quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Um homem caminha como se carregasse dois baldes de água.
Uma mulher passa com o queixo para cima, como se levitasse.
Cruzam-se.
Obviamente não reparam um no outro.

O amor não é para os audazes. É para os atentos.

Out/2007
Uma, duas pedras,
Ouve isto, sem cerimónia
As nuvens e os palhaços são teus
Ouves morder a noite em que, um dois, dois olhos, se fecharam sobre ti
Mesmo se chovesse fazia sol
Mesmo que a dança fosse contigo
a ressalva aí no coraçãozinho

não ames assim, foda-se
Não dês volta em seco, a alface morre
Mesmo que macio fosse o parapeito, tombavas como se caísses em metáfora
E afinal de contas a música está tão alta que não ouves partir;

Out/2007
Pedem-te, sem marcas de tortura,
Devaneia-te aí, passarinho.

As luzes abusam da noite, mas ter-te,
Manhã que sangra sorrindo,
oh ter-te.

Enquanto se chove, chova-se.
E imensos dedos, espinhos, espasmos, esporas de humidade
Cavem bolsos, se gaguejas.

Uma certa graça há em rir
E em ser um ser: arrancado, feliz,
Sem portas ou provérbios.


25/10/06
Quando leio um livro:
Dois acrobatas apaixonam-se,
três coelhos mágicos são fofinhos
e a previsão metereológica está sempre certa.

Não suporto ficção.
Na tua rua, torta e ventricular,
Pedes-me que não espezinhe tudo.
Que não entre a perguntar direcções,
Lábios ou a raça do teu abraço.

Íngreme, com problemas pulsantes de iluminação,
Serei irmão nessas paragens.
E o útero a que me obrigas,
Terá o mesmo tipo de construção, modesta, sem divãs ou portas

A arder e de joelhos estão os dias
em que o cheiro a amêndoas doces te trouxe, tum-tum,
No pára arranca dos olhares,
as armas de revelação maciça da nossa língua secreta.

Na tua rua,torta e ventricular
Vou onde as árvores forem,
A galope no teu cheiro,
Na tua boca alucinante.


27/10/06
Ontem é tempo:
De escavar rostos em abóboras,
De suicidar os dentes com o riso,
De espreitar bruxinhas a dançar um slow.

Hoje é tempo:
De lembrar o gelo que não derreteu na bebida bebida,
De levantar os véus dos candeeiros,
De esperar pelo próximo Halloween.

Hoje é tempo de amanhã.

Halloween /2007

À noite não é tarde

À noite não é tarde.

O tempo, esse decadente escultor, coloca as coisas nos sítios onde ainda não estiveram.
Os jogos fúnebres jogam-se.

Nas primeiras filas, os cavalos espantados esperam.
As árvores, filhas da pele e de outros deuses, ganham.

Somos palavras nervuras trancadas nos lábios,
As horas gastam-se a chorar de flancos descaídos.

Out/2007

O elogio do zero, ou mesmo, quem sabe, a higiene do conhecimento

Em book antiqua era tudo mais simples.

Tiro na rótula de um mestre. Os mestres que nunca desgasto sem prazer são as pontas dos meus dedos. Essas putas que me vão alentando a rebentar pelas texturas. Deixa-me ó suave hipotenusa do caralho. Pensas que basta ires ao Colombo para tremer as solas dos sapatos? Tiro na rótula de um velho. Adoece, apodrece e cai. Olhar retinto, em que gastas toda uma vida. Fim-de-semana no estrangeiro, olhar as margens dos rios cheios de água. Subir nos elevadores da mentalidade. Os animais querem sangue e nós damos-lhes a nossa carne. Bom negócio. Tira na rótula de uma mercearia.
Limpa vidros Ajax para limpar a Antiguidade. Limpeza a seco, a quente. Raspar o cotão, os pêlos. Ficar só com o redondo, com o contorno. Asseio e a complicação da Piedade. Tiro na rótula do zero. Eu sou um zero porque sou redondo, porque não cabe em mim mais nada, porque não faço assumpções metafóricas. Assinei mais um papel timbrado e mais um rebanho de zeros que partiu para as coisas. Para o chalé, para a lareira do amor, para a tentação do Senhor. Tiro na rótula do Senhor. Vivo na minha cabeça. Insuflo o corpo com óleos e outros degradantes. O meu corpo podia ser um zero pedestal onde assentasse o cérebro. Que bola maldita! Tiro no rótula da bola sebosa. Está feita a matemática do ser humano. A zero se escreve a humanidade e a Santa Casa agradece. Mais uma vez esta semana o euromilhões não teve totalistas. Semana de merda, dizem eles. Os ateus agradecem. Os agnósticos desconfiam.

