segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

top 2018

1-Western (2017) de Valeska Grisebach
2-Le livre d’image de Jean-Luc Godard
3-Happî awâ de Ryûsuke Hamaguchi
4-Estiu 1993 (Verão 1993, 2017) de Carla Simón
5-Ramiro (2017) de Manuel Mozos
6-Lazzaro Felice (Feliz Como Lázaro, 2018) de Alice Rohrwacher
7-Dogman (2018) de Matteo Garrone
8-Mandy (2018) de Panos Cosmatos
9-Call Me by Your Name (Chama-me Pelo Teu Nome, 2017) de Luca Guadagnino
10-First Reformed (No Coração da Escuridão, 2018) de Paul Schrader


Muito bem. Antes que o fétido odor a filhoses e coscorões empeste o ar e torne tecnicamente inviável as condições para a prática de visionamento de filmes, assim como da leitura de textos inúteis sobre os mesmos, umas palavras sobre as minhas 10 pílulas de felicidade cinéfila no ano que agora nos finda. No topo o filme da Valeska. Não tanto por aquilo que seria a recriação de um western contemporâneo, mas mais como proposta política, um filme que devia ser mostrado diariamente no Parlamento Europeu até que se parasse de colocar as palavras “crise” e “refugiados” na mesma frase. Depois, o nosso tirésias do cinema, Godard, aqui travestido em Nostradamus. O Livro das Imagens é uma viagem sem fim que começa na voz rouca e testamental do cineasta e que percorre tantos caminhos, muitos deles infames como a da “sacrosantidade” da guerra. Último lugar do pódio para o primeiro filme que vejo do japonês Hamaguchi, cinco horas felizes de cinema, um tempo em suspenso, um cubismo existencial que por vezes parece Cassavetes e noutras Rohmer. Quarto lugar é da realizadora catalã, Carla Simón, por nos dar uma câmara à altura da infância, nos mostrar como o cinema pode apanhar a percepção de uma criança e por explicar a Alfonso Cuarón como se pode revisitar a infância sem tirar partido da criadita. Depois, o nosso herói maravilhoso, Ramiro, homem sem grandes aspirações, estátua sorridente numa Lisboa gentrificada. Este foi aliás um ano em que descobri Mozos como o nosso “poeta da desolação e da melancolia“.

O lázaro da realizadora Rohrwacher é um hino à bondade e pureza e é por isso que ele faz menos lembrar o burro de Bresson (não confundir com a expressão “o burro do Bresson”) e os rostos e a santidade perversa de Pasolini. Dogman é mais um dos herois frágeis do ano, juntamente com este Lázaro e com Ramiro. Garrone sabe apanhar um actor e com a sua câmara não larga o osso, numa fábula David contra Golias, domador contra besta raivosa. Aliás, Marcello Fonte e Adriano Tardiolo do filme anterior põe a representação italiana num patamar que não conhecíamos desde Ninetto Favoli, Alberto Sordi ou Marcello Mastroianni. Mandy é um daqueles doces hiper-calóricos, que nos pinta o céu da boca e nos destrói uns quantos neurónios, só isso. E isso já é muito para mim. Quase a fechar o top, um dos poucos filmes delicados que me convenceram (houve vários que não o fizeram, por exemplo, o Kogonada, o último Garrel, mesmo o PTA, nosso “filme do ano”). Call Me by Your Name é um Verão doce, alegre e triste, com Timothée Chalamet a acreditar na sua personagem e nós com ele. Finalmente, não desgostei do regresso de Schrader, um tanto overhyped contudo, e talvez não pelas mesmas razões. Não há muita pachorra por estes lados para um reaquecimento de Bresson, mas há no entanto um interesse pela possibilidade de ligar uma ideia cósmica de fé ao trabalho de hoje muito activo sobre a ecologia. E First Reformed tem isso.

Desilusões: Paul Thomas Anderson em modo piloto, Garrel com pouca coisa a dizer, Martel em modo activista histórico, Haneke apaixonado pelo choque que não choca, o terror sério e inefável de David Gordon Green e Luca Guadagnino, o formalismo de Massadian e o último do Aguilar que me deixou à porta. Filmes “agradáveizinhos”: Que le diable nous emporte, The Shape of Water, The Killing of a Sacred Deer, Frost, Columbus, La Ciambra. Finalmente, aqueles que tive pena de não lhes ter posto a vista em cima: Shoplifters, Correspondências, Jusque’à la garde, Franz, Les gardiennes, os Spielbergs, o James Wan, Cold War, The Other Side of the Wind, Annihilation, The Death of Stalin. 

E “prontos”… vão lá à vossa vida.

sábado, 22 de dezembro de 2018

Creio que já há muito se pode dizer que o caso de Tancos adquiriu contornos que não poderíamos dar a Alfred Hitchcock para filmar. As incertezas do que aconteceu, as facções na sombra, a névoa de uma ameaça tentacular e conspirativa, ou mesmo os meandros subterrâneos das políticas e sobretudo das polícias são caso para chamar outro mestre. Só Fritz Lang na sua capacidade de filmar um mal abstracto, uma mancha sem culpados evidentes (todos o são, porque nenhum o é, e viceversa) poderia descalçar esta bota. Aceitam-se sugestões para esta obra: "F de Furtou"? "As 1000 Armas do Dr. Tancos"?; o "Segredo do Paiol Fechado
"?

O mais impressionante é que dá a sensação de que o caso de Tancos não é assim tão diferente de outros nesta capacidade de disseminação das culpas. Talvez por isso valha a pena reflectir sobre se Portugal não será um país mais languiano do que hitchcokiano.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Sobre não ler merda na retrate

 "Libertem o vosso espírito de tudo que não seja o que têm para fazer. Seja o que for que façam, tem de ser realizado com um espírito aberto e uma consciência limpa. Este é o bom conselho dos antigos. Hoje em dia está na moda fazer várias coisas e simultâneo a fim “de aproveitar ao máximo o tempo”, como é costume dizer-se. Isto é um rematado disparate, além de ser pouco higiénico e ineficaz. Não forces! Ocupa-te das coisas pequenas, que as grandes se ocuparão de si próprias.” Todos ouvimos isso durante a infância, mas somos poucos a praticá-lo. 

 Se tem uma importância vital alimentar o corpo e a mente, é igualmente importante eliminar do corpo e da mente aquilo que permitiu realizar aquele objectivo. O que não foi utilizado, “armazenado”, torna-se venenoso. Isso é do senso comum mais elementar. Por conseguinte, é inevitável, como o dia se sucede à noite, que, se vamos à retrete a fim de eliminar os dejetos que se acumulam no nosso organismo, estamos a prejudicar-nos se utilizarmos esses momentos preciosos para encher a nossa mente de “merda”. Para poupar tempo, passar-nos-ia pela cabeça comer e beber enquanto estamos sentados na sanita?"

