sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Qualidade versus quantidade


Hoje o índice que avalia a inteligência parece ter-se reduzido a um affair de links quantitativos, comandados pelos cánones culturais, pelas listas, e pelo multitasking, mas também pela aceleração geral de uma boa performance. No cinema isso é evidente com a construção soviética a ser substituída pela construção da distração contemporânea dos planos da acção mainstream. Always on the move tido como credo seguinte ao auto-impulsionamento introduzido pelos carros da Modernidade como escreveu Sloterdijk. Assim, hoje, a ligação meramente acumulativa é da ordem do pulsional e do pornográfico. Já a ligação qualitativa pressupõe um julgamento, um tempo para averiguar da adição ou da subtracção do item seguinte ao percurso do raciocínio. No fundo, aqui está sobretudo subjacente uma questão de erotismo, de desvelamento progressivo comandado por um desejo. O no matter what - viver ou morrer, ler ou escrever, fazer bem ou mal, destruir ou construir, verdade ou pós-verdade - encabeça essa falência do link qualitativo. Vivemos na dependência de uma cultura de adicção, de maçãs proibidas que comemos ao ritmo de uma roda dentada que nos devora ela própria. E ainda não há melhor metáfora visual para a nossa mudança para o rítmico maquínico do que o Chaplin cheio de tiques no "Modern Times". Das fábricas às timelines, o mesmo flow imparávelPerante isto consegue-se pensar em pelo menos duas leituras possíveis para este estado de coisas. Um, o da automatização total como uma nova expulsão do paraíso (isto é, reaprender a viver na escassez à custa de um desastre qualquer que nos force). Dois, o desinteresse pela plena liberdade, uma laboriosa construção de auto-impostas palas (nos olhos e nos dedos) para voltar a vir até nós o desejo de ligar as coisas, de reencadear o mundo a um ritmo além daquele imposto por uma sociabilidade de feed constante. 

Por falar em link qualitativo: queria escrever sobre a forma como o "Moonstruck" da Cher termina muito parecido ao "La Terra Trema" do Visconti mas vai ter de ficar para depois.


quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Amigos Pensados: Belarmino



Tiveste jeito, como qualquer de nós,
e foste campeão, como qualquer um de nós.

Que é a poesia mais do que boxe, não me dizes?
Também na poesia não se janta nada,
mas nem por isso somos infelizes.

Campeões com jeito
é nossa vocação, nosso trejeito.

Esperam de 1 a 10 que a gente, oxalá, não se levante
- e a gente levanta-se, pois pudera, sempre.

Mas do miudame levámos cada soco!
Achas que foi pouco?

Belarmino:
quando ao tapete nos levar
a mofina,
tu ficarás sem murro,
eu ficarei sem rima,
pugilista e poeta, campeões com jeito
e amadores da má vida.

Alexandre O'Neill (1965)

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

We lived, to a certain extent, in harmony with nature. In winter we froze, in summer we roasted in the sun, in autumn we kneaded the mud with our feet, while in spring we were inundated by the flood. He who has not experienced all this does not know what joy and real living is. (...) We can only pity the man whose imagination is dull and dries up"whose recollection of childhood and adolescence yields nothing dear and unusual, and whom nothing can warm or make sad or happy, such a man is nondescript, whatever his status, and his work, denied the warm rays of time, is doomed to be nondescript.


Alexander Dovzhenko in "The Enchanted Desna" (1948)

sábado, 24 de dezembro de 2016

Os 10 melhores filmes de 2016

1-Rak ti Khon Kaen (Cemitério do Esplendor, 2015) de Apichatpong Weerasethakul
2-The Hateful Eight (Os Oito Odiados, 2015) de Quentin Tarantino
3-L’ombre des femmes (A Sombra das Mulheres) de Philippe Garrel
4-Shan he gu ren (Se as Montanhas se Afastam, 2015) de Jia Zhang-ke
5-A Toca do Lobo (2015) de Catarina Mourão
6-Cìkè Niè Yinniáng (A Assassina, 2015) de Hou Hsiao-hsien
7-O Ornitólogo (2016) de João Pedro Rodrigues
8-Saul fia (O Filho de Saul, 2015) de László Nemes
9-Arrival (O Primeiro Encontro, 2016) de Denis Villeneuve
10-Hardcore Henry (Hardcore, 2015) de Ilya Naishuller

