A crise económica mundial, o sismo e ameaça nuclear no Japão, a guerra na Líbia. É sobretudo sobre estes eventos que os olhos do mundo vão, em distraída modorra, fazendo zapping por estes dias. Três episódios que em mosaico procuram um raccord incerto num real confuso, uma coerência que seja o nó final de uma ficção que faz ora vítimas, ora mártires. Esse veio de seres humanos ligados por uma cadeia inextrincável de snapshots - que liga as vestes do «vilão» Khadafi às águas lançadas sobre os reactores nucleares de Fukushima, que junta ventos destruidores a falências de multinacionais, ou a radioactividade nos espinafres aos aviões líbios que caiem pela primeira vez, quase live - essa série de eventos, num loop absolutamente maquínico e infernal, frustram a expectativa do olhar voraz. Um olhar que procura desfechos, em que os heróis gritam muito alto: chega. Mas chega de quê? Precisamente essa é a questão que levanta hoje mais perplexidades.
Uma crise, uma catástrofe natural, uma guerra. Um triângulo de acontecimentos que, embora díspares nas suas causas, tem a uni-los, uma certa ideia: a reescrita.
A crise financeira pôs em evidência um erro histórico que mais do que antever os perigos da ficção monetária com que nos governamos há séculos, assentou sobretudo na falência de um sistema económico que deixou à «boa vontade» do indivíduo o papel directivo. Assim, não espanta que o desmoronamento do edifício financeiro no mundo ocidental surja como queda de uma ficção de créditos. Porque quando se trata uma ficção com a consciência de que é, ela própria, uma ficção perde-se a imersão. Esse distanciamento permite ver o sistema económico como falsidade, não já como ficção que tem a aparência de realidade, mas como algo abertamente postiço. Neste sentido, a crise é um movimento de falência da ficção monetária que exige reescrever a «personagem» oikonomia (do grego, governo da casa) e que exige uma nova forma do sujeito se auto sustentar numa realidade feita de casas, máquinas e alimentos. Pouco mais. Essa reescrita, não creio que passe pela consciência de um retrocesso a um sentir primitivo, ideia muito em voga por estes dias, mas antes pela pura assunção do erro. A pós-história não se pode dar ao luxo de se ausentar dos seus erros.
Por outro lado, que mais não fazem as ondas de 10 metros a varrer o nordeste do Japão, ou melhor as imagens das águas a avançar e as da terra a recuar em desordenação, senão pensar na rescrita natural do território que impõe uma nova lógica de ordenação? Se se converte em anedota mediática que a ilha do Japão se tenha movido um metro e meio com a catástrofe, essa é a literalização de uma pequena «nova versão» do Japão, ditado por um novo acto no qual a procura de dezenas de milhares de desaparecidos por entre os escombros, não é mais do que juntar a melancolia da sobrevivência moderna ao cinismo da devastação criativa contemporânea. Mais do que um filme de desastre esta é uma obra de persistência. A terra reescreve a humanidade mas, até hoje, não completamente. E os sobreviventes, como traço original do texto que permanece num acto de reescrita, serão recuperados para os braços dos seus familiares e para um Japão radioactivo e de cara lavada.
Na Líbia começou a apropriação política e económica neste movimento de defesa dos rebeldes. Isso é o pão-nosso de cada dia aliás, o que se assiste com interesse é ao aperfeiçoamento da técnica de apropriação, ao aguçar do engenho. A ONU encontra em Khadafi o vilão perfeito no qual se pode erigir a velha ficção do bem contra o mal. Mediaticamente, trata-se de uma clarificação de uma fábula bélica em que o velho destino das tragédias gregas, origem de todos os males, é substituído pelo vilão medieval, obscuro, insano, envergando vestes tribais. E de certa forma é esse destino clássico que estes rebeldes líbios, mas também egípcios ou do Bahrein falam quando procuram uma maior liberdade de pensamento e acção. Reescrita política e individual. Sendo que o lado político, porque não apenas líbio mas também internacional quer apontar uma outra versão que contamina a leitura dos «25 de Abri(s)» árabes. E mesmo os regimes visuais divergem: como comparar as imagens de escaramuças populares dos revoltosos contra as forças de Khadafi, com as da intervenção militar da ONU? Imagens de uma revolta versus imagens de um ataque? Contudo, a violência da inserção destas imagens de violência trabalha o contínuo, a montagem perfeita, uma atractividade que esquece, ignora, sublinha. «25 de Abril árabe», belo título para um épico à medida.