Fev /2008
Na repartição de finanças, quis amar para passar o tempo.
Tinha uma flor à mão e dez pessoas à frente.
O funcionário, chegada a sua vez, estendeu-lhe uma caneta.
Olhou por momentos a funcionária nos olhos e apertou a flor escondida na mão esquerda.
Assinou com a direita e saiu apressadamente.

Era canhoto.

Nov/2007

Manual do Esquecimento

Passe a mão ingénua nos seus cabelos. Repare como você é mesmo fofo. Um belo exemplar da raça. Se pudesse, não negue, beijar-se-ia a si próprio. Veja como são tantos os seus cabelos, em floresta, emaranhados, a traçar linhas e combinações secretas.
Mas sinta mais fundo, ou antes, mais para dentro. Com as unhas comece a raspar, a adensar um caminho, um trajecto qualquer. Verá certamente que a superfície sobre a qual está assente a sua cabeleira é firme e mole. Um campo de raízes alinhadas num caos ageométrico, se a palavra existe.
Tente forçar ainda mais para dentro: é mole, dentro de certos limites; é carne, dentro de certos limites. Faça agora um movimento de perfuração com um objecto afiado. Qualquer que ele seja. Uma lima das unhas seria um achado. Não se incomode com o sangue pois é uma evidência da vida, há que saber lidar com ele.
O melhor é ter um paninho à mão. Na outra mão. Para os limites do asseio. Quando conseguir fazer um pequeno orifício, confirme que lá cabe o seu mendinho. Quando isso for possível, vá rodando lentamente. Não se incomode com a dor pois é uma evidência da vida, há que saber lidar com ela.
Vai chegar um momento em que o terreno capilar vai ter a abertura suficiente para o seu indicador. Seja ousado. Experimente o dedo médio. A não ser que seja um daqueles seres humanos extraordinários que possui o anelar mais comprido que o médio. Não se esqueça: não deixe pingar o sangue para o chão. Afinal, trata-se do seu quarto, que a sua mãe tanto esmera em ter impecável.
Faça por não prestar atenção ao barulho viscoso da carne a ser penetrada, senão perderá a coragem. Se for preciso tape os ouvidos previamente com tampões. Ou algodão, que sempre ajudará a ensopar o sangue. Vai chegar um momento em que sentirá ao de leve o começo da sua massa encefálica. Tem uma textura engraçada, é precisa tocá-la para se saber do que estamos a falar.
Não se incomode com as tonturas pois são uma evidência da vida, há que saber lidar com elas. Você sempre soube isto. O cerébro é feito em ondinhas empapadas em visco, mas não caia na tentação de nevegar nelas. Seja ousado. Introduza toda a sua mão. Quando tiver toda a sua mão introduzida em seu cérebro, com anéis e tudo, tente pensar.
Pense no seu primeiro amor, no dia em que reconheceu que o seu coração se acelerava na presença de outro ser humano. Pense nas ervilhas que em bébé o faziam comer até transbordar da boca. Ou tente mesmo, pensar em sexo, no frenesim da penetração e do orgasmo. Que acha? Gosta da sensação?
Se o braço estiver a ficar dormente com a posição incómoda, tente arranjar um sítio confortável. Um sofá, por exemplo. Esta é a última vez que o vou prevenir quando à vergonha de alguém entrar e ver o quarto cheio de manchas de sangue. Por isso, seja discreto. Gritar, está fora de questão. Morda antes a língua se for caso disso.
Se ainda está a pensar naquilo que lhe pedi, errou. Não é que tenha de recomeçar tudo de novo. Basta recolocar-se. Ser sensível. Você é sensível, certo? Sempre lhe disseram isso. Faça lá uso dessa sensibilidade.
Tacteie no seu cérebro à procura de um ponto. Este não se encontra exactamente no centro da sua massa encefálica. Está ligeiramente mais próximo do hipotálamo. Como saberá que chegou lá? É simples. Terá vontade de rir, rir histericamente. Mas por favor! Não acorde o seu irmão. Está doente e seria uma falta de respeito pelo descanso dos outros. A sua mãe sempre o educou correctamente, não há motivo para ignorar isso agora. Não se incomode com as convulsões e a perda de saliva pois tratam-se de evidências da vida há que saber lidar com elas.
Reparo que começa a nascer em si um tímido sorriso. Será sinal que encontrou? Não tente pensar em anedotas senão falseará o jogo. O melhor é deitar-se no chão para poder vasculhar mais à vontade. Espero que tenha coberto os tacos com jornais velhos, aqueles que nunca leu atempadamente. Os outros de certeza já foram para o lixo.
Sim, agora sim. Já vejo muitos dentes. Parece que chegou. Sim, definitivamente. É esse o ponto. Vê? Eu disse-lhe que seria meramente uma questão de persistência. Vá, agora tente lá lembrar-se do seu primeiro desgosto de amor. Do dia em que se riram na sua cara, em que corou de vergonha e passou um fim-de-semana a chorar. Já não consegue, pois não? Há um vazio, certo? Uma calma apaziguadora que contrasta com as suas pernas que tremelicam feitas parvas.
Vê? Eu não disse que seria tão fácil esquecer? Não vale a pena sofrer. Mais vale esquecer. Trata-se apenas de uma questão de persistência. Já lhe disse.
Olhe, a sua mãe está a chamá-lo para jantar. Não ouve? Ah, claro que não. Que parvoíce a minha, tem os tampões nos ouvidos. Não se preocupe, o prato não é o seu preferido.
Quer tentar uma última vez? Hmmm. Tente lembrar-se da capital dos EUA. Não lhe ocorre nada? Muito bem. Chegámos.
Há, já quase me esquecia. Vai esvair-se em sangue dentro de poucos minutos e morrerá. Mas não se incomode com a morte. É uma evidência da vida, há que saber lidar com ela.