Assim como por vezes é impossível descortinar os insondáveis mistérios da distribuição portuguesa – que ora oscila entre os omissões e os filmes em catadupa -, creio também ser muito difícil encontrar um padrão para as minhas escolhas de melhores filmes do ano. Um esforço que carregue o risco de chegar a uma solução demasiado genérica talvez pudesse chegar a um conceito de inclusão. Ou a obras que por variadíssimas formas procuram conciliar-se ou acrescentar-se em espectros muitas vezes vistos como opostos. Senão vejamos: Apichatpong abalou a fronteira entre o vivo e o morto (assim como a tarefa de ver como algo hoje próprio do super-herói); Tarantino filmou uma cabana em 70 mm mostrando que o whodunnit da história da América é sobretudo um alldunnit; Garrel incluiu na simplicidade da criação ficcional todo o mundo, numa mostragem que todas as ficções são também documentários; Jia Zhang-ke inclui na China em mutação, o entre tempos, uma suavidade de transição que engloba o espectador como parte daquilo que muda; Catarina Mourão inclui no documentário familiar o thriller de investigação e sobretudo o potencial dramático do acesso ao arquivo; Hou Hsiao-hsien dá-nos um filme de acção estático, uma acção de alcance interior e moral; João Pedro Rodrigues brinca com as altitudes (o pássaro e o ser de pés assentes na terra) e inclui na ascese a queda e na descida a necessidade de olhar o alto; Nemes destroi os (demasiado) fieis discípulos de Daney pondo, de forma inteligente, em campo o que é dos campos; Villeneuve (passe-se o mel mallickiano) inclui a questão da linguagem e da não linearidade do tempo como assuntos entre-espécies; finalmente, a surpresa do ano, o film on the move, espécie de ensaio desmiolado sobre a crescente portabilidade técnica dos olhares com o cinema a filmar o jogo e o jogo a olhar, incrédulo, o cinema.

2016 teve bastante mais filmes razoavelmente bons que por uma ou outra razão (as vezes de circunstância) não restaram nos 10 primeiros. Verhoeven também inclui o desejo e a dominação do violado sobre o violador, mas está demasiado preso a essa premissa; Hong Sang-soo, um dos meus cineastas favoritos da actualidade, este ano esteve, com Ji-geum-eun-mat-go-geu-ddae-neun-teul-li-da (Sítio Certo, História Errada 2015) também demasiado “preso”, mas neste caso à família cinéfila, com um final em espelho para que os amantes do cinema nele se possam mirar, orgulhosos e onanistas; Rosi e Loach assinaram “filmes políticos” onde o político é o vocábulo mais relevante da expressão. Talvez valesse falar também, com agrado, do último filme de Todd Haynes, do último Almodóvar, do filme (quase) a negro de Fede Álvarez, da semi-desilusão da armada romena e do filme de Ira Sachs  [Love is Strange (O Amor é Uma Coisa Estranha, 2014)] que filma o problema da morada como aquilo de opõe a lógica material do sistema e a lógica imaterial das relações. Este ano os meus pecados cinéfilos mais relevantes  foram não ter conseguido ver o último filme da Mia Hansen-Løve, nem o derradeiro Eastwood. De resto que 2017 seja pelo menos não bom quanto este que agora termina.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Rien que le cinéma