Henry Miller

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Das wandernde Bild (1920)




























Um filme acerca de madonas que andam na neve e de ideologias contra o casamento, visto como falsa esperança de fidelidade e conforto.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Die Spinnen (1919-20)


sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Dovlatov



Creio que talvez não seja possível compreender um filme como Dovlatov (2018) de Aleksei German filho, sem termos uma mínima noção da obra de Aleksei German pai. Desde logo, por uma questão de contexto: porque se tratou de um cineasta que apenas fez 5 longas em 46 anos de trabalho e que foi muito fustigado pela censura. Não é de estranhar que esse “subtema parental” tenha discorrido para o filho, designadamente na forma como um regime político acaba por tolher a criatividade dos artistas, aqui em concreto, os dos escritores, Sergei Dovlatov (Milan Maric) e Joseph Brodsky (Artur Beschastny). Também como aconteceu com German pai e com os seus próprios protagonistas – estamos aqui ainda no campo dos não heróis, daqueles que sistematicamente se recusam a servir as glórias do passado. Como vemos no filme, com os comentários depreciativos e satíricos na reportagem que escreve para um jornal literário sobre a presença dos grandes escritores, Gogol, Dostoiévski, Tolstói, Puschkin, ou melhor sobre os actores pobres diabos que os encarnam numa produção cinematográfica de propaganda. Ou mesmo mais tarde ao recusar embarcar num épico grego que representaria o seu grande objectivo de vir a ser publicado no seu país. Estamos ainda neste Dovlatov seguindo o trilho do pai, e suas personagens engolidas pelo quotidiano que, mais do que agirem, procuram observar. Aliás, é esta a personagem que o próprio escritor contrapõe como sua ao chefe do jornal, quando este lhe chama a atenção que aos seus escritos lhe faltam ou um herói ou um anti-herói, segundo o mecanismo básico da literatura dramática.

Mas a relação com German pai também deve ser salientada a um nível mais formal. Podemos aqui ver os mesmos planos sequência constantes, os planos atravancados de gente e objectos, um certo espaço para um onirismo, um colectivo que vai mascarando a acção principal (alguns planos parecem uma versão de “onde está wally?” vertida para onde está Dovlatov?), toda a gente fala, interrompe, passa atrás, à frente, no meio. Uma dança, uma mise-en-scène vendaval que o filho herda do pai. Mas então, qual seria o espaço inovador de Aleksei German Jr.? Talvez na forma como converte aquilo que era dado com sentido de humor (ainda que dorido) pelo seu pai, para o que acho ser uma atmosfera mais tipicamente soviética (isto é, introspectiva, mellow). Como se abusasse de um certo decadentismo romântico, uma autocomiseração pelo génio incompreendido, como se restasse apenas a Aleksei German Jr. a referida ironia como metáfora descendente, que aqui e acolá torna latente um pormenor querido, uma boneca... por favor. Afastamo-nos então do fellinianismo realista do pai, e temos antes uma daquelas toalhas feitas à mão que se vendem nas lojas de artesanato, cheias de rendas, de pormenores, mas que admiramos mais pelo trabalho que ali está envolvido (o calo nas mãos do artesão, a sua condição precária, muitas vezes) e menos no efeito estético que estas podem provocar numa mesa decorada. Dovlatov é uma dessas tapeçarias para a qual acabamos por olhar sobretudo por tal rendilhado, ou, quanto muito pelo sofrimento impotente das suas personagens.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

«Porque é que você, mantendo quase sempre uma postura anarquista, acabou por se inscrever no Partido Comunista?


Luiz Pacheco: Pois é, mas eu também só entrei para o partido quando me apareceu uma hérnia. Nessa altura, mandei um recado ao Cardoso Pires: “Psst! Quero entrar para o partido como extrema-unção.” Isto não obriga a nada, nem aqui há uma esperança revolucionária. É porque é giro, um gajo morre e vai lá com a bandeira no caixão [risos]. É que eu tinha visto o enterro do Ary dos Santos a subir a Morais Soares, com eles aos gritos: Ary, amigo, o partido está contigo! – e pensei: “Isto é o que me convém porra!” Pagam-me o enterro, pagam-me o caixão e levo a bandeira que me deixa aconchegado. Sabe, é que eu sou um gajo friorento…”»

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Crítica de cinema e psicanálise da loja dos 300

Críticos que acham que conhecem a receita do bom cinema — Dona Dolores, eu sei que tem tido dores de costas e que atribui a maleita ao seu gato, mas sabe que o que lhe deveria doer mesmo eram as pernas e, se tivesse um cão (deveria adquiri-lo, já) era ele que, estou certo, seria o culpado delas. Não acha?

Críticos que se colocam à frente dos filmes — Dona Dolores, eu sei que tem tido dores de costas e que atribui a maleita ao seu gato mas isso não interessa nada, pois a mim não me dói nada e por isso a sua dor não faz sentido. Não acha?

Críticos que só veem os filmes pelo seu significado político — Dona Dolores, eu sei que tem tido dores de costas e que atribui a maleita ao seu gato mas sabe parece-me inamissível falar mal do seu gato, uma vez que se trata de um animal indefeso. E ainda mais admissível me parece uma vez que adquiriu apenas um gato: porque não uma gata também? As dores talvez se devam a um castigo pela discriminação, não acha?

Críticos que gostam de tudo — Dona Dolores, eu sei que tem tido dores de costas e que atribui a maleita ao seu gato mas tem que perceber que ter dores é tão importante quanto não ter, e que se a culpa é do seu gato, também poderia não o ser, mas ainda assim creio que está tudo bem, não acha?

Críticos que não gostam de nada — Dona Dolores, eu sei que tem tido dores de costas e que atribui a maleita ao seu gato mas não acha que isso de ter dores, de ter costas, de ter gato não é tudo uma grande chatice?

Críticos que só falam de narrativa — Dona Dolores, eu sei que tem tido dores de costas e que atribui a maleita ao seu gato mas conte-me antes tudo acerca da sua história de vida desde os 3 anos, para que eu possa devidamente achar à força a causa das suas dores de costas em factos da sua biografia.

terça-feira, 11 de dezembro de 2018


Creio que era Whitman que falava que ninguém nem nada morriam nunca, de tudo continuar num cósmico circuito de renovação. Pensei nessa circularidade ao ler estes breves contos de Leonardo Di Vinci. Isso porque, para lá da antropomorfização de animais que as fábulas normalmente convocam, há esta ideia de tudo ser passível de voz ou expressão. Não só os animais, mas também as plantas, as árvores, as pedras, as paredes, a água, as chamas. Essa assembleia de existências, chamemos-lhe assim, têm o condão de fazer ressurgir no leitor o bom peso da responsabilidade, do espaço que devem ocupar as nossas acções no entremeio de todo o tipo de elementos e expressões.

Da Vinci dedica muitas das fábulas ao excesso de ambição, ao quem tudo quer tudo perde. As minhas duas favoritas acabam por indirectamente tocar o tema. Uma chama-se simplesmente «Neve» e é sobre um montinho de neve que estava no alto da montanha e que se sente mal por estar tão alto enquanto que os outros flocos estão lá em baixo. Resolve descer a montanha e, ao transformar-se, lentamente, numa bola de neve gigante e em avalanche acaba por ser a última a ser derretida — morta — pelo sol. [Por vezes é preciso descer para subir.] O segundo, «A Macaca e o Passarinho» é uma história clássica dos malefícios da possessão. A macaca aperta tanto o passarinho devido ao fascínio que tem por ele que acaba por matá-lo. O que gosto nesta história é que ela é também um ensinamento geográfico: estar demasiado próximo das coisas pode ajudar-nos a perder a perspectiva. E isso aplica-se ao amor, ao conhecimento, à posse frenética do tempo…

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Provérbios actualizados

Inspirado pela proposta do PAN de alterar alguns provérbios populares que sejam ofensivos para os animais, proponho que pensemos numa actualização de outros provérbios. Começa aqui um work in progress para o qual se pedem mais sugestões:

Mais vale um pássaro da mão do que dois a voar. // Mais vale uma PPP na mão, do que duas a voar.
É preciso é agarrar o touro pelos cornos. // É preciso é agarrar o político pelo saco azul.
Em briga da marido e mulher, ninguém mete a colher. //Em briga da marido e mulher, nem a PSP, nem os tribunais metem a colher.
Quem não está esquece. // Quem não está, marca-se presença na mesma.
A cavalo dado não se olha o dente //. A subornozinho dado, não se olha o dente.
Amigos, amigos, negócios à parte. // Políticos, políticos, negócios em toda a parte.
A galinha da vizinha é sempre melhor do que a minha. // O imóvel do vizinho paga sempre menos IMI do que o que eu tenho no Minho. 
Em terra de cegos quem tem olho é rei. // Em terra de ignorantes, quem tem olho é político.
Pau que nasce torto, nunca se endireita. // Político que nasce torto, nunca se endireita.
Sustentar burros a pão de ló. // Sustentar políticos a pão de ló.
Atirei o pau ao gato, mas o gato não morreu. // Atirei o imposto ao Estado, mas o Estado não cresceu.

