quinta-feira, 30 de julho de 2020

"O que arde" - Oliver Laxe



Se abrirmos sensivelmente a meio esta terceira longa metragem de Oliver Laxe sai de lá de dentro um belo momento de cinema. Amador Arias, que havia regressado a casa, em Lugo na Galiza, por se encontrar em liberdade condicional após ter cumprido dois anos de pena por crime de incêndio florestal, procura integrar-se novamente na comunidade, em especial restabelecendo a relação com a sua mãe, Benedicta. Na cena em concreto, ele vai na carrinha da veterinária da zona, mulher bonita. Ambos transportam uma das vacas dele que tem de ser tratada numa pata. Em campo/contra-campo, os dois falam e sabemos que ele mente sobre o seu passado e que ela empatiza com ele. O ambiente é vagamente romântico: ele é a primeira vez que lhe apetece falar com alguém desde que saiu; ela conta um pouco da forma como chegou a viver no campo. A dado momento, ela coloca uma cassete de música. Ouvimos os primeiros acordes de Suzanne de Leonard Cohen e ela pergunta-lhe se gosta. Ele diz que não entende a letra, mas que simpatiza com a música. Talvez a música sirva melhor a cena do que o realismo das suas personagens. Mas passemos por cima disso. A dada altura, a câmara de Laxe abandona as suas personagens e vem fixar-se no olhar da vaca na carrinha de caixa aberta durante quase um minuto, ficando depois ainda com a paisagem solarenga do campo, após deixar o veículo. Cohen canta: “That you’ve always been her lover / And you want to travel with her / And you want to travel blind / And you know that she will trust you / For you’ve touched her perfect body / With your mind…”

quarta-feira, 22 de julho de 2020

«Por todo o lado, os animais desaparecem. Nos jardins zoológicos, constituem o monumento vivo da sua própria desaparição. (...) O jardim zoológico só pode ser uma decepção. O propósito declarado dos jardins zoológicos é dar aos visitantes a oportunidade de olharem os animais. Contudo, em nenhum lugar do jardim zoológico pode um estranho encontrar o olhar de um animal. No máximo, o olhar fixo do animal cintila sem se deter. Olham de lado. Olham cegamente além. Perscrutam mecanicamente. Foram imunizados a todo o encontro porque já nada pode ocupar um lugar central na sua atenção. Reside aí a derradeira consequência da sua marginalização. Aquele olhar entre o animal e o homem, que pode ter desempenhado um papel crucial no desenvolvimento da sociedade humana, e com o qual, em todo o caso, todo os homens viveram até há menos de um século, extinguiu-se. Olhando cada animal, o visitante desacompanhado do jardim zoológico está sozinho.»

John Berger

Quadrante



terça-feira, 21 de julho de 2020

Sobre Mysteries of Cinema - Reflections on Film Theory, History and Culture


Há já vários anos que procuro, dentro da medida do possível, ir seguindo o trabalho do Adrian Martin. Eu creio que o Adrian, para empregar uma expressão que uma vez ouvi ao André Dias (espero não estar enganado), é um daqueles autores que procura "trazer para a academia qualquer coisa da crítica e para a crítica algumas das preocupações da academia." Eu penso que essa postura, das pontes e das contaminações, em vez de uma assente em fracturas, "invejas" ou sobrancerias é muito mais útil ao cinema e à reflexão em torno dele. Neste livro, "Mysteries of Cinema - Reflections on Film Theory, History and Culture", que compila mais de 30 anos da escrita do Adrian, esse jogo da cinefilia-crítica-academia é enriquecida ainda com outra camada - decisiva, a meu ver. É a do homem que escreve. Do homem que vai gerindo a sua vida, tendo à sua frente milhares de espelhos mais ou menos distorcidos que são os filmes, e que vai contaminando (ou melhor, enriquecendo) os temas da sua investigação e olhar crítico, com as preocupações e o estilo do escritor. O escritor que utiliza o cinema, a imagem, como motor da sua expressão. Podem encontrar a minha recensão ao livro na Aniki: Revista Portuguesa da Imagem em Movimento, que tem nesta edição um excelente dossier temático sobre "Teoria dos Cineastas: uma abordagem para o estudo do cinema", coordenado por Manuela Penafria, Eduardo Baggio e André Graça. Um agradecimento aos editores deste número, em especial ao Jorge Palinhos pela paciência na edição do texto.


Depois das gaivotas e dos cães, eis um bestiário alternativo à obra de Tchekhov: 1) apanhava e vendia pintassilgos para pagar os próprios estudos; 2) após a sua morte por tuberculose, o seu corpo foi levado da Floresta Negra para Moscovo numa carrinha de refrigeração destinada a transportar ostras.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Women lives matter


Nesta que é a derradeira edição da minha crónica Raccords do Algoritmo fui levado pela mão de três mulheres que me deram a ver dois maravilhosos filmes e a ler um interessante livro. A Cíntia Gil que há umas semanas me apontava como uma as suas escolhas de 10 filmes marcantes o "Mourir à tue-tête" (Morrer de desespero, 1979) de Anne Claire Poirier, um filme sobre as múltiplas dimensões que nós, como sociedade, enfrentamos com a realidade da violação; a Mafalda Melo que tem estado embrenhada na retrospectiva que vai acontecer no IndieLisboa - 17.º Festival Internacional de Cinema sobre Ousmane Sembène, de quem vi "Moolaadé" (2004), obra prima de levar às lágrimas, sobre a excisão feminina numa aldeia senegalesa; e, por fim, a incrível Donna Haraway, cujo livro "Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene" me deu oportunidade de laçar o fim com chave de ouro, de ver a ligação entre o raccord e as suas string figures, movimentos de recomposição que descentralizam e descolonizam formas de pensar. Foram 24 edições intensas e muito gratificantes. Agradeço a quem ao longo destes tempos me foi lendo, concordando, discordando, em suma, "staying with the trouble".

