Creio que talvez não seja possível compreender um filme como Dovlatov (2018) de Aleksei German filho, sem termos uma mínima noção da obra de Aleksei German pai. Desde logo, por uma questão de contexto: porque se tratou de um cineasta que apenas fez 5 longas em 46 anos de trabalho e que foi muito fustigado pela censura. Não é de estranhar que esse “subtema parental” tenha discorrido para o filho, designadamente na forma como um regime político acaba por tolher a criatividade dos artistas, aqui em concreto, os dos escritores, Sergei Dovlatov (Milan Maric) e Joseph Brodsky (Artur Beschastny). Também como aconteceu com German pai e com os seus próprios protagonistas – estamos aqui ainda no campo dos não heróis, daqueles que sistematicamente se recusam a servir as glórias do passado. Como vemos no filme, com os comentários depreciativos e satíricos na reportagem que escreve para um jornal literário sobre a presença dos grandes escritores, Gogol, Dostoiévski, Tolstói, Puschkin, ou melhor sobre os actores pobres diabos que os encarnam numa produção cinematográfica de propaganda. Ou mesmo mais tarde ao recusar embarcar num épico grego que representaria o seu grande objectivo de vir a ser publicado no seu país. Estamos ainda neste Dovlatov seguindo o trilho do pai, e suas personagens engolidas pelo quotidiano que, mais do que agirem, procuram observar. Aliás, é esta a personagem que o próprio escritor contrapõe como sua ao chefe do jornal, quando este lhe chama a atenção que aos seus escritos lhe faltam ou um herói ou um anti-herói, segundo o mecanismo básico da literatura dramática.
Mas a relação com German pai também deve ser salientada a um nível mais formal. Podemos aqui ver os mesmos planos sequência constantes, os planos atravancados de gente e objectos, um certo espaço para um onirismo, um colectivo que vai mascarando a acção principal (alguns planos parecem uma versão de “onde está wally?” vertida para onde está Dovlatov?), toda a gente fala, interrompe, passa atrás, à frente, no meio. Uma dança, uma mise-en-scène vendaval que o filho herda do pai. Mas então, qual seria o espaço inovador de Aleksei German Jr.? Talvez na forma como converte aquilo que era dado com sentido de humor (ainda que dorido) pelo seu pai, para o que acho ser uma atmosfera mais tipicamente soviética (isto é, introspectiva, mellow). Como se abusasse de um certo decadentismo romântico, uma autocomiseração pelo génio incompreendido, como se restasse apenas a Aleksei German Jr. a referida ironia como metáfora descendente, que aqui e acolá torna latente um pormenor querido, uma boneca... por favor. Afastamo-nos então do fellinianismo realista do pai, e temos antes uma daquelas toalhas feitas à mão que se vendem nas lojas de artesanato, cheias de rendas, de pormenores, mas que admiramos mais pelo trabalho que ali está envolvido (o calo nas mãos do artesão, a sua condição precária, muitas vezes) e menos no efeito estético que estas podem provocar numa mesa decorada. Dovlatov é uma dessas tapeçarias para a qual acabamos por olhar sobretudo por tal rendilhado, ou, quanto muito pelo sofrimento impotente das suas personagens.
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