terça-feira, 29 de março de 2011

Leibniz e Margarida Rebelo Pinto

"Receio que não possamos permanecer por muito tempo na confusão e na miséria actuais por nossa própria culpa. Receio mesmo que, após termos esgotado inutilmente a nossa curiosidade sem que as nossas investigações tenham acrescentado algo à nossa felicidade, as pessoas se desiludam com as ciências e que um desespero fatal as faça recair na barbárie. O horrível aumento do número dos livros, que continua a crescer, pode contribuir muito para este resultado. Porque, em limite, a desordem tornar-se-á quase inultrapassável: a própria multidão dos autores irá expô-los em breve aos perigos do esquecimento geral: o sonho de glória que anima muitos dos que se dedicam ao estudo vai em breve desaparecer. Será talvez tão vergonhoso ser escritor como dantes foi honroso. Na melhor das hipóteses, podemos distrair-nos com pequenos livros de actualidade, que durarão apenas alguns anos e servirão para, durante breves momentos, arrancar o leitor ao seu tédio mas que foram escritos sem qualquer desejo de fazer avançar a ciência ou merecer os favores da posteridade. Dir-me-ão que há tantas pessoas que escrevem que seria impossível que as suas obras sobrevivessem todas. Admito-o e não desaprovo inteiramente que, tal como as flores de uma primavera ou os frutos de um Outono, esses livrinhos da moda não durem mais que um ano. Se são bem feitos, têm o mesmo efeito que uma conversação útil, mais não fazem do que agradar e impedir os ociosos de fazer asneiras. Enquanto tal, ajudam a formar o espírito e a linguagem. Por vezes, têm como finalidade conduzir os seus contemporâneos para o bem, coisa que eu igualmente persigo ao publicar esta pequena obra".

Nouvelle Vague (1990) - Jean-Luc Godard

«Les visages c'est pour les cons».

domingo, 27 de março de 2011

The Awful Truth- Leo McCarey

Às screwball comedies, comédias que apontavam a sua máquina de acidez aparentemente ligeirinha, inóqua, à movimentação dos géneros, ao disse que disse, casa descasa, ama que odeia, Leo McCarey fê-las como panquecas. Mas é neste THE AWFUL TRUTH, filme que McCarey fez para explicar a Capra como se faziam estas comédias, e que acabou por lhe valer o seu primeiro oscar para melhor realizador, que se pode ver a lenta transformação da teatralização deste subgenéro de comédia. As entradas e saídas de campo vertidas em entradas e saídas de cena, as longas sequências de conversa em interiores pontuadas pela alegorização dos pequenos objectos, a moral vitoriana denunciada pela singeleza do casamento. É talvez por isso que aqui seja propositado falar de um certo «touch», pertença ele seja a quem for, que mostra Aunt Patsy no cimo e abaixo do elevador onde tudo se transforma, ou no final absolutamente perfeito do filme com a utilização do relógio de cuco com as devidas figurinhas que hora dão as badaladas de casados juntos, ora dão separados. Mas mais do que mostrar a criatividade da solução final, McCarey consegue colocar novamente no tom certo uma comédia que tinha passado por uma certa travessia no deserto, que passa pelo divórcio do seu par de protagonistas e lenta indisposição provocada por uma decisão errada, e que, sobretudo a partir da seus últimos quinze minutos, se instala num território de um certo mal-estar, de abespinhamento pela facto de ambos não dizerem o que tem de ser dito entre eles e que reporá o equilíbrio da sua relação. Poucas vezes me lembrei de uma comédia que contivesse tal revolta por um desfecho positivo. É afinal de forte tensão sexual que estamos a falar e que nasce precisamente com a passagem do tempo por um amor que renasce mas não se reassume. Três anos depois, MY FAVOURITE WIFE, de Garson Kanin, produzido por McCarey, com o mesmo par de protagonistas, os “casados” Cary Grant e Irene Dunne, com uma estrutura e temas muito semelhantes, já não comunga dessa agonia, dessa dita tensão sexual revertendo a válvula de escape para o sentimento familiar. Aí já há criancinhas para tomar conta e a comédia fetichista que foi MY FAVOURITE WIFE transformou-se afinal, ainda que por ínvios caminhos, num filme mais capriano.

sexta-feira, 25 de março de 2011

A Humanidade toda inteira

"Ó cérebros infantis!