Rien que le cinéma

Si le cinéma n'existait plus, Nicholas Ray, lui seul, donne l'impression de pouvoir le réinventer, et qui plus est, de le vouloir. Alors que l’on imagine volontiers John Ford amiral, Robert Aldrich à Wall Street, Anthony Mann sur les traces de Belîiou la Fumée, Raoul Walsh nouvel Henry Morgan sous le ciel des Caraïbes, on voit très mal en revanche ce que le metteur en scène d’A l’ombre des potences donnerait dans quelque activité que ce soit, autre que cinématographique. Un Logan, par exemple, ou un Tashlin, peuvent réussir dans le théâtre ou le music-hall, un Preminger dans le roman, un Brooks dans l’enseignement primaire, un Fuller dans la politique, un Cukor dans la publicité, mais pas un Nicholas Ray. La plupart des cinéastes, si le cinéma n’existait soudain plus, ne seraient point désemparés pour autant. Nicholas Ray, oui. Après la projection de Johny Guitare ou de La Fureur de vivre, impossible de ne pas se dire : voilà qui n ’existe que par le cinéma, voilà qui serait nul dans un roman, sur la scène, partout ailleurs, mais qui sur récran devient fantastiquement beau. Cinéaste, Nicholas Ray l’est d’abord moralement. Et ceci explique cela, à savoir qu’en dépit d’un talent inné et d’une bonne foi évidente, un scénario qu’il ne prendra pas au sérieux restera superficiel. Tel en effet apparaît à première vue Ardente Gitane, tourné bien à la lé­gère pourtant car l'argument, au départ, ne manquait point de beauté, pris à la lettre, c’est celui des Indomptables à l’envers ou si l’on veut celui de La Croisée des destins de Cukor : las de l’aventure, un être retourne dans le clan auquel il appartient. Ceux qui, avec moi, considèrent « Le Serpent à plumes » de D.H. Lawrence comme* le plus important roman du vingtième siècle, ceux-là ne s’étonneront pas si je dis que Nicholas Ray tenait là, s’il l’avait voulu, un sujet d’une résonance plus moderne encore que ceux qu’il affectionne. Il semble bien cependant qu'il ne vit pas Ardente Gitane de cet oeil et ne l’envisagea, au contraire, que comme un délassement entre deux productions à priori plus ambitieuses. Faut-il lui en faire grief ? Renoir vient de nous apprendre dans Elena que la paresse est chose fort sérieuse, et même s’il voulait paresser en s’amusant, ou vice-versa, je reprocherai donc à Nicholas Ray d’avoir à cette occasion pris la drôlerie trop à. la blague. Mais quoi, dira-t-on, travail de commande, et pas davantage, que ce film chez les gitans où l’on voit Cornel Wilde forcé d'épouser Jane Russell, en même temps, qu’elle quitter la tribu dont il est le dauphin, et finalement s’apercevoir qu’elles lui manquent terriblement, Sans doute, mais encore n’est-ce pas si certain, car j’aime à croire, d'autre part, Nicholas Ray assez honnête pour accepter dorénavant de ne s’intéresser qu’à ce qui l’intéresse, ce qui était ici le cas, Ardente Gitane lui permettant d’aborder nettement un problème qui, si l’on en croit ses dires, lui est cher, celui d’une minorité ethnique, de peindre la race à travers l’individu, ce qui est aller dans la voie ouverte par Rossellini, tout e n , creusant la sienne propre. Chaque plan de ce film (légèrement en plongée depuis qu’il tourne en cinémascope) prouve d’ailleurs que son metteur en scène ne s’en est pas complètement désintéressé et que ce n’est pas Raoul Walsh qui le fit à sa place, comme aurait pu le faire croire le personnage de Jane Russel, en tout point semblable par les mimiques à celui de Mamie Stover dans Bungalow pour femmes. L’intrigue elle-même, bien que mal traitée, porte bien l’estampille Ray, et le personnage de Cornel Wilde est fort proche de ceux joués par Sterling Hayden, Arthur Kennedy, James Cagney, dans les pré­cédents films de notre cinéaste. Toujours, dans un film de Nicholas Ray» le personnage principal retourne à ce qu’il avait autrefois délaissé ou m é­ prisé. Il ne s’agit pas pour lui de conquérir, mais, plus difficile, de reconquérir une position perdue par gaminerie, veulerie ou dégoût. Il est donc normal de regretter que Nicholas Ray n’ait pas cru devoir cerner avec plus de mordant une situation et des caractères qui eussent ainsi fait d'Ardente Gitane une œuvre moins anodine. Louons toutefois sans réserve l’emploi délibéré et systématique des couleurs les plus criardes que l’on puisse voir au cinéma : chemises orange sucre d’orge, robes vert acide, automobiles violettes, tapis bleus et roses, le tout n ’est pas sans rappeler le Van Dongen de la bonne époque et fait une fois pour toutes justice de ceux qui croient encore que le cinéma en couleurs s’accommode plus des tons doux que des violents. Pour une raison purement technique d’ailleurs, la profondeur de champ en cinémascope (qui ne peut se permettre d’utiliser un objectif d’une focale plus courte que 50 mm.) s’obtient grâce, à l’accentuation des contrastes (cf. les films pho­tographiés par Joe MacDonald èt John Alton). Bref, Ardente Gitane est un film à demi réussi dans la mesure où Nicholas Ray s’en est à demi désintéressé. Film réussi presque malgré son metteur en scène, devrais-je dire, ou, plus subtilement réussi par le sens inné du cinéma qu'à Nicholas Ray, d’une façon quasi automatique donc, mais moins naïvement que par l’écriture chère aux anciens surréalistes. Tout le cinéma, rien que le cinéma, disais-je de Nicholas Ray. Cet éloge comporte une restriction. Rien que le cinéma n’est peut-être pas tout le cinéma.