Baudelaire

Sentei a beleza dos meus joelhos e injuriei-a
Tenho joelhos quebradiços e rótulas frágeis
Foi o que lhe valeu.

Set/2007
A vida é uma alternância de timidez e atrevimento.
Isso significa que quando é preciso avançar se recua e viceversa.

Não lamentes a tua caixa de velocidades partida.
Junta antes ânimo para um corpinho com mudanças automáticas.

Desequilíbrio

Rafael marcou a data de morrer num post it.
O seu queixo: design de osso, perpendicular ao céu.

Nota: escrever sempre o planeado; planear sempre o que escrever.
Ideia: esmagar o osso, esse osso, contra a pedra do chão da rua.

Morreu com os edifícios que transportam as linhas direitas.
As janelas vestidas como concessões de vidro ao equilíbrio.

Nota: uma pedra, essa pedra, corta a direito as rectas que vivem junto ao chão.
Ideia: proporcionar-se um desequilíbrio e deixar de respirar.

O (10) equilíbrio é uma forma acidental de horizontalidade.
Uma pedra é uma pistola compacta. Com as balas incorporadas.

Àparte

Estamos sós?
Recolha essa cortina.
Ponha um ar normalzinho...
Disfarce. Como se falássemos de sobremesas.

Só para si, hã?
Digo-lho ao ouvido.
E é ouvir agora e calar para todo o sempre...
Repare que não é algo que vá por aí alardear em feiras ou museus.

