregard my own first gut reaction and explore that film again in a new, more open way.

Your question mentions objective knowledge. I guess I am enough of a modern person to doubt the absolute value or reality of such so-called objectivity. I believe in the multiplicity of discourses, but I don’t believe in total, free-for-all, postmodern relativity where any one opinion or analysis is as good as anyone else’s. I believe that, through the constant dialectic of argument, through the richness of many personal views and systems, we can come, not to a consensus, but a sort of critical mass where each of us might be able to understand some of the key problems of our time, and the forces at work that shape our world. I believe that, somewhere amidst the veritable Babel of cinephilia, there is indeed some kind of new social community. 


If young moviegoers don't seem to be very interested in reading about films, maybe they'll be less interested in reading about cinema from the past, about the black & white films ... Do you think there's some kind of miseducation/alienation which is negative for young cinephiles?

Adrian Martin: Well, I think there’s a big difference between film fans (or film nerds) and cinephiles. This difference has always existed, it’s nothing new, but it often causes friction and troubles. In my view, a cinephile is someone who likes to read, who likes to bring in ideas to think about and discuss movies. The fan/nerd doesn’t much like to read or analyse – and, if they do, it is a very particular kind of material: lists of films (best, worst, genre lists, ‘what I have seen this month’) – and a very particular kind of analysis: ‘in’ jokes for aficionados (‘John Landis appears in the background in a werewolf costume!’), very broad symbolic-political meanings (‘Romero’s supermarket zombies stand for mindless consumers!’). Nerds don’t like to read, but they sure love to write – the Internet is now full of this kind of stuff. The stance of the nerd is fiercely anti-intellectual, anti-authoritarian, and it comes with a particularly vicious variant of populism: ‘My opinion is as good as anybody’s, and therefore I deserve as much of the critical space as I can grab, so fuck you!’ It’s the ‘democratic’ attitude gone mad, and I really think it is the enemy of cinephilia – not least because the film culture of the nerd fixates on a very narrow, almost completely narrative, commercial or semi- commercial band of filmic production: horror movies, action films, sex films, trash comedies, the cult of Tarantino, etc. I love these kinds of films, too – but the cinephile is the person who can link the greatness of George A. Romero with the greatness of Hou Hsiao-hsien or Peter Tscherkassky, not just Kim Ki-Duk or Dario Argento! Yes, the nerd is miseducated and alienated – and, what’s worse, they choose to cultivate heir alienation, to imprison themselves in their anti-intellectualism, to wear it as a badge of pride. It is an ugly posture, the opposite of an open, generous cinephilia.


 (Cinemascope interview 2007)

domingo, 7 de outubro de 2012

Linhas de Wellington


Raoul Ruiz morreu. Embora os Mistérios de Lisboa (2011) não tenha sido o seu derradeiro filme, a sua última cena já parecia de certa forma premonitória: com a claridade a assaltar o plano final, a confusão da reminiscência última e do nascimento de um jovem Pedro jazendo ao contrário na cama de um colégio. Uma criança que no começo da vida já conhecia (conhecíamos) o seu destino. Uma criança que não se sabia morta (estava fria), se apenas doente.

Dez meses depois a realidade confirmou esse “cerimonial triste” e o mundo do cinema teria de se haver sem o corpo, o olhar ágil e perspicaz do cineasta chileno. Mas o sentimento da sua morte, como falta, talvez só tenha surgido pelo facto de ter deixado este Linhas de Wellington em preparação, transformando-o naquilo que ele não queria ser: uma herança e/ou homenagem. Há portanto a pairar sobre o filme o espírito de um “acto de generosidade” levado a cabo pela companheira Valeria Sarmiento que decidiu terminar-lhe o filme (isto é, realizá-lo). A questão é que já não há Camilo Castelo Branco, nem há Raoul Ruiz. Há apenas essa vontade de ligação emocional com que a câmara de Valeria filma o célebre episódio da história portuguesa – as linhas que o general Wellington mandou constituir para suster o avanço das tropas jacobinas em pleno período das invasões francesas.

Enquanto Ruiz filmava a uma certa distância a maioria das cenas dos Mistérios para precisamente, preservando o mistério, melhor depois preparar o “avanço”, Sarmiento mantém esse recuo mas como dado meramente observacional (ou dramático). Mas talvez nem seja justo que a realização carregue toda a “culpa”, uma vez que o mosaico histórico das personagens de Carlos Saboga nunca permite esse “ir para dentro” das pessoas de que se fala. Por isso o cast como valor de produção surge algo desaproveitado transformando-se em muitos casos numa espécie de colecção interminável de cameos. Só alguns: John Malkovich como figura “napoleónica” do general Wellington, obcecado em que o pintor de serviço corrija a sua imagem e pinte as suas vitórias e não os seus massacres; Miguel Borges como mercador soft on the inside, hard on the outside; Michel Piccoli que, na melhor cena do filme (a par da loucura doce de Marisa Paredes), fica a falar sozinho da saudade e do silêncio que irrompe nas conversas dos portugueses; e depois há ainda o homem que anda à procura da mulher, o homem dividido entre a descendência e lealdade francesa e portuguesa, o sargento Francisco Xavier (Nuno Lopes) que se apaixona por uma viúva inglesa; a mulher violada e traumatizada pela guerra. Nesta rede todos são símbolos de episódios típicos que ajudam a ilustrar o evento histórico, mas ninguém (diga-se o espectador) quer saber muito se vivem se morrem, se amam ou odeiam.

Resta-nos assim o lado pesado do filme, em sentido não pejorativo, do name above the title , o produtor Paulo Branco. Há nesta derradeira colaboração com Ruiz um cuidado extremo em que o filme não falhe por aí. E precisamente a fotografia no tom certo de André Szankowski, o trabalho de câmara, os locais são de um apuro assinalável (a utilização da música menos). Mas sabemos que quando lidamos com produções em grande todos os defeitos se agigantam. Neste caso é essa esterilidade dramática que empurra o filme para o drama de vida, superficial, romântico, com especial atenção aos desgostos e separações de amor em tempo de guerra (atenção que Mistérios de Lisboa não descurava o romance, antes pelo contrário, vivia dele, mas colocando-o sempre em contexto: o choque do romance de Camilo com a ronde límpida e paciente de Ruiz).

Valeria confessou que, no início, sobre o tema do filme pouco sabia e que foi o êxodo da população (que fez rimar com o seu próprio exílio) a chave de entrada emocional no filme. Não é por isso de estranhar que sejam precisamente os planos dessa massa de gente a percorrer os campos, em fuga lenta, de uma diagonal à outra dos planos, os momentos mais fortes de Linhas de Wellington. Por momentos, não era preciso ir a caminho de nada porque as pessoas essas, e as linhas também, vinham para nós, avançavam na nossa direcção. E é perante esse avanço e essas pessoas que de repente nos lembramos que se está na Europa a filmar um filme sobre uma guerra. Um filme que apesar de tudo recusa um discurso tecnológico e de acção sobre o conflito (a batalha final tem a dignidade proporcional à sua elipse) e prefere contar essa perplexidade moderna que é isso de ter as pessoas a avançar e a avançar e a avançar…