Jean-Luc GODARD (Fevereiro, 1957)

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Forushande

Esta semana estreia o novo filme do iraniano Asghar Farhadi, um cineasta que muito aprecio. Umas linhas sobre Forushande (O Vendedor) aqui.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Na lei 2 vezes 2 ou 2.2 4, existe já qualquer coisa da paralaxe do Sol e da Terra em forma de laranja.

"Aforismos" de Lichtenberg

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

the idea of destiny

(...) I do not think that there exists in any corner of the world any work of fiction or drama to which the idea of destiny is foreign. But it usually remains at the theological, indeed fetishistic level, unless it is no more than a pure poetic sham. In some of the finest American films it is instead posed, as in the fifth-century tragedians, in terms of morality: or by reference to religion which, be it Protestant sect or Irish Catholicism, is sparing of both external ceremony and flights of mysticism, and is above all the promulgation of a moral code for living.

Eric Rhomer in "Redecouvrir L'Amerique" (Natal de 1955)

Ora bem, em 2016 temos "Rogue One" ou "Independence Day: Resurgence", por exemplo, onde a questão do destino propõe um fim qualquer, sem que isso seja mais relevante do que uma cor de nave em photoshop, ou um bicep escondido num manto também ele provavelmente muito colorido.

sábado, 17 de dezembro de 2016

As mil expressões de uma angel face












Não, não estou embevecido pela carinha da Jean Simmons no "Angel Face", embora seja culpado de procurar obssessivamente stills das suas expressões no filme. Segundo parece ela tinha cortado o cabelo para irritar o Howard Hughes que, em final de contrato com ela, ainda queria usá-la em mais um filme antes do prazo terminar. Não teve sorte, usou peruca neste derradeiro Preminger para a RKO antes do realizador se tornar produtor independente. Um filme sobre um anjo de cara fria, um pequeno demónio tentador para Mitchum, acenando vagamente a bandeirinha da psicanálise e do incesto às audiências dos anos 50. Mas o mais extraordinário para mim é que seria fácil a Simmons, ainda para mais contrariada no projecto, trabalhar a oposição superficial: expressão de inocente por fora, demónio sem escrúpulos por dentro. Não é isso contudo o que faz Simmons, ela vai oscilando entre o ar alheado, o olhar frio, a face arrependida, a mulher martirizada, a bitch maléfica, a filha calculista, a jovem birrenta e desejosa do corpo de Mitchum. São muitas hipóteses e não é nenhuma afinal. Nunca ninguém há-de saber o que sentia em relação a todas aquelas personagens (paizinho "querido" incluído). Por isso é que aquele abismo final, no qual Preminger faz cair sucessivamente todas as personagens, é afinal o poço inesgotável das expressões de Simmons. Um anjo nas profundezas, um demónio nas alturas.