Que cara é essa?
Tem de aprender a conviver com segredos!
Prometa-me que será um túmulo imaculado....
Quando souber cairá redondinho no chão...

Nervoso?
Não é caso para tanto...
Chegue-se para aqui para não nos ouvirem.
Ou melhor... cole-se a mim, para que os meus lábios quase não se mexam.

Só eu sei o que vai cá dentro!
Ai que calor....
E só Deus sabe o que me custa, custar a Ele!
Enfim...
Vou desabotar as pregas da minha alma!
São jactos de mim que recebe!
Prepare-se.
Está pronto?
Ui! Que mal estar! Quase desfaleço...

Olhe...
Desfaça-se o mistério que não aguento mais.

Queria dizer-lhe...
Queria dizer-lhe...

que.

Sussurrar

Em Berlim, uma mulher sussurra: eis a palavra com que apresentarás o mundo.
Na cave a minha avó susurrava antes de recolher as ratoeiras.

O pessimista contempla a parede branca e finalmente sorri.
Esse sorriso não é mais do que uma passerelle de dentes.
Invitável e pasmódico.

Selecção Natural

Cortar rente o cabelo junto à nuca por causa das pulgas.
Comer as patas da galinha com a canja.
Dormir no celeiro com os porcos.
Sacudir a palha do vestido preto largo.

Sentar na cama à espera que o nosso homem nos fornique.

No dia em que a minha mãe matou o meu pai, nevou que a encosta “pareceu”desaparecer.
No dia em que a minha faca cortar a garganta de minha mãe, fará sol. O sangue em poças brilhantes pintará a madeira.


O mais forte terá vencido.

Tempus Fugit

Fugir. Impulsionar a carne contra o ar.
O tempo é o foi e o será do domingo mais domingo que o desespero nos trouxe.

Uma ruga: a ficção ou o documentário?
Os espelhos são acidentes que documentam estados de espírito.
O fogo não queima, nem a tua mão traz apenas cinco dedos.

As Evas metálicas não processam maçãs.
Os robots rupestres não enferrujam em cavernas.
Os coelhos não usam relógio, Alice.

O tempo não foge.
É apenas uma efabulação do movimento, da transitoriedade.
Um Fim não é uma fuga. Muito menos o Fim.

We Live in Public

Os olhos das pessoas terminam nos eléctrodos do cérebro,
Terminam nos pixéis da ternura.
Adeus electrónico, sem uma só batida vermelha.
Ver-me a ver-me.
Ninguém ou toda a gente.

Aberta está a quarta dimensão,
a quarta parede.
A moralidade como terceira ideia sobre as acções, como uma tecla.
Uma pausa, um “frame by frame” que congela.
Que na ânsia do outro e de si, expõe com mais força:
a flor, o vómito ou a santidade da eloquência pornográfica.

O futuro tem uma corrente maiúscula que acorrenta o pensamento, a vontade.
Isso, porque à distância de anos só há contornos e uma criança de perfil é carvão.
Ver-me a ver-me a ver-se a ver-me é trompe d’oeil moral que distrai.
Destruir hierarquias é expulsar a construção das nossas mãos,
É ter os espaços minados
de uma horizontalidade que é preciso atravancar:
com coisas que nos façam vir por fracções de segundo.

Viver em público é tentar matar esse anonimato. E quando todos esses seres que emprestam a sombra à noite se forem,
Quando só existirem estrelas sem brilho,
Começará uma nova busca pelo anonimato.
Nesta realidade em rede os anónimos serão as estrelas.

Viver aleija. Viver com toda a gente a querer viver mais,
aleija ainda mais.
Por isso, o virtual constrói o mundo sobre o mundo, menos feroz.
Será uma questão de tempo até o virtual detectar o seu bug supremo: o humano.
E Frankenstein triunfará, de novo.

Morreu Deus. Matámo-lo.
Morrerá o homem. O virtual extingui-lo-á.