Fazes-me falta: das asmas de Mozos aos bailes de Olmi

Queria contar-vos uma cena de …Quando Troveja (1999) que não me sai da cabeça. Creio, sem ter a certeza, ter sido filmada ali na Guerra Junqueiro, em Lisboa. Mas antes contextualizo: António foi abandonado pela namorada que o trocou pelo melhor amigo. Desde então, desgostoso, traído e infeliz, vive uma vida dos infernos. Copos e noitadas, trabalhos mal pagos para se sustentar, cigarros uns atrás dos outros, um fiozinho de esperança e a casa partilhada com Rosa, uma infeliz asmática que vive numa casa atravancada de cacarecos, aquários e penumbras. Nesta cena os dois, ele bêbado, ela doente, vão passear e param em frente de uma montra de roupas. O diálogo que se segue, transcrevo, porque qualquer descrição apressada seria crime de lesa-cinema:

Ele: “fazemos um casal de sonho: tu que nem um espantalho e eu a cair de podre”. (Vide still.) / Ela: “anda vamos embora!” (puxa-o pelo braço). / Ele, segurando-a ali em frente da montra: “Sabes uma coisa? Vou comprar-te um vestido”. / Ela, irónica: “boa ideia! Um vestido novo para o caixão”. / Ele, põe-lhe a mão no rosto: “Rosa, Rosa, ainda não é desta que vamos ao teu funeral. Vais ficar bonita, vais ver”. / Ela: “estou cansada, António”. / Ele insiste: “não estás nada! Precisas de um vestido de Verão. Não tens vestido de Verão! Dantes, you were always so charming!” / Ela, triste e tentando puxá-lo novamente para irem embora: “dantes eu era muita coisa. E tu tinhas juízo”. / Ele: “Nunca tive juízo no Verão, está demasiado calor”. / Ele dá-lhe uma volta e entra com ela numa loja, para logo voltarem a sair, a rir-se. Enganaram-se na loja. Não eram ali, os vestidos de Verão. / Cá fora de novo, a câmara mais perto deles. / Ela: “Anda vamos embora!” / Ele, bastante alto: “Rosa, Rosa! OS HOMENS, ROSA! Tu precisas de um vestido, ok?”. (O par voltará a entrar noutra loja mas o vestido não haveria de ser comprado. Um ataque de asma e têm mesmo de ir para casa.)

Este cena bela, brutal e directa de dois heróis amparados na “miséria sentimental” mostra bem que, no que diz respeito ao cinema, Manuel Mozos é o nosso poeta da desolação e da melancolia.


Aquela que por caminhos ínvios acaba por ser a primeira longa de Mozos a estrear em Portugal é uma obra sobre a ausência e a reconstrução, lenta, que se faz a partir da ruína que o amor pode deixar. Miguel Guilherme desenha na perfeição um desses heróis à Mozos, aqueles que parecem ser os “derrotados”, pára-raios das pazadas da vida. Contudo, ser poeta da desolação significa filmar contra a pena, a piedade, e aqui reside o grande twist artístico da sua obra. Mostrar plantas que, estando à beira de secar, sofrem o milagre e, como que inexplicavelmente, reflorescem. Seria um raccord surreal ligar esse viço à cena em que a diabinha onírica abraça António, numa chuva de alagar este mundo e o outro?

Uma das pistas do ressorgimento, da ressurreição de António, talvez esteja na forma como Mozos sempre sacode o tom trágico do seu protagonista – que se ouve que não “está nada bem”, que “dá pena”, que “só faz merda” – através de outros mundos. Um deles já referi: pertence à noite, à boémia, reconhecemos locais de diversão nocturna numa Lisboa por si documentada, mas também são os seus espaços de lar improvisado, um “tecto que apesar de tudo não cai”, o espaço ao qual voltar depois de se levar umas pêras – a tal casa de Rosa. O outro mundo é o do casal de duendes/diabos, amores impossíveis, espaço do onirismo, coro de fábula. E qual é a chave desse mundo? Um caroço e um calendário. António e Rosa comem cerejas e a dada altura ele atira um dos caroços ao calendário que tem uma imagem que devém plano: uma floresta de noite e névoa. Aqui está o casal mágico – Violeta e Gaspar (Anabela Brígida e Bruno Bravo) que seguiremos, paralelamente à vida de António. Vemos como se conhecem, em miúdos (uma presença curiosa do jovem João Salaviza, no papel de Gaspar) e como esse “amor” é maldito, dificultado pela mãe de Violeta. Uma das pistas deste mundo é essa superação da maldição – ao contrário do que acontece na realidade – que faz com que o amor destes triunfe. Este aliviar da tensão da desgraça, essa poesia que se filma a partir do trágico é portanto feita através de um vai e vem a esses espaços dos interiores. Espaços mentais, do poder da fantasia e da arte, espaços de fuga. Talvez só este ir e vir explique como é que Mozos consegue fazer um cinema que parte da encenação de situações de dor e piedade, e que chega ao seu contrário, a uma exaltação pela melancolia criativa, pela doçura cantada à beira do precipício. Pois uma coisa sabemos: no cinema de Mozos não se cai e, sobretudo, não se deixa cair.

E como é que esta ideia – de mergulhar a ferida no lago da reparação – tem alcance cinematográfico? No tal caroço de cereja. Este é apenas um dos raccords selvagens que mostram a montagem de um rebelde. Também me lembro de outra: a água podre do lavatório e o peixe do lago, que sabe a lodo. São detalhes de uma montagem rough, mata-cavalos, que não tem medo da elisão, dos espaços da obscuridade e da degradação. Venham elas de uma prótese de perna, uma asmática que se mija, umas mãos de bêbado que tremem, um trejeito na boca de Miguel Guilherme que não sabemos explicar se do whisky ou da dor. Straight to the point. Anti-herói: filhos como cancros, nuvens, névoas, xilofones, pesadelos realistas, insónias produtivas, moitas que roncam, lobos, trovões, sinos e preservativos. E quando alguém cai, podia ser o nosso herói. Ele próprio o diz. Mas não, como já disse, no cinema de Mozos não se cai. Levita-se. Por milagre? É o poder gravitacional da melancolia, da delicadeza. Quando tudo desce, a câmara sobe e “um passo, outro passo e depois…”