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

A batata


 No centro da mesa está uma batata. Como ali foi parar, pouco importa. Atenção, escrevo batata e não barata, meus artistas da fome, meus queridos! Ela, a batata, aqui está, prostrada nesta mesa, diria normal e preta, daquelas onde as pessoas almoçam e onde as pessoas jantam. O que não quer dizer que entre o comer e o beber não tenham existido mães a confessar os seus secretos amores, ou outros crimes exemplares, como a húmida ternura por um primo distante. Mas é um facto, agora a mesa carrega com o peso desta batata. Olho para ela: é vermelha e de formas arredondadas apesar da pele rugosa; não é gorda nem magra, tem apenas o tamanho necessário; os desníveis da batata, as suas covinhas, como as das bochechas de um petiz, denunciam que é única; numa das extremidades desponta uma espécie de barbicha, tal qual aqueles homens de barbas muito velhas, que já perto do final dos seus dias até grelam como é próprio da idade avançada. Eu ainda não grelo, mas a batata tem já alguns sinais de começar a fazê-lo.

Mas que interesse tem uma batata? Ou antes, esta batata? Muito simples, meus amorzinhos, é que esta batata é uma máquina do tempo. Não sei muito bem até que séculos irados poderia recuar, até porque nem botões, cabos ou outras engenhocas possui. Mas basta que a olhe de frente para recuar ao início daquela tarde, já nem sei há quantos anos. Do sítio de onde estava tinha reparado naquela figurinha, primeiro nos seus calcanhares de pele rija, enrugados. Ao início não conseguia ver o que fazia, só sentia o movimento contínuo do seu corpo a vibrar no fim do vestido. As costas estavam ligeiramente arqueadas e tinha as mãos metidas dentro do lava-louça. Ou lavava pratos, ou arranjava vegetais, ou cortava a carne. Ou tudo isso ao mesmo tempo. Pelo movimento dos ombros e pela respiração nervosa dava para perceber que o que quer que fizesse o efectuava com desejo de acelerar o tempo. Bastou aproximar-me uns passos mais para perceber que nas mãos da minha mãe estava uma batata. Ela pegava nela como se lhe pesasse muito, como um peso ou uma bolinha de chumbo, e com uma faca descascava-a. Importa precisar esta acção. Com a mão direita segurava uma faca de cabo castanho e lâmina afiada. Com a ajuda do polegar dessa mesma mão ia aparando a casca, que se ia encaracolando como uma fita de serpentina. Não é que descascar uma batata fosse um espectáculo essencial ou divertido, apenas me deixava um tanto incrédulo. A batata nas mãos da minha mãe ficava despida em três tempos, mas os golpes que ela lhe dava entravam na carne da batata, desfazendo os seus ângulos precisos. Com a casca rija vinha sempre um terço ou metade do tubérculo e a batata virava batatinha ou esfera geométrica, sem aquele formato único que só as coisas únicas têm.

Por vezes punha-me a pensar que toda aquela batata junta, a que vinha agarrada à casca e que entrava a um ritmo acelerado no caixote do lixo, dava duas, três, ou mais batatas. Seriam batatas feitas de periferia, de desperdício, alimentos feitos de gestos bruscos, de tempo acelerado e irascível. Mas não era o desperdício aquilo que me intrigava naquela forma de descascar as batatas. É que naquela altura, eu já começara a fazer as minhas próprias experiências. Orgulhava-me de nunca me cortar, de ouvir relatos de amigos para quem um ovo era um alien, enquanto eu subtraía às batatas a sua fina película. Era meticuloso com a batata: segurava-a gentilmente entre as minhas mãos, fazendo-a rodar, como se naquela alegria ela não soubesse que irreversivelmente perdia as suas roupas. Uma vez cortada a casca, era o momento de retirar aqueles pedaços que tinham ficado esquecidos, ou os bocadinhos negros mais fundos que ainda permaneciam encrustados no seu corpo. Retirava-os um a um com a ponta da faca e uma vez concluída a tarefa passava a batata por água. Raras eram as vezes em que tinha de voltar a pegar na faca. Mirava a batata muito grande, irregular, como se de uma obra de arte tivesse nascido outra de cor diferente, e colocava-a depois num recipiente. O processo repetia-se com a batata seguinte.

E não havia nada a esconder. A minha mãe, de mãos febris, assassinava as batatas, mostrando-lhes que o seu fim iria ser trágico, enquanto eu as enganava primeiro, era dissimulado, era gentil com elas, até ao momento em que finalmente percebessem o seu destino. E era isso que me deixava intrigado: como era possível que a minha mãe se vingasse nas batatas, retirando-lhes grande parte da sua dignidade de tubérculo? Naquela altura pensava que a pressa era inimiga da perfeição e que o destino das pessoas se pudesse ler naquelas serpentinas de casca que ora se abanavam suavemente ao compasso do piano, ora se punham a remexer como tontas ao ritmo do hit de Verão mais recente.