E eis-nos chegados à crise portuguesa que está entre em todos estes eventos. Não pode deixar de estar. O discurso político português nada inova nos simplismos populistas que colocam a crise económica como um «inimigo invisível», um papão que há que lutar com a materialidade do quotidiano. A questão é que a nossa crise, aquela só nossa, dita lusitana, baralha as contas do sacrifício. Ao profano já não se promete hoje a sacralização de uma estabilidade económica. Promete-se uma continuidade da crise atenuada, uma via dolorosa sem norte. Uma dinâmica imparável onde o homem civilizado, contrariando a velha ortogénese do ser humano, não pode deixar de distinguir imagens que se sucedem e que chocam abruptamente. O desemprego nacional que choca com a factura da mecanização da sociedade, do «lazer eterno» que o homem reclamou para si e que faz do trabalho um bem escasso. (O trabalho em crise?) O congelamento de pensões que choca com a luta ávida pela manutenção de poder de uma cor política naturalmente desgastada. A diminuição da tributação de campos de golfe que choca com os cortes da cultura. E por aí fora.
Nesta absoluta incapacidade de separar as águas, de rever o início e o fim dos planos, uma coisa é certa. Quando todos nos pedem uma reescrita da economia portuguesa, esquecemo-nos de pensar que uma reescrita se faz a partir de um original. Ora, é hoje esse original que está em falência, que parece ser necessário escrever ex novo. É dessa ausência de algo com que fazer «uma nova versão de», que emerge a verdadeira noção de sacríficio. Contudo, mentes que querem encontrar a solução a partir do seu interior viciado, viciado porque contaminado pela ficção do real que tudo abarca, insistem em travar a «coisa». Em chamar aos jovens, «deolindos», aos «homens da luta», demagogos.
Pergunte-se, a que luta pertencem os «homens da luta»? Pertencem à luta, precisamente. Hoje como nunca é fundamental reclamar a generalização como postura intransigente, de recomeço. A uma crise abstractizada, uma luta abstracta, mas nossa.
Qual luta? A luta.
Uma crise, uma catástrofe natural, uma guerra. Um triângulo de acontecimentos que, embora díspares nas suas causas, tem a uni-los, uma certa ideia: a reescrita.
A crise financeira pôs em evidência um erro histórico que mais do que antever os perigos da ficção monetária com que nos governamos há séculos, assentou sobretudo na falência de um sistema económico que deixou à «boa vontade» do indivíduo o papel directivo. Assim, não espanta que o desmoronamento do edifício financeiro no mundo ocidental surja como queda de uma ficção de créditos. Porque quando se trata uma ficção com a consciência de que é, ela própria, uma ficção perde-se a imersão. Esse distanciamento permite ver o sistema económico como falsidade, não já como ficção que tem a aparência de realidade, mas como algo abertamente postiço. Neste sentido, a crise é um movimento de falência da ficção monetária que exige reescrever a «personagem» oikonomia (do grego, governo da casa) e que exige uma nova forma do sujeito se auto sustentar numa realidade feita de casas, máquinas e alimentos. Pouco mais. Essa reescrita, não creio que passe pela consciência de um retrocesso a um sentir primitivo, ideia muito em voga por estes dias, mas antes pela pura assunção do erro. A pós-história não se pode dar ao luxo de se ausentar dos seus erros.