E se falava desse ir e vir, há também um ir e voltar. Uma espécie de dança. E entro assim, num outro filme que discorre sobre a falta que pode fazer o amor, a separação. Falo da obra prima de Ermanno Olimi, I fidanzati (Os Noivos, 1963). O filme costuma ser emparelhado numa trilogia acerca da realidade laboral italiana do pós-guerra, e em que este seria o último tomo. Os outros dois, Il tempo si è fermato (1959) e Il posto (O emprego, 1961). Aliás a comparação com este último é bem interessante pois o seu herói, o jovem Domenico (Sandro Panseri) acaba por funcionar como uma versão mais nova de Giovanni (o também não actor profissional, Carlo Cabrini). No filme de 61 o rapaz vem para Milão trabalhar numa empresa e acaba por encontrar uma hipótese de amor, já em I fidanzati o movimento é inverso: Giovanni , já na casa dos 40 tem de se afastar da noiva e vir trabalhar para uma fábrica no sul, na Sicília. Como refere o próprio Olmi numa entrevista, o que estava em causa em ambos o filmes era a perturbação da divisão de uma certa paisagem rural e artesanal da Itália, com o boom económico do pós-guerra e a sua industrialização. A transformação que havia sido filmada em Il posto aqui tem uma continuação, nomeadamente nos efeitos colaterais dessas perturbações nas comunidades, na forma como os casais/famílias se podem separar em virtude do trabalho que passa a implicar deslocação. Aliás, um filme chave dos anos 60 italianos aborda precisamente esses efeitos de deslocação, de uma certa “orfandade” civilizacional, fruto de transplantes desta natureza. Falo de Rocco e i suoi fratelli (Rocco e os Seus Irmãos, 1960) de Luchino Visconti.

Quanto às influências de Olmi, elas não podiam ser mais claras. Quem passar os olhos pela sua filmografia percebe como o apelo de um olhar documental pesou na sua carreira. Naturalmente que Rossellini e Pasolini são os nomes que melhor configuram o cinema nessa relação com a realidade, não como uma forma de fugir a esta, mas de a compreender. Como em Roma città aperta (Roma, Cidade Aberta, 1945) ou Paisà (Libertação, 1946)], por exemplo, se descobre o cinema que há nas ruas. A viagem de Giovanni para o Sul – pelas suas festas tradicionais onde todos olham e dançam perante a câmara, pelos quartos atravancados, pelas tempestades de ferro e pinturas industriais dessa nova realidade metalizada das fábricas – é no fundo uma espécie de revelador emocional de uma relação que ficou em pausa. Por isso, me parece fazer sentido emparelhar o filme de Olmi ao de Mozos, sobretudo na forma como ambos estão a filmar um herói a quem lhe falta algo (ou alguém). Mas enquanto a estratégia de Mozos é, como escrevi, mais interior, de uma falso afogamento em si mesmo e nos seus potenciais oníricos, a do italiano permanece uma resposta exteriorizada. Uma balada de observação (de resto, já era o olhar incrédulo e humilde de Domenico que preparava o de Giovanni) que é também uma forma de procurar em si o espaço que deve ocupar. O dele na nova realidade e da noiva Liliana (Anna Canzi) nele próprio.

Outro elemento comum nestas duas obras de “resposta” à ausência é a dimensão transportadora da montagem. A de Mozos, já o disse, opera esse ir e vir entre mundos. Em I fidanzati estamos num certo território modernista de estilhaçamento do tempo, de trabalho sobre a memória. Em muitos momentos, a montagem agrafa tempo e espaços que não existem na realidade exterior, mas apenas numa visão subjectiva, num rememorar. Três exemplos de entre muitos. O primeiro é um raccord impossível entre um homem que cai na referida festa siciliana e o pai de Domenico que vemos levantar-se da cama no seu lar. O segundo pertence à maravilhosa sequência de abertura, a do baile, no qual os olhares tristes do casal de noivos e os momentos de dança vão fazendo aparecer, lentamente, os motivos de tal tristeza. A montagem entrecorta, sempre com a mesma música de baile, o serão aos momentos do passado em que Domenico é chamado pelos patrões com a proposta de ir para longe trabalhar e a conversa que este tem com Liliana. O último surge já quase no final, quando o casal de noivos trocam cartas e Olmi os vai aproximando, como se caminhassem na direcção um do outro, embora estejam a muitos quilómetros de distância. Montagem com poder de atracção magnética, como é o poder de evocação da literatura epistolar.

Evocação é uma palavra importante para definir I fidanzati. Sendo um filme sobre a memória, as imagens juntam-se para Olmi para dar uma certa visibilidade à lembrança, alternando momentos do presente e do passado. Podemos dizer, creio, que aqui a música acaba por funcionar como o grande combustível da lembrança. Em muitas cenas ela faz aparecer, isto é, evoca, uma lembrança ou assedia mesmo para uma acção. A maravilhosa abertura do baile, não por acaso é toda ela começada em silêncio. Ouvem-se passos, os homens e as mulheres posicionam-se, a câmara idem, os pós lançam-se à pista de dança. Depois chega o feiticeiro do ritual: o pianista cego que prepara o piano, que se prepara para dar corpo à música. Ou seja, o espectador espera pacientemente pela música, e é quando surge que ela vai fazer aparecer toda uma narrativa: do casal, dos grupos que dançam, da já referida proposta laboral. Numa cena adiante, Domenico começa por ouvir uma música no seu quarto de hotel e depois resolve sair para ir beber um café em frente. Só aí percebemos que a música vem de um radiozinho de pilhas no próprio estabelecimento. Contudo, Olmi ao dar-nos a música num outro espaço, muito antes, ultrapassa a convenção realista, mostrando o poder assediador, enfeitiçante da música. Música que faz aparecer na memória, música que faz fazer. Talvez esse fosse o poder originário da música e da dança dos salões de baile da altura, únicos momentos em que os casais se podiam tocar.

Olmi era um artesão do cinema e como tal I fidanzati não deixa de parecer como uma espécie de dança artesanal que se vai prolongando. Uma dança na qual o par de fidanzati se afasta, perdendo fiducia, para no final reganhar a tal confiança, em nova dança. Como alguns viram era esse regresso meio bressoniano: O Jeanne, pour aller jusqu’à toi, quel drôle de chemin il m’a fallu prendre! Como podemos de certa forma falar de drôle de chemin para António que depois de dançar com a perdição e o álcool acaba abraçado ao anjo de sombrinha vermelha e uma nova relação. Nesse caminho drôle, Mozos ri-se na cara da perdição e Olmi mostra-nos o cão que entra na igreja fazendo distrair os meninos, as partidas dos colegas de trabalho, o pai bêbado a olhar para a câmara ou mesmo a vizinha com os calores. Uma dança de alegria e melancolia, como um poderoso licor que fôssemos bebendo e saíssemos embriagados e ressacados de vida, embriagados e ressacados de risos e lágrimas. Mas sempre dançando. Sempre.



domingo, 9 de dezembro de 2018

Leonardo Da Vinci não era do benfica

Creio que Leonardo Da Vinci, numa das suas famosas fábulas, terá escrito avant la lettre sobre a crise recente do Benfica, sobretudo à sombra do que também sucedeu no Verão ao rival de Lisboa. A fábula intitula-se: "A Águia" e passo a transcrevê-la, tomando a liberdade de substituir a palavra mocho por leão e duas ou três nuancezinhas mais. Aqui vai:

«Certo dia, uma águia, olhando lá de cima do seu altíssimo ninho cá para baixo, viu um leão.