Olho novamente para a batata no centro da mesa. É, segundo creio, uma batata feita de presente, como se pudesse irradiar uma luz qualquer. Levanto-me da mesa da qual a observo e vou à gaveta das facas. Retiro uma das médias, bastante afiada, e pego na batata. Naquele instante podia cravar a faca até ao centro da batata e parti-la ao meio, num gesto trágico sem sentido. Mas de que serviria isso, excepto separar em dois um problema? Uma batata do passado, digna e subtil, com a casca fina a ser removida de forma musical e artística por mãos de fada e uma eterna paciência. E uma batata do presente, a quem não iria ser permitida qualquer falha ou irregularidade, nada mais do que um porco recipiente de amido e carboidratos, retalhado e amachucado por anónimas patas. Não. Decido pegar na batata e levá-la até ao lava-louça. Começo a descascar a batata e, ao segundo golpe, percebo que me falha a mão, que não é uma questão de tremura mas sim de peso. Parece que as mãos me pesam muito, como fardos de palha. Tento manter a lâmina à tona da batata e é em vão. Saem dela grandes lascas agarradas à casca e não é que as minhas costas me vergam e os meus calcanhares embrutecem? 

E dei por mim a pensar que houve um momento qualquer, não sei bem qual foi, a partir do qual passei eu também a ser injusto com as batatas. Comecei a descascá-las abrutalhado, anestesiado, com o peso do tempo nas costas, sobre mim. Talvez eu agora já não seja ou compreenda a batata esbelta, aquela que ficava impecavelmente descascada no meio do caminho, a olhar para a possibilidade de qualquer coisa pouco vegetal. Talvez a batata seja ela agora esse objecto possível, sem singularidade ou ternura, olhando incrédula o adorno na mesa ou o peso da faca. E nisso dei-me conta das lições da maternidade: com o tempo pesa-nos a faca com que descascamos o tempo. E há muito lixo acumulado no meio da sala em que outrora nos rimos. Resta então, com assento celestial e quotidiano, essa tarefa de raspar apenas os contornos dos dias, deixando neles intacta a maravilhosa carne da batata, o conduto de uma pequena e vegetal felicidade.

sábado, 10 de dezembro de 2016

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Por vezes escrevo com o mesmo pavor
do pai natal quando se anuncia ao próprio filho.
Esperamos não ser descobertos por detrás destas
barbas postiças, deste olhar derreado. Partilhamos
a mesma gota de suor na testa, o mesmo
vermelho, o mesmo presente envenenado.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Cais doente na cama e pensas, ainda bem
que não é grave. Cais da cama desperta e
pensas, ainda bem que não é rijo. Cais do
chão lá para cima e pensas, ainda bem que
não é real. E nesse momento a febre
desaba.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016


terça-feira, 6 de dezembro de 2016

No Natal

Os reis magos atravessam o deserto,
tu vagueias pelo Colombo. Cada um
paga o preço do seu sentimento. O que ofereces
é colorido e apita mas aquilo que sentes
é mudo, como uma duna de areia.

sábado, 3 de dezembro de 2016

Do céu cai a chuva no Inverno,
            caem as folhas no Outono,
            e cai o meu coração em qualquer
            estação. Basta que o teu tempo
            seja um não.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

O tornar-se

Agora que estou no fim dos meus dias, metido no meu buraco, escarneço de mim próprio e consolo-me com essa certeza, tão biliosa como inútil, de que um homem inteligente não pode tornar-se nada, só os parvos se tornam alguma coisa. Um homem inteligente do século XIX deve, acha-se na obrigação moral, de ser uma criatura essencialmente sem carácter; um homem possuidor de carácter, um homem de acção, é uma criatura essencialmente limitada. Essa crença tem quarenta anos. Eu tenho agora quarenta - e quarenta anos é toda uma vida (...)

in "Cadernos do Subterrâneo", Fiódor Dostoiévski