Ou antes, nesta luta não estou certo quem vencerá.
Estas elaborações, no betão ou no virtual,
São sintomas de impotência.
Sem poder saber se há uma verdade, como Deus,
Vamos abrindo portas.
E quando elas estiverem todas abertas será impossível caminhar.

Um só passo trará o desespero ao mundo e
a dor da ausência de todos os outros passos não percorridos.

A virtualidade torna o mundo paralítico.
Aqui como ali mas inerte.
Olhavam para mim como se me dessem a mão.
OS OLHOS POUSADOS NA TARDE TRAZIAM COM ELES TUDO O QUE APANHAVAM. UM GAFANHOTO, UMA AMORA, UMA IDEIA.
OS JOELHOS ESTAVAM COBERTOS PELA ÁGUA TRANSLÚCIDA E NÃO HAVIA UMA ARAGEM QUE SE MEXESSE. UMA SÓ.
Eram as duas assim, só uma.

Pele

Tocava-te.
Pela primeira vez.
E um reino de cristal desmoronou-se-me nos dedos.
As minhas mãos a olharem-te desguarnecidas, com medo de tudo.
Pequeninas, com medo de não encontrar, com medo de ter medo.

Pedaços

Arrancado a mim próprio
Vejo-me à distância,
Prostrado no lugar em que nasci, ou em que fui lançado.
Vi-me assim, aos pares, de olhos, de caminhos alcançados,
de amores pantanosos.

Por cima de uma almofada, aqui, dobrada, a tristeza pesa-me. Faz-me mal ao ponto de nem saber. E as mãos já não encontram o caminho sozinhas, estão cegas, tacteiam, doidas. E nem sei que mais faz parte de mim e o que não faz, O que de mim é por favor, o que sempre me vai adiar. O meu corpo já nem parece um conjunto. São pedaços de pensamento a que por cortesia estão colados carne e lágrimas.
O nariz quer entrar pelo passado adentro, de rompante, a buscar certezas.
Na cheiro, a certeza. No cheiro, o impulso derradeiro.
A língua presa de venenos interditos e a face arrebentada contra uma repetição.
Tudo jaz nestes milagres de impossibilidade.

Malditas poças de sentimento que inundam tudo o que é belo. Ou o que é certo, amarfanhado. Ou o que é atroz, desmitisficado.

Uma máquina de secreções a sentir num dia com tempo absurdo. Só isto.
Um cigarro que me destrói o pensamento. Um cigarro que me sabem a mil cigarros e me dão um pouco de ar.

E nem as palavras, essas que são tão soberbas, me ajudam. Nem elas me dizem o que devo dizer. Nem elas sonham o que não posso sonhar.

Recuo à adolescência sem certezas do meu sentir. Recuo, recuo, até não ter mais por onde recuar. Até não ter mais mãos por onde escrever. Até chorar só porque me batem. Sem compreender que o mundo é uma bola onde é possível ver um barco majestoso e ser-se o mar nele.

O BALDE

O coração atropelava os restantes vegetais numa corrida impossível pelo fim dos nossos dias. As bandeiras arrebatadas e os muros de palavras traziam o quintal como um quadradinho apaixonado. Em linhas rectas, em lutas ancestrais, o sinal, a um canto, desbotado, apodrecia. Os varais falavam de roupa ao vento aos pássaros que de tudo sabiam já. As formigas tamborilavam nas folhas como numa ode ao interminável. O “intermédio” sentia-se em casa, tinha pena da luta dos apaixonados e dos saquinhos de milho que explodiam dos olhos dos espantalhos. Apaixonei-me por um espantalho. “Brutaliza-me”, respondia-me, não me olhando no olhos. E sempre que o vento demorava um pouco mais a responder-me também pensava que já não me queria. Que já o tinha perdido, que não me amava, que me achava um saco de carne amorfa, pronto ao desinteresse.
Dentro do dia, havia velocidade para disparar os cheiros das coisas. Eu fiquei sentado, também eu a apodrecer, também eu tabuleta. O fim é por aqui, podia ler-se. Os vizinhos sentavam-se nos cantos opostos, a mirar o intermédio, com pautas nas mãos e cabelos brancos nos cabelos. Dobrado, irrequieto, puxava as mãos grossas, revolteando a terra. Encontravam-se corações já usados, com bolor, roídos pelo Inverno. Aos poucos, o balde ia-se enchendo. A terra envelheceu num minuto e os desgostos eram caimbras do coração. O coração atropelava também as paredes orgulhosas. Perderamos o chão por de cima de nós e ninguém já morava ali. Nem os pássaros moravam neles próprios. O que não era ainda amarelo sonhava em sê-lo. As únicas manchas brancas do quintal tinham a beleza apontada a elas.
Fui feliz.
A saída era aqui, dizia a tabuleta cravada no último coração. Alguém pegou no balde e levou-o para dentro de casa. Amanhã será dia de trabalho, ainda.
Quero repetir esta canção até que o meu corpo a cante