—Que animal gracioso! — Disse para consigo —. Não deve ser um igual a mim.

Picada pela curiosidade abriu as suas grandes asas e, descrevendo um enorme círculo, começou a descer.

Quando estava perto do leão, perguntou-lhe:

—Quem és tu? Como te chamas?

— Sou o leão — respondeu a tremer o pobre bicho, tendo esconder-se atrás de um ramo.

— Ah, ah, que ridículo que tu és! — Riu a águia dando voltinhas à roda da árvore —. És todo olhos e pelo. Vamos a ver — continuou, pousando num ramo —, vejamos mais perto como é que tu és feio. Deixa-me ouvir melhor a tua voz, terei que tapar os ouvidos,

A águia, entretanto, ajudando-se com as asas, procurou abrir caminho pelo meio dos ramos para se aproximar do leão.

Mas entre os ramos da árvore um camponês tinha posto umas varias ligadas umas às outras e espalhara nas mais grossas abundantes quantidades de visco.

A águia, de repente, ficou com as patas coladas à árvore e quanto mais se tentava libertar mais penas se pagavam ao visco dos ramos.

O leão disse:

—Águia, daqui a pouco virá o camponês [vulgo Ministério Público]. Ele agarrar-te-á e fechar-te-á numa gaiola. Tu que viveste sempre no céu, livre de perigo, que necessidade tinhas de descer tanto para te rires de mim?»

sábado, 8 de dezembro de 2018

«É pá! Nem me digas isso, pá, o Namora é abaixo de cão, nem é abaixo de Namora, é abaixo de cão, isso eu escrevi! E, aliás, ainda por cima é gatuno, roubou lá umas coisas ao Virgílio Ferreira. Nesse ponto o Virgílio Ferreira tinha uma posição de grande valor intelectual e bagagem ensaística. Agora foi ultrapassado por este, o Saramago, que é muito mais novo. É inteiramente justo. Eu comprei o "Evangelho", ele costumava-me mandar, mas eu comprei: li duas páginas e depois fui ver que faltavam ainda 500 ou 400 e não li mais nada.»

Luiz Pacheco in "O Crocodilo que Voa"

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Rui Rio (mas eu também me ri) disse no outro dia que as pessoas andavam arredadas da política e que eram como aqueles casais em que ele pedia em casamento a uma ela e lhe prometia: uma vivenda com piscina; um bruto carro na garagem; uma viagem por ano. E que depois casavam e nenhuma promessa era cumprida: a casa era fraca, a ida era piscina municipal, etc, etc. A piada é esta, este imaginário, pobre, triste, materialista. Sim, as pessoas estão arredadas da política porque não podem ter piscinas, BMWs, e vivendas. Ele Rio, eu ri-me.

As imagens que se seguem


Volta e meia esbarro com a expressão "as imagens que se seguem podem ferir a sensibilidade dos espectadores mais sensíveis". Expressão que, como sabemos, não quer dizer absolutamente nada e tem tanta eficácia quanto o poema "fumar mata". Fumar também pode ferir a sensibilidade dos fumadores mais sensíveis, assim como as imagens também podem matar, por isso dá para ver o grau de seriedade da coisa. O que me pergunto é se a expressão "as imagens que se seguem podem ferir a sensibilidade dos espectadores mais sensíveis" não deveria vir já com a própria televisão, dando-se o caso de adquirirmos uma. É que as imagens que se seguem, quaisquer que sejam, sobretudo as mostradas na televisão, com elevado grau de certeza hão-de ferir a sensibilidade dos espectadores mais sensíveis. Sensíveis, isto é, com os olhos abertos, aqueles que não estão a cagar da mente ao final do dia (pois a estes tanto se lhes dá ver uma criança lá longe a ser esquartejada ou o Marcelo ali em Custóias a tocar xilofone). Para os espectadores ditos "sensíveis" (no sentido de sentirem alguma coisa que seja), a imagem que se segue não pára de ferir a sensibilidade. Porque é pornográfica e porque é, simplesmente, má. Por isso, autocolantezinho no cimo dos aparelhos com o dizer "as imagens que se seguem hão-de ferir a sensibilidade dos espectadores mais sensíveis". Pode ser que a moda pegue. Como os pirilampos mágicos. Afinal de contas, é Natal.



Que dizer desta monstruosidade, feita ao correr da pena durante o aninho de 1950? Apetece louvar cada página como cada grão de areia no deserto. Mais do que ler este livro pela avidez e curiosidade das referências, há essa relação puxada para o título entre os livros e a vida. Ler não para se distrair, ler nunca a cagar, mas ler como uma filosofia de vida, daquelas calçadeiras que vão ajudando a pôr o sapato ao longo dos tempos. Miller escreve: "Considero o meu contacto com os livros muito semelhante ao que tive com outros fenómenos da vida ou do pensamento. Todo os contactos são "configurados", não isolados. Nesse sentido, e neste sentido apenas, os livros fazem tanto parte da vida como as árvores, as estrelas ou os excrementos. Não me inspira qualquer reverência per se." Por isso os livros não têm de ser os certos (os clássicos), podem ser pessoas ("os livros vivos") e ajudam nessa ciência da vida como as plantas, os animais, o sexo. Como refere mais do que uma vez: a vida sempre primeiro. Os seus heróis eram esses doutorados na ciência de viver e é esse movimento entre o pensamento no papel, que salva ou dá a perdição, e as viagens, as conversas, a dureza dos trabalhos e dos dias aquilo que me ensina Miller. 

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Cansado das estrelinhas que damos aos filmes, proponho a partir de hoje novo método de classificação. Os filmes passar-se-ão a dividir em:

1- Dantes é que era.
2-A partir de agora é que vai ser.
3-Olha, é o que é.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

« A mente é infinita e capaz de entender tudo o que lhe põem à frente; não há limite para a sua compreensão. O limite é a pequenez das coisas e a estreiteza das ideias que lhe são apresentadas. As filosofias dos tempos antigos e as descobertas da investigação moderna nada são para ela. Não a enchem.  Depois de as decifrar, a mente segue em frente e pede mais. As mais complexas, todas elas juntas, constituem um simples nada. Essas coisas foram reunidas por meio de um trabalho extremo, de um trabalho tão árduo que só o pensar nele se torna fatigante; porém, tudo considerado, a mente recebe tudo isso com a mesma facilidade com que a mão colhe flores. É como uma frase, que se lê e que se esquece. »

 in Story of my Heart de Richard Jefferies
« Vou ser vago voluntariamente; poderia ser completamente explícito, mas não é essa minha intenção. Isto porque, uma vez que uma coisa é definida, morre.»

 Krishnamurti      

domingo, 2 de dezembro de 2018

Eu sou o pavão mais belo

«Não creio que um pavão inveje a outro pavão a sua cauda, pois todos estão persuadidos de que a sua é a mais bela do mundo. Por consequência, os pavões são aves pacíficas. Imaginai agora como seria infeliz a vida de um pavão se lhe tivessem ensinado que é feio ter boa opinião a respeito de si mesmo. Sempre que visse um pavão exibir a sua causa, pensaria: “Não devo imaginar que a minha cauda é mais bela do que aquela, isso seria uma presunção, mas, oh, como eu desejaria que fosse! Essa ave odiosa está tão convencida da sua magnificência! Vou arrancar-lhe algumas penas! Então não teria receio de comparar-me com ela.” Ou talvez imaginasse fazê-lo cair numa armadilha para provar que um tal pavão era culpado de atitudes contra a sociedade dos pavões e o denunciasse à assembleia dos chefes. Gradualmente, estabelecer-se-ia o princípio de que os pavões com caudas particularmente belas são quase sempre maus e que como chefe sábio do reino devia ser escolhido um humilde pavão, cuja cauda fosse constituída somente por algumas penas sujas. Uma vez estabelecido este princípio, mandar-se-iam matar os pavões mais bonitos, até que por fim uma cauda realmente esplêndida se tornasse recordação obscura do passado. Tal é a vitória da inveja mascarada de virtude. Mas enquanto cada pavão pensar que é mais belo do que todos os outros, não haverá necessidade de uma tal repressão. Todos esperam alcançar o primeiro prémio na competição e cada um, porque estima a sua pavoa, julga que o conseguiu.»