Por outro lado, que mais não fazem as ondas de 10 metros a varrer o nordeste do Japão, ou melhor as imagens das águas a avançar e as da terra a recuar em desordenação, senão pensar na rescrita natural do território que impõe uma nova lógica de ordenação? Se se converte em anedota mediática que a ilha do Japão se tenha movido um metro e meio com a catástrofe, essa é a literalização de uma pequena «nova versão» do Japão, ditado por um novo acto no qual a procura de dezenas de milhares de desaparecidos por entre os escombros, não é mais do que juntar a melancolia da sobrevivência moderna ao cinismo da devastação criativa contemporânea. Mais do que um filme de desastre esta é uma obra de persistência. A terra reescreve a humanidade mas, até hoje, não completamente. E os sobreviventes, como traço original do texto que permanece num acto de reescrita, serão recuperados para os braços dos seus familiares e para um Japão radioactivo e de cara lavada.
Na Líbia começou a apropriação política e económica neste movimento de defesa dos rebeldes. Isso é o pão-nosso de cada dia aliás, o que se assiste com interesse é ao aperfeiçoamento da técnica de apropriação, ao aguçar do engenho. A ONU encontra em Khadafi o vilão perfeito no qual se pode erigir a velha ficção do bem contra o mal. Mediaticamente, trata-se de uma clarificação de uma fábula bélica em que o velho destino das tragédias gregas, origem de todos os males, é substituído pelo vilão medieval, obscuro, insano, envergando vestes tribais. E de certa forma é esse destino clássico que estes rebeldes líbios, mas também egípcios ou do Bahrein falam quando procuram uma maior liberdade de pensamento e acção. Reescrita política e individual. Sendo que o lado político, porque não apenas líbio mas também internacional quer apontar uma outra versão que contamina a leitura dos «25 de Abri(s)» árabes. E mesmo os regimes visuais divergem: como comparar as imagens de escaramuças populares dos revoltosos contra as forças de Khadafi, com as da intervenção militar da ONU? Imagens de uma revolta versus imagens de um ataque? Contudo, a violência da inserção destas imagens de violência trabalha o contínuo, a montagem perfeita, uma atractividade que esquece, ignora, sublinha. «25 de Abril árabe», belo título para um épico à medida.
E eis-nos chegados à crise portuguesa que está entre em todos estes eventos. Não pode deixar de estar. O discurso político português nada inova nos simplismos populistas que colocam a crise económica como um «inimigo invisível», um papão que há que lutar com a materialidade do quotidiano. A questão é que a nossa crise, aquela só nossa, dita lusitana, baralha as contas do sacrifício. Ao profano já não se promete hoje a sacralização de uma estabilidade económica. Promete-se uma continuidade da crise atenuada, uma via dolorosa sem norte. Uma dinâmica imparável onde o homem civilizado, contrariando a velha ortogénese do ser humano, não pode deixar de distinguir imagens que se sucedem e que chocam abruptamente. O desemprego nacional que choca com a factura da mecanização da sociedade, do «lazer eterno» que o homem reclamou para si e que faz do trabalho um bem escasso. (O trabalho em crise?) O congelamento de pensões que choca com a luta ávida pela manutenção de poder de uma cor política naturalmente desgastada. A diminuição da tributação de campos de golfe que choca com os cortes da cultura. E por aí fora.
Nesta absoluta incapacidade de separar as águas, de rever o início e o fim dos planos, uma coisa é certa. Quando todos nos pedem uma reescrita da economia portuguesa, esquecemo-nos de pensar que uma reescrita se faz a partir de um original. Ora, é hoje esse original que está em falência, que parece ser necessário escrever ex novo. É dessa ausência de algo com que fazer «uma nova versão de», que emerge a verdadeira noção de sacríficio. Contudo, mentes que querem encontrar a solução a partir do seu interior viciado, viciado porque contaminado pela ficção do real que tudo abarca, insistem em travar a «coisa». Em chamar aos jovens, «deolindos», aos «homens da luta», demagogos.
Pergunte-se, a que luta pertencem os «homens da luta»? Pertencem à luta, precisamente. Hoje como nunca é fundamental reclamar a generalização como postura intransigente, de recomeço. A uma crise abstractizada, uma luta abstracta, mas nossa.
Qual luta? A luta.
Cheguei aqui a propósito de seu comentário em meu post de 127 Horas. Alegra-me muito descobrir que existem blogs com bom conteúdo a conhecer. Passarei a visitá-lo com frequência agora.
ResponderEliminarAbraço!!!
Obrigado Pedro
ResponderEliminar