Para nunca esquecer a coisa principal,
Vimos por toda a parte, e sem ter procurado,
Desde cima até abaixo da escada fatal,
O espectáculo enfadonho do imortal pecado:

A mulher, escrava vil, tão orgulhosa e estúpida,
A adorar-se sem rir e a amar-se sem nojo;
A homem, tirano sôfrego, devasso e cúpido,
Duro escravo do escravo e rio no meio do esgoto;

A verdugo que goza, o mártir que soluça;
O licor do poder, que vais excitando o déspota;
Este festim que o sangue tempera e perfuma
E o povo a desejar chicotes que embrutecem,

Várias religiões semelhantes à nossa,
Todos querendo ascender ao céu; a Santidade,
Como nas plumas um ser frágil se rebola,
Busca em pregos e crinas a sensualidade;

Loquaz Humanidade, ébria com o seu génio,
E, tão louca hoje em dia como em tempos idos,
Gritando a Deus, na sua glória colérica:
"Ó meu igual, ó meu senhor, eu te maldigo!"

E os menos boçais, amantes da Demência,
fugindo da manada que o Fado conduz,
Vão-se rebolando no ópio imenso!
-Tal é do globo inteiro o eterno resumo. "

in A VIAGEM, Baudelaire (tradução Fernando Pinto do Amaral)

quarta-feira, 23 de março de 2011

L'enfer, c'est les autre(s)

«Quelque chose a craqué dans le monde et tout un pan de choses s'écroule en devenant moi. Chaque objet est disqualifié au profit d'un sujet correspondant. La lumière devient œil, et elle n'existe plus comme telle: elle n'es plus qu'excitation de la rétine. L'odeur devient narine — et le monde lui-même s'avère inodore. La musique du vent dans les palétuviers est réfutée: ce n'était qu'un ébranlement de tympan. Le sujet est un objet disqualifié. Mon œil est le cadavre de la lumière, de la couleur. Mon nez est tout ce qui reste des odeurs quand leur irréalité a été démontrée. Ma main réfute la chose tenue. Dès lors le problème de la connaissance naît d'un anachronisme. Il implique la simultanéité du sujet et de l'objet dont il voudrait éclairer les mystérieux rapports. Or le sujet et l'objet ne peuvent coexister, puisqu'ils sont la même chose, d'abord intégrée au monde réel, puis jetée au rebut». Autrui assure donc la distinction de la conscience et de son objet, comme distinction temporelle. Le premier effet de sa présence concernait l'espace et la distribution des catégories de la perception; mais le deuxième effet, peut-être plus profond, concerne le temps et la distribution de ses dimensions, du précédent et du suivant dans le temps. Comment y aurait-il encore un passé quand autrui ne fonctionne plus?»

in Logique du Sens, Gilles Deleuze

domingo, 20 de março de 2011

E enquanto se espera pela «crise» da crise...

A crise económica mundial, o sismo e ameaça nuclear no Japão, a guerra na Líbia. É sobretudo sobre estes eventos que os olhos do mundo vão, em distraída modorra, fazendo zapping por estes dias. Três episódios que em mosaico procuram um raccord incerto num real confuso, uma coerência que seja o nó final de uma ficção que faz ora vítimas, ora mártires. Esse veio de seres humanos ligados por uma cadeia inextrincável de snapshots - que liga as vestes do «vilão» Khadafi às águas lançadas sobre os reactores nucleares de Fukushima, que junta ventos destruidores a falências de multinacionais, ou a radioactividade nos espinafres aos aviões líbios que caiem pela primeira vez, quase live - essa série de eventos, num loop absolutamente maquínico e infernal, frustram a expectativa do olhar voraz. Um olhar que procura desfechos, em que os heróis gritam muito alto: chega. Mas chega de quê? Precisamente essa é a questão que levanta hoje mais perplexidades.

Uma crise, uma catástrofe natural, uma guerra. Um triângulo de acontecimentos que, embora díspares nas suas causas, tem a uni-los, uma certa ideia: a reescrita.