Bertrand Russell in "A Conquista da Felicidade"

sábado, 1 de dezembro de 2018

A PORTUGAL

Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
A pouca sorte de nascido nela.

Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.

Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fatua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol calada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a merda o seu anonimato;
terra-museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:
eu te pertenço.
És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço mas seres minha, não

Jorge de Sena

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Manto da literatura

Uma das recordações mais nítidas que tenho da minha infância envolve mantas pesadas e escuridão. Era de noite e toda a gente devia dormir. Haveria algo importante no dia seguinte? Pouco importa. Tinham-me mandado apagar a luz e eu estava a meio de um livro, não me recordo qual, provavelmente um daqueles infanto-juvenis de aventuras policiais, mistérios de trazer por casa. Pouco importa também. De que me lembro é do prazer, praticamente pré-sexual, de infringir a regra e de, depois de tudo às escuras, ligar uma pequenina luz, espécie de mini lanterna, e continuar a ler até que o sono, o cansaço, me apagassem definitivamente. Sentia que estava numa espécie de casulo, a sós com a fonte do meu prazer, satisfazendo a minha curiosidade de seguir aquela aventura, e de o fazer na escuridão, sem distracção, sem nada que me proibisse ou desviasse. Como se alguém me entregasse, a mim e só a mim, um segredo. 

Desde essas noites de frenesim pela leitura proibida devem ter passado trinta anos. Ou quase. Contudo, creio que desde aí nada se alterou substancialmente na forma como me relaciono com os livros. Continuam a ser o meu espaço debaixo das mantas, o meu esconderijo, no qual me sussurram  - ao abrigo da tagarelice dos dias e das frases de verniz e de circunstância do quotidiano  - coisas acerca do segredo da vida. A literatura, pelo menos para mim, é, sempre foi, esse manto. Esse espaço meio escondido - da biblioteca, da solidão, do silêncio - onde dou por mim a chorar o mais alto, a rir o mais elevado, a conversar com os reverentes, os mendigos, os animais, as plantas, as ruas, o meu pai, a minha mãe, todos nesse espaço abrigados, convocados, sem tempo ou espaço pré-destinados. Uma reunião de grinaldas, de pedras, mafarricos, duendes e paixões. A literatura é, pelo menos para mim, uma toca de coelho, um para lá do espelho, um espaço secreto, um esconderijo onde se vai discutir o eu, a multidão, o todo e o único. Uma senha secreta para aquele engodo, aquela ficção que nos penetra, a que chamamos real. Quando a claridade se suspende, quando as paredes da biblioteca apertam, a dança na escuridão, a conversa muda começa...

Conferência de piolhosos

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

A arte de desencorajar

« Não deveríamos ter medo de ler demais ou de menos. Seria aconselhável entregarmo-nos à leitura da mesma forma que nos alimentamos ou fazemos exercício. O bom leitor será atraído pelos livros bons. Descobrirá com os seus contemporâneos o que é inspirador, ou meramente aprazível, na literatura do passado. Seria desejável que tivesse o prazer de fazer essas descobertas por si, à sua maneira. O que tem valor, encanto, beleza ou sabedoria, não pode ser perdido ou esquecido. Mas as coisas podem perder todas estas qualidades se nos arrastam para elas pelos cabelos.Não repararam já, depois de muitas angústias e desilusões, que, ao recomendar um livro a um amigo, quanto menos dissermos melhor? Sempre que louvamos demasiado um livro, suscitamos resistência no nosso ouvinte. Temos de saber quando devemos ministrar a dose e em que quantidade – e se esta tem ou não de ser repetida. Refere-se frequentemente que os gurus da Índia e do Tibete praticaram durante séculos a importante arte de desencorajar o ardor dos seus futuros discípulos. O mesmo tipo de estratégia pode ser aplicada no que respeita à leitura de livros. Desencorajem um homem de maneira correcta, isto é, com o objecto certo em vista, e ele enveredará pelo bom caminho muito mais depressa. O importante não é que livros, que experiências um homem deve ter, mas o que deposita neles de si próprio. »

Henry Miller

terça-feira, 27 de novembro de 2018

« O livro que se torna vivo é o livro que foi penetrado até ao âmago pelo coração devorador. Até ser acendido por um espírito tão vivo e flamejante como aquele que lhe deu origem, uma obra está morta par nós. As palavras desprovidas da sua magia não passam de hieróglifos mortos. As vidas despojadas de curiosidade, de entusiasmo, de dádiva e de capacidade de receber, são absurdas e estéreis como letras mortas. Encontrar um homem a quem posso chamar um livro vivo é alcançar a própria fonte da criação. Ele permite-nos ver o fogo que consome o universo inteiro e que não emite apenas luz e calor, mas também uma visão, uma força e uma coragem perenes.»

Henry Miller em "Os Livros da Minha Vida"

Suspiria (2018) de Luca Guadagnino

Creio que talvez seja um erro, ou pelo menos uma leitura apressada, separar a versão original de Suspiria (1977) de Dario Argento e esta de Luca Guadagnino com base numa simples oposição entre uma narrativa e uma forma. Este raciocínio implicaria catalogar o filme de Argento de acordo com uma história coesa, um witch tale com corpo de giallo (talvez com pedaços de corpo, pois o filme de Argento não é um todo ele um giallo) e o filme de Guadagnino como uma obra que coloca à frente de tudo um formalismo exuberante e onanista. Contudo, tal não me parece corresponder à verdade. E não o é, porque, convém não esquecê-lo, a obra-prima do mestre do terror italiano tinha alguns plot holes e era ela própria de um formalismo maravilhosamente exasperante. Mas então o que é que tira brilho (e terror) a este retake de Guadagnino ? Aquilo que faz do filme de 77 um filme impactante é precisamente o facto de ele se construir sobre uma linha de subtil equilíbrio entre a sua forma e o seu conteúdo. Quer dizer, ele constrói uma dada situação narrativa - à qual não falta sequer uma mitologia própria, gótica, política, policial -, que vai tendo os seus altos e baixo ao nível do grau de tensão e surpresa sobre o espectador, e é depois sobre esta manta que Argento coloca as cores, o sangue, a música, em momentos claros, precisos, delineados.