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Em criança, lembro bem da primeira vez que um adulto quebrou uma promessa que me havia feito. Felizmente foi já bem tarde. Ou não, pois que dela guardo memória de espinhos. Há realidades que parecem não ter nome na linguagem infantil. Quando as descobrimos, por exemplo, a mentira, a traição ou o engano, o choque é tão ou mais profundo por não termos ainda à nossa disposição palavras para delas dar conta.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

O poder e desalento da dessincronia


Que bonito, e ao mesmo tempo triste, é o final de "It Must Be Heaven", de Elia Suleiman. Um realizador que parece não poder filmar, mas que vai convertendo o seu olhar numa espécie de câmara ambulante. E o que vê ele? Uma juventude dançando, em êxtase, mesmo que, saiba ele - foi o cartomante que lho disse - vai existir um Estado da Palestina, mas já não será durante o seu tempo de vida. Um filme, portanto, acerca da dessincronia de um desejo, de um direito, de um modo de olhar. É um filme que faz pensar também na infância, quando olhamos e o mundo parece desajustado, tantas coisas para fazer, mas ainda não são para nós. “Lá havemos de chegar”, dizem-nos. No inverso, o envelhecimento também produz o maravilhoso e produtivo choque da dessincronia. O mundo parece ir encolhendo, sendo cada vez menos à nossa medida. O olhar de Suleiman é o de Tati, por outros meios, por outros tempos. Um mundo degradado, ruidoso, desatento, cada vez menos sincronizado com uma forma de vida na qual Suleiman foi crescendo e lançando as raízes de um olhar e de uma postura, críticas e construtivas. Por isso, tão certeiro o momento em que Suleiman deverá falar para um grupo de jovem estudantes e progressivamente vamos vendo todos de fatos, mascarados, estranhos cartoons ambulantes de um presente ao qual já pouco pertence. Por isso, tantos os momentos em que Suleiman pensa, a medo, ser o alvo das pessoas e não o é, ou, inversamente, quando o deseja ser e nele não reparam. Um filme feito por uma sombra? Por um olhar encolhendo? Ainda uma desincronia entre o silêncio e a palavra, magnificamente filmado nesse momento das palmas síncronas para não perder tempo para as palestras. Um mundo onde o ruído, o apoio sonoro à causa, ameaça a expressão da própria causa. Talvez que para Suleiman lançar "It Must Be Heaven" na estranheza deste mundo tenha como "missão" acarinhar o espaço da dessincronia naquilo que tem de produtivo, uma distância para sentir, para julgar o que vamos vivendo.

domingo, 5 de julho de 2020

O poder do ponto final: um chuto no traseiro. A sedução de uma vírgula, espera só um pouco por mim. Que me dizes, ponto e vírgula? Quero tudo para mim, ter-te e não te ter. Que escondeis vós, oh benditos parênteses? (Um sonho que se vai adiando). Malditas aspas, pior que as melgas. Não nos trates mal, só não gostamos de javardice, cada um a seu "dono". Sobes comigo para um copo, travessão? Hoje não estou a fim, prefiro começar nova relação. Ponto de interrogação, questiono a tua presença. Sou como as crianças, sempre a querer saber porquê. Excitas-me, exclamação! Compreendo, mas eu elevo o nível quase sempre para esconder a fragilidade. Onde vão, reticências? Ainda não sabemos, levamos tempo a decidir...

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Quo Vadis multidão?

Estamos em 1912 ou 1913. Enrico Guazzoni realiza "Quo Vadis?", a partir do romance de Henryk Sienkiewicz. Este plano, perto do final do filme, é o momento trágico no qual Petronio, sentenciado à morte por Nero, decide antes disso cortar os seus pulsos juntamente com a sua amada, a sua escrava Eunice. Este é o seu beijo derradeiro antes de serem amparados, já mortos, pelos convidados do banquete de despedida. Uma das marcas que sinalizou o início dos blockbusters - os filmes monumentais italianos mas também em Griffith ou DeMille por exemplo - era o talento dos seus realizadores para encenar multidões. Planos com imensa gente, uma gestão das diferentes linhas de movimento de pessoas, animais, lutas, acenares, correrias, que podíamos ter num plano, na maioria das vezes ainda estático do ponto de vista da câmara. Se pensarmos nos blockbusters dos últimos anos a marca deixou de ser a possibilidade de encenar a multidão (ela foi-se do cinema, era cara e há o CGI). Por exemplo, neste plano de "Star Wars: A Ascensão de Skywalker" temos uma multidão de naves. Em teoria as pessoas/seres que as manipulam estão no seu interior. São elididas ou pressupostas. Essa passagem do plano cheio de gente ao plano cheio de máquinas como condição do "filme monumental" é um reflexo sobre o qual valia a pena pensar mais e melhor.






quinta-feira, 2 de julho de 2020

O realismo de Sísifo



 


Segunda-feira: lavar a louça, removendo as crostas de comida ressequida dos pratos. Terça-feira: passar a ferro a camisa azul. Quarta-feira: trocar os lençóis sujos da cama. Quinta-feira: lavar as janelas. Sexta-feira: descascar legumes para a sopa. Sábado: aspirar e limpar o pó. Domingo: passar lixívia na sanita. Segunda-feira: lavar a louça, removendo as crostas de comida ressequida dos pratos...


quarta-feira, 1 de julho de 2020