A crise financeira pôs em evidência um erro histórico que mais do que antever os perigos da ficção monetária com que nos governamos há séculos, assentou sobretudo na falência de um sistema económico que deixou à «boa vontade» do indivíduo o papel directivo. Assim, não espanta que o desmoronamento do edifício financeiro no mundo ocidental surja como queda de uma ficção de créditos. Porque quando se trata uma ficção com a consciência de que é, ela própria, uma ficção perde-se a imersão. Esse distanciamento permite ver o sistema económico como falsidade, não já como ficção que tem a aparência de realidade, mas como algo abertamente postiço. Neste sentido, a crise é um movimento de falência da ficção monetária que exige reescrever a «personagem» oikonomia (do grego, governo da casa) e que exige uma nova forma do sujeito se auto sustentar numa realidade feita de casas, máquinas e alimentos. Pouco mais. Essa reescrita, não creio que passe pela consciência de um retrocesso a um sentir primitivo, ideia muito em voga por estes dias, mas antes pela pura assunção do erro. A pós-história não se pode dar ao luxo de se ausentar dos seus erros.

Por outro lado, que mais não fazem as ondas de 10 metros a varrer o nordeste do Japão, ou melhor as imagens das águas a avançar e as da terra a recuar em desordenação, senão pensar na rescrita natural do território que impõe uma nova lógica de ordenação? Se se converte em anedota mediática que a ilha do Japão se tenha movido um metro e meio com a catástrofe, essa é a literalização de uma pequena «nova versão» do Japão, ditado por um novo acto no qual a procura de dezenas de milhares de desaparecidos por entre os escombros, não é mais do que juntar a melancolia da sobrevivência moderna ao cinismo da devastação criativa contemporânea. Mais do que um filme de desastre esta é uma obra de persistência. A terra reescreve a humanidade mas, até hoje, não completamente. E os sobreviventes, como traço original do texto que permanece num acto de reescrita, serão recuperados para os braços dos seus familiares e para um Japão radioactivo e de cara lavada.

Na Líbia começou a apropriação política e económica neste movimento de defesa dos rebeldes. Isso é o pão-nosso de cada dia aliás, o que se assiste com interesse é ao aperfeiçoamento da técnica de apropriação, ao aguçar do engenho. A ONU encontra em Khadafi o vilão perfeito no qual se pode erigir a velha ficção do bem contra o mal. Mediaticamente, trata-se de uma clarificação de uma fábula bélica em que o velho destino das tragédias gregas, origem de todos os males, é substituído pelo vilão medieval, obscuro, insano, envergando vestes tribais. E de certa forma é esse destino clássico que estes rebeldes líbios, mas também egípcios ou do Bahrein falam quando procuram uma maior liberdade de pensamento e acção. Reescrita política e individual. Sendo que o lado político, porque não apenas líbio mas também internacional quer apontar uma outra versão que contamina a leitura dos «25 de Abri(s)» árabes. E mesmo os regimes visuais divergem: como comparar as imagens de escaramuças populares dos revoltosos contra as forças de Khadafi, com as da intervenção militar da ONU? Imagens de uma revolta versus imagens de um ataque? Contudo, a violência da inserção destas imagens de violência trabalha o contínuo, a montagem perfeita, uma atractividade que esquece, ignora, sublinha. «25 de Abril árabe», belo título para um épico à medida.

E eis-nos chegados à crise portuguesa que está entre em todos estes eventos. Não pode deixar de estar. O discurso político português nada inova nos simplismos populistas que colocam a crise económica como um «inimigo invisível», um papão que há que lutar com a materialidade do quotidiano. A questão é que a nossa crise, aquela só nossa, dita lusitana, baralha as contas do sacrifício. Ao profano já não se promete hoje a sacralização de uma estabilidade económica. Promete-se uma continuidade da crise atenuada, uma via dolorosa sem norte. Uma dinâmica imparável onde o homem civilizado, contrariando a velha ortogénese do ser humano, não pode deixar de distinguir imagens que se sucedem e que chocam abruptamente. O desemprego nacional que choca com a factura da mecanização da sociedade, do «lazer eterno» que o homem reclamou para si e que faz do trabalho um bem escasso. (O trabalho em crise?) O congelamento de pensões que choca com a luta ávida pela manutenção de poder de uma cor política naturalmente desgastada. A diminuição da tributação de campos de golfe que choca com os cortes da cultura. E por aí fora.