O que se perde com o Suspiria dos tempos modernos é precisamente essa subtileza, esse equilíbrio. Talvez pelo peso da responsabilidade (ou mesmo pelo ensimesmamento de Guadagnino que viu aqui a possibilidade de "criar arte", de "esculpir o novo") o que era leve passa a pesado, o que era subtil, pornografiza-se. Tudo é curto, grosso e evidente. Quer mensagem verbal, quer mensagem pictórica, chamemos-lhe assim. Um bom exemplo é a forma como o filme de 2018 tenta tornar evidente o subtexto político da narrativa: as facções políticas no exterior e no interior da escola de dança, a clandestinidade das bruxas e a clandestinidade dos resistentes políticos. Esta abordagem política, assim clarificada, no fundo o que faz é "formalizar um conteúdo latente" na obra de Argento. E se a mensagem precisa aqui de uma dada forma, clara, o inverso também é verdade. Ao contrário das set pieces no original, aqui o formalismo parece querer tomar um espaço de conteúdo. Um corpo substancial, uma filosofia apressada da forma que aqui é explorada até à exaustão e que se prende com o uso do corpo e da dança associado a uma escrita cinematográfica. Talvez Suspiria precisasse de um realizador menos romântico (mas já não era o miscast do realizador, e por razões semelhantes, o problema do retake de Halloween?), alguém que não visse no terror um short cut para o inefável. Que percebesse que mesmo o gótico era assunto do quotidiano, de lamas, de escuridões, de castelos associados à vida de pessoas. A câmara de Guadagnino acaba por dançar por este Suspiria, tornado coreografia interminável, como uma entidade tomada por uma musa da inspiração a tempo inteiro. E a comprová-lo são as várias cenas à mesa, dentro e fora da escola, onde as palavras não são concedidas às suas personagens. Ouvimo-las mas não das suas bocas, provindas antes da voz da banda sonora. Um mistério que logo se desfaz pois quem fala pela banda som, assim como pela banda imagem é o grande demiurgo Guadagnino.



segunda-feira, 26 de novembro de 2018


quinta-feira, 22 de novembro de 2018

A espécie dos eubemdisses

Já ouviram falar da espécie exótica dos "eubemdisses" ? Não? Então estejam bem atentos pois eles não são fáceis de avistar. E porquê? Porque hibernam durante longos períodos, precisamente quando faz bom tempo, há sol lá fora, e a terra parece ser feita de delícias e facilidades. Contudo, mal começam as tragédias - ele é um carro que cai num abismo, um edifício que colapsa ou uma amiga que vem chorando de desgosto de amor não correspondido - e a espécie dos "eubemdisses" sai de rompante da sua sombria caverna. Saem cá para fora, envergando as melhores vestes e plumagens (a elas não se lhes conhece um vinco, pois estão sempre impecáveis, como se nem fossem usadas) e olham muito empertigados à volta, o mundo agora feito calamidade. É então que começam a dança pela qual são conhecidos, acompanhados do seu grito característico que proferem alta e incessantemente: "Eu bem disse! Eu bem disse! Eu bem disse!".

terça-feira, 20 de novembro de 2018

cheiro nauseabundo

Eis uma reflexão de um animalista confesso: à medida que todas as televisões seguem, exaustivamente a recuperação dos corpos, um a um, de mais uma tragédia a comparação é inevitável. A televisão portuguesa é cada vez mais aquele cão pisteiro treinado à nascença para farejar obsessivamente o mais leve odor a cadáver.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Hitchcocks finais, diferença e repetição


Tenho estado a ver os últimos filmes do Hitchcock. Alguns nunca tinha visto, outros não tinha lembrança. Falo de filmes como Marnie, Torn Curtain, Topaz. O entusiasmo, devo dizer, fica aquém do esperado. Mas para mim, mais do que relatar uma dada reacção, interessa-me reflectir sobre a razão destas "semi-decepções". Um autor produz-se numa certa unidade no tempo - uma série de diferenças e repetições que se vão acumulado, aos poucos, variando aqui ou acolá, evoluindo num mundo cada vez mais constituído, mais ou menos estável em seus alicerces. Contudo, nestes últimos filmes é mais difícil deixar vir à tona (revelar, no sentido fotográfico) a diferença do que a repetição. Como se ela fosse ínfima, subtil e necessitasse de um olhar muito atento e apurado, um olho que veja e reveja, um olho-microscópico. Ao mesmo tempo, as cenas dos thrillers de espionagem, as suas obsessões, perseguições, traumas, funcionam para o espectador do mundo hitchcockiano como aquelas atracções do parque de diversões que, já se tendo experimentado uma e outra vez, sabemos o local onde as mesmas se encontram e até nem recusamos, uma vez ou outra, voltar a andar nelas. Por exemplo, a perseguição a Paul Newman em Torn Curtain, com a presença sonora dos passos, o passado encoberto e "vertiginoso" (no sentido da vertigem do Vertigo) de Tippi Hedren em Marnie, o próprio local da sala de espectáculo como espaço de tensão de Torn, os eternos macguffins que deglutimos, talvez um pouco cansados da cenoura que nos faz mover o olhar. Contudo, há uma outra dimensão, talvez melancólica, algo revisionista, que estes filmes contêm. A facilidade com que neles mais facilmente detectamos a repetição e menos a diferença transporta a nossa subjectividade para um certo passado. Ver estes filmes finais de Hitchcock e neles detectar sobretudo estrutura e esquema é como olhar para um urso de peluche da nossa infância todo descarnado, com as molas interiores já de fora. É um "esventramento" que não deixa contudo de ter uma dimensão de álbum de recordações. O Hitchcock maduro é também uma lembrança do Hitchcock vigoroso, um folhear, sequência a sequência, do seu passado, uma passagem pelos locais onde tivemos medo, sentimos culpa, de quando o sangue nos subiu à cabeça na sala escura. No fundo, os hitchcocks finais são ecos do seu toque, uma pressão que vai afrouxando aos poucos mas da qual ainda recordamos a marca na carne, na mente.

domingo, 18 de novembro de 2018

"Na verdade, não há razão para invejar o filho-da-puta, mesmo porque a inveja é o quarto traço distintivo e identificativo do filho-da-puta. O filho-da-puta vive preocupado, roído de inveja; o desejo do filho-da-puta é que ninguém estivesse nunca no meio do novo, do belo, do agradável, porque isso dá satisfação a quem lá está; que ninguém fizesse nunca nada de novo, de belo, de agradável, que isso vem alterar a ordem das coisas, e o filho-da-puta só se sente à vontade quando as coisas estão na ordem e ele à frente delas. Por isso, tudo quanto os outros fazem o inquieta e preocupa. Por isso também é sabido que gosta de dizer mal de tudo o que é novo, belo e agradável, pôr em causa tudo quanto lhe causa surpresa; sente-se presa da novidade, gosta de dizer mal e de pôr em dúvida, gosta de rebaixar, de destruir tudo quando é novo, belo e agradável, gosta de abalar, de estragar, de não deixar fazer tudo quanto é novo belo e agradável. Porque isso tudo, na sua ideia, desfeia. O gozo dos outros, sobretudo o amoroso, línguas que se lambem, na sua ideia, desfeia. Faz a boca feliz mas, na sua ideia, desfeia. O amor faz-lhe inveja, por isso ele o proíbe ou inibe, embora o permita e admita a imagem porque, como a imagem cria o desejo e não o gozo, dele nasce mais o desespero que o esperado. O lema do filho-da-puta é amar a humanidade em geral e odiar toda a gente em particular."

in Alberto Pimenta in "Discurso sobre o filho-da-puta"

sexta-feira, 16 de novembro de 2018


quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Lazzaro felice (Feliz Como Lázaro, 2018) de Alice Rohrwacher



Lazzaro felice, vencedor do prémio para o melhor argumento em Cannes este ano, é baseado em parte num caso verídico acerca de uma marquesa italiana que, tendo uma propriedade rural isolada, escondeu dos seus camponeses que o feudalismo havia terminado. Uma perversa e conveniente máquina do tempo digna de um argumento de M. Night Shyamalan ou de um episódio de The Twilight Zone. A realizadora Alice Rohrwacher quis expandir um pouco tal bizarria transportando-a para o seu mundo de fábula, na qual a ruralidade surge como posto último, sagrado, celestial, oposto a uma certa perversão urbana. Em Le meraviglie (O País das Maravilhas, 2014) já isso se explorava, tendo este por base o mundo dos reality shows por oposição a uma infância passada no campo, junto das abelhas (o seu pai era apicultor). Neste seu último filme, a oposição campo/cidade não surge tanto como forma de nos fazer tomar partido por um dos lados, mas é mais o palco de uma recorrente e intemporal luta de classes.