Nesta absoluta incapacidade de separar as águas, de rever o início e o fim dos planos, uma coisa é certa. Quando todos nos pedem uma reescrita da economia portuguesa, esquecemo-nos de pensar que uma reescrita se faz a partir de um original. Ora, é hoje esse original que está em falência, que parece ser necessário escrever ex novo. É dessa ausência de algo com que fazer «uma nova versão de», que emerge a verdadeira noção de sacríficio. Contudo, mentes que querem encontrar a solução a partir do seu interior viciado, viciado porque contaminado pela ficção do real que tudo abarca, insistem em travar a «coisa». Em chamar aos jovens, «deolindos», aos «homens da luta», demagogos.

Pergunte-se, a que luta pertencem os «homens da luta»? Pertencem à luta, precisamente. Hoje como nunca é fundamental reclamar a generalização como postura intransigente, de recomeço. A uma crise abstractizada, uma luta abstracta, mas nossa.


Qual luta? A luta.

quarta-feira, 16 de março de 2011

A culpa é um lobo que come o filho depois de ter devorado o pai

MOONRISE- Frank Borzage (1948)

JUSTE AVANT LA NUIT - Claude Chabrol (1971)

terça-feira, 15 de março de 2011

Dementia 13

Este post vem em defesa no último plano de DEMENTIA 13, pois que Coppola/Corman gostavam naturalmente de Hitchcock, mas também de Tourneur. Este post vem em defesa da sequência inicial de DEMENTIA 13 que mostra como poucas o equilíbrio entre o frágil on dos filmes de série B da época e o elaboradíssimo conceito de off. Este post defende que A CARNIVAL OF SOULS ainda é o melhor Coppola desta fase. Este post quer louvar a beleza trashy de Luana Anders (EASY RIDER, PIT AND THE PENDULUM) e finalmente fazer a devida referência à banda sonora de Ronald Stein. De resto, este post tem consciência que se trata de um filme maravilhosamente pobre.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Os sete pecados capitais da crítica


1-Ignorância completa da História do Cinema;
2-Ignorância da técnica cinematográfica;
3-Ausência total de imaginação;
4-Preferência pelo cinema francês, pelo facto dos críticos conhecerem pessoalmente os realizadores;
5-Tom insolente ou professoral;
6-Julgar os filmes segunda as «intenções» do realizador;
7-Idade excessiva dos críticos, «cujos cérebros deram o melhor de si em 1925».

François Truffaut, 1955

quinta-feira, 10 de março de 2011

O tempo passa e as flores esmorecem

Donde surge a inspiração poética? Milenar pergunta que surge na boca da protagonista Mija (a veterana Jeong Ye - Hun) numa aula de poesia e que é o centro do drama e da última obra do coreano, Lee Chang – Dong. A resposta do seu professor vai ser uma evidência, que é preciso «ver bem para escrever poesia», mas perante este SHI, vencedor do prémio para melhor argumento da edição do festival de Cannes do ano transacto, percebe-se que esse acto de ver é ao mesmo tempo o acto de reconstruir o mundo, ou um mundo, através da linguagem. E essa reconstrução destrói qualquer arremedo de intencionalidade dramática que lidar com a senilidade, violação, ou mesmo poesia, pareceriam implicar.

Mija é uma senhora idosa que trata de um homem incapacitado para poder sustentar Wook, seu neto adolescente. Dois eventos vêm perturbar a ordem. O neto esteve envolvido num crime e ela que começa a esquecer-se das coisas, a ficar doente. No último ano tivemos a possibilidade de ver em Portugal os esforços de uma mãe (MADEO, de Joon-Ho Bong) e de duas avós (LOLA, de Brillante Mendoza) que tentam reparar as faltas dos respectivos descendentes. Seja esta uma tradução contemporânea do muito conhecido drama familiar japonês agora cada vez com menos tempo para mono no aware(s), seja mera coincidência, o certo é que em todos eles, incluindo SHI, a força da ligação familiar ou a tragédia impossível são tratadas com a mesma lógica de impassível possibilidade.

Desta forma, Mija, vai perdendo as palavras pelo caminho, «carteira» ou «lexívia», esquece-as, para encontrar outras, palavras fundadoras, que já não têm que vir da ordem sequencial da memória e que podem muito simplesmente ser a tradução aleatória da contemplação do seu sofrimento e dos outros. Nesse sentido, neste ensimesmado character study, que é simultaneamente um art study, a resposta à pergunta de onde vem a inspiração poética é respondido da forma mais limpa e mais cruel. Ela ora nos vem da boca das Musas, ora das mãos dissimuladas das Erínias. E isso é uma evidência.

segunda-feira, 7 de março de 2011

A pitinha põe o ovo

«Daqui por algumas semanas este menino fará as suas primeiras tentativas para pôr-se de pé e caminhar, irá de mãos ao chão vezes sem conta e ficará a olhar em frente, a cabeça dificilmente levantada, enquanto ouve a voz da mãe que lhe diz, Vem cá, vem cá, meu menino, e não muito tempo depois sentirá a primeira necessidade de falar, quando alguns sons novos começarem a formar-se na sua garganta, e ao princípio não saberá que fazer com eles, confundi-los-á com os outros que já conhecia e vinha praticando, os do grito e os do choro, porém não tardará a perceber que deve articulá-los de um modo muito diferente, mais compenetrado, imitando e ajudado pelo movimento dos lábios do pai e da mãe, até que consiga pronunciar a primeira palavra, qual ela tenha sido não sabemos, talvez papa, talvez papá, talvez mamã, o que sim sabemos é que a partir de agora nunca mais o menino Jesus terá de fazer aquele gesto do indicador da mão direita na palma da mão esquerda se a mãe e as vizinhas tornarem a perguntar-lhe, Onde é que a galinha põe o ovo, é uma indignidade a que se sujeita o ser humano, tratá-lo como um cãozito ensinado a reagir a um estímulo sonoro, voz, assobio ou estalo de chicote. Agora Jesus está capacitado para responder que a galinha pode pôr ir pôr o ovo aonde quiser, desde que o não faça na palma da sua mão.»

in O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO - José Saramago

quinta-feira, 3 de março de 2011

Harold and Maude


Uma das ideias para mim mais fascinantes de Jean Baudrillard no que diz respeito ao cinema é a de que este se coloca como uma espécie de «portal» entre aquilo que se chamou comummente a expressão cultural pré-moderna, na celebração do mito e da troca simbólica, e as expressões ditas modernas, que no advento do capitalismo, tornaram indistintas a cultura do simulacro e das massas. Desta forma, o cinema ganha um papel insubstituível pela forma como funde o que é da natureza do mito primitivo e cerimonial à comunhão própria das artes populares. Por pura ignorância sempre pensei que esse link que o cinema conseguia tinha, pela menos na minha cabeça tinha, sobretudo a ver com a qualidade da sua luz, da sua imagem.


Ao ver um filme como HAROLD AND MAUDE, de Hal Ashby é fácil compreender o meu erro. Desta relação proibida entre uma octogenária e um adolescente (Bud Cort numa expressão tão peculiar quanto Lorre), bizarria das bizarrias, fica-me a ideia que o lado cerimonial do cinema, a sua sedução, ideia tão cara ao filósofo francês, reside sobretudo numa série de afirmações, de elementos que parecem ter de ser enunciados, independentemente da capacidade de um cineasta os mostrar. Maude, segundo um olhar analítico, é uma velha com trejeitos de hippie, carregada de maneirismos, e é sobretudo, uma personagem que tem na boca o que quer dizer ao jovem suicída Harold. Mas que tem na boca sobretudo uma afirmação de vitalidade despropositada que quer a todo o custo passar ao espectador. Trata-se de um «erro narrativo», segundo a literatura que se produz sobre o assunto.

Contudo, seja Maude uma personagem erro, um coro que nos interpela, seja ele, o filme, carregado com o espírito seventies sublinhado pela intermitência da música de Cat Stevens, o certo é que há coisas que parecem terem de ser ditas no sentido de tornar a vida mais possível. Acatadas, ou não, têm de ser ditas. A sedução do cinema torna-se assim simultaneamente o poder fundador das suas imagens, mas também a celebração colectiva do puro artifício, do vazio de verdade que ainda assim é verdade. Uma verdade algures que fará sentido. Uma verdade que aqui quer convocar a nossa vontade de viver. Consegue-o? Não sei. Mas o seu esforço, o apelo à comunhão - comunhão que já nem existe hoje a não ser por portas travessas - está todo encapsulado em HAROLD AND MAUDE.