Por isso, Lazzaro estrutura-se em duas partes: na primeira Rohrwacher filma a tal condessa (Nicoletta Braschi) enganando os seus camponeses e na segunda, já após descoberto o “esquema”, a mesma exploração continua, por outros meios, na cidade. As maravilhas de Lazzaro começam aqui, na forma como o caso verídico devém fábula, e a fábula, acto verídico. A transição destes dois espaços nunca é puramente lógica, os raccords de planos e espaços saltam idades impossíveis de comprovar pela razão. Depois temos o jovem Adriano Tardiolo, escolhido entre mais de 1000 candidatos, que faz de Lazzaro. Escolha impressionante a mostrar como o casting pode ser o ponto de partida para uma certa transcendência do rosto e da expressão. A bondade pura – como o burro em Bresson [Au hasard Balthazar (Peregrinação Exemplar, 1966)] -, que, contra a exploração, se ergue como Lázaro e sempre regressa. Independentemente desta leitura funcional e política, há uma outra “política” que importa aferir. Embora se tenha visto este Lazzaro felice como uma espécie de Miracolo a Milano (1951), convém dizer que o “eterno retorno” da bondade pode muito bem passar pelo “eterno retorno” de um rosto que inaugura um mundo. Uma ressurreição do cinema italiano que visse surgir em Adriano, o seu novo Ninetto Davoli. E Pasolini não está 100 por cento arredado deste universo, embora, há que dizê-lo, o filme de Rohrwacher termine com a arma do lirismo apontada à cabeça do espectador. Bach, música esvoaçante, um lobo nobre, um apedrejamento crístico e urbano. Isto, creio, Pasolini nunca filmaria. Mas tudo somado, é um dos mais interessantes filmes do ano.

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

A Comunidade



"Não sei nada. Duvido de tudo. Desci ao fundo dos fundos, lá onde se confunde a lama com o sangue, as fezes, o pus, o vómito; fui até ás entranhas da Besta e não me arrependo. Nada sei do Futuro, e o passado quase esqueci. Li muito e foi pior. Conheci gente estranha nesta viagem. Gente pobre: estúpidos de medo, doidos espertalhões, toscos patarecos, foliões e parasitas da Vida, parasitas (os mais criminosos, estes) chulos do talento próprio (por ex., o Manuel de Lima, o Vítor Silva Tavares, eu), desperdiçando tudo: as horas do relógio deles e dos outros, e os defeitos de todos, que tudo tem seu calor e seu exemplo; os frustrados falhados tentando arrastar os mais para o poço onde se deixaram cair por impotência de criar, lazeira ou cobardia (mas o coveiro nada perdoa!). Cadáveres adiados fedorentos viciosos de manhas e muito mal mascarados. Uma caca a respirar". 

Pergunto-me se será possível acabar de ler "Comunidade" e não ficar embasbacado, todo a tremer? Do murro na tromba, da felicidade por ter encontrado uma jóia como esta, uma obra-prima da literatura. De toda a literatura. Esqueçamos o batatal da nossa pequena existência e o à beira mar plantado. Ainda não sei o que me empolga mais. Por um lado, o sentir-me entrar naquela cama como uma entrada de rei no espaço de toda a humanidade - um livro que nos aproxima, a todos, um a um. Como se todo o espaço que nos liga fosse pouco, juntos, amontoados nas certezas daquilo que dá gozo na vida. Por outro lado, a forma como Pacheco nos mostra isso através do seu toque de Midas: convertendo o simples em opulento, a simplicidade em riqueza, o jacto de vómito, de merda, de mijo, nos líquidos literários da autenticidade, do que faz respirar, tremer, apreciar tudo isto. "Caralho estou vivo!" É isso que me apetece dizer depois de ler "A Comunidade".

Cubismo existencial



Há uns dias surgiu-me assim meio de improviso, num debate em que participei acerca do excelente Happy Hour (Happy Hour: Hora Feliz, 2015), a expressão “cubismo existencial”. O que queria defender era a capacidade do filme de Ryûsuke Hamaguchi sempre ir frustrando a nossa tendência de engavetar situações, de pôr de um lado as coisas melhores e do outro as piores. Tudo era possível, de todas as perspectivas, sem hierarquias, com todas as acções e suas consequências, umas boas outras más. Nada melhor do que tudo o resto. Ora, pegando num expressão trabalhada por filósofos como Étienne Souriau ou Bruno Latour – a noção de modo de existência – podemos ser tentados a adicionar algo mais a esta ideia de cubismo existencial. Tal como a noção de modo de existência precisa quer de uma forma específica de ser, quer de condições que veridicção, podemos acrescentar que ao cubismo existencial de Hamaguchi poderiam ser adicionadas as condições de percepção visuais de uma criança, tal como expressas neste Estiu 1993 de Carla Simón.

O fito da autora é autobiográfico. Um filme sobre uma menina de seis anos que perde a mãe (já havia ficado orfã de pai anos antes) e vai viver com o tio, sua mulher e prima para uma aldeia longe da sua Barcelona Natal. Podemos dizer que, narrativamente, o filme busca compilar pequenos episódios vividos por Carla na altura, misturados com sensações, emoções próprias das crianças. E depois um silêncio e mistério muito Víctor Ericianos. Podemos até ir ao ponto de perceber aquele Verão como o momento em que as lágrimas pela morte da mãe (as mesmas que, quando o filme abre, estão secas e invisíveis) hão-de sair cá para fora. Mas aquilo que deslumbra neste Estiu 1993 é precisamente a forma como reinventando o ponto de vista da criança, vamos tendo acesso a fogachos de mundo, de baixo para cima, a brincadeiras, a birras, a cenas incompletas. Ou fugas, asneiras, injustiças e, nos seus interstícios,  lá vem o “grande drama”, aquele que se vai instalando aos poucos, aquele para os quais os adultos vão e vêm como que sendo chamados, pontualmente, a uma boca de cena. Carla Simón ganhou um prémio para melhor primeira longa em Berlim e Estiu 1993 vai aos óscares em representação espanhola para um filme rodado em catalão (a arte prega destas partidas à política). Mas o que me parece mais relevante, e que proponho, é que vejamos esta obra como um certo modo do cinema esculpir a percepção infantil. De nos dar acesso a um cubismo perceptivo – tudo é vago e nítido, irrelevante e central ao mesmo tempo -, que é condição de veridicidade desse referido cubismo existencial que podemos ver em Happy Hour. Dois dos melhores filmes do ano que podem ser vistos como ponto e contraponto de um dado multi-perspectivismo, de uma relatividade que vai da couve à alface, do casamento ao divórcio, no espaço de segundos.