O meu peito a compasse com os meus três ritmos danados. Uma ambulância passa, tão menos que uma nota, e lá dentro vão corpos sem vida, tão mais vivos. Tenho a emergência das coisas belas, de estar a morder e a rir as cores à tarde que não me deixa. Tenho que um passeio é o vazio e que o vazio me passeia.

Acordei com o sono da felicidade. Levantei-me com a calma das sirenes. Só não sonho porque me arrancaram a lucidez das patas. Sinto-me animal em toda esta conjugalidade. Entre entregar-me e asfixiar-me, posso bem dar mais um tempo ao minuto. Posso alimentar-me de amigos distantes, e foder a minha paciência pela noite dentro.

Posso querer morrer porque não sei. E se soubesse morreria, vivendo.
Que adiantam as cores vivas e os espelhos quando se é daltónico sentimental?
Que interessam os momentos lindos se eles não são maravilhosos?
Porque amar o nosso próprio filho se ele partiu para outras aventura, sem nós, sem nos dizer que.

Eu conheci o amor, essa rua mal frequentada, quando estava para sair. Quando a canção já não era repetida pelos meus pulmões, quando as pernas eram já cavacos enervantes, quando o último copo me sabia a saliva de eternidade.
Quatrocentos e dez são os anos que tenho para viver nestes quarenta, talvez menos, que me faltam. E nesses, a civilização do beijo está condenada à dormência dos espaços atafulhados de gente.

Estou atafulhado de mim. Rebento por dentro e nem há espaço cá fora para que desmaie ou cante. As portas que batem e as sirenes que aleijam têm milhares de significados. Nenhum é o meu.

Quero repetir esta canção até que o meu corpo a cante. Até que o meu corpo expluda esta mania de ser popular.

Quero que esta canção seja assim, a minha sentença de vida. Não há paz em se ter paz.

Encosto o rosto ao passeio e espero que tudo passe. Tudo.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Nosferatu-Phantom of the Night

Time is an abyss thousand times deep.


Inspiras a luz da manhã, quente, castanha.
A inversão do abismo é morrer e é Verão.
(caveiras)
Bonequinhas de pano que são carne dissecada
E botinhas e boquinhas ocre.
Os olhos perderam-se no barro dos dias.

És um “fantasma da noite”: sem o sangue, a loucura e o riso.
As mãos em oração abraçam a morte.
O alemão sempre foi cantado no negro, negro sobre o negro.
Leis da natureza: o amor.
Ela, o branco, sobre o branco.

“Lobos, bandidos e fantasmas”.
A rir. A rir e a perder sangue, a rir. A rir e a suar.
“You’re working too much. It’s nothing. It’s just swimming in the air.”
Cavalgas o tempo para trás no limite do que pode acontecer.
E há abismos, como nunca envelhecer.

Artifício na câmara, no setting, no movimento flutuante;
Relação com a natureza partida pelo deslumbramento,
que se ofusca na máscara da ficção, do mudo.
Na alma de caçador, a canção dos filhos da noite.
Numa casa branca, sem os cantos da moralidade
um Hino de alegria desafinada.
E se depois acordássemos às centenas numa camisa-de-forças?

A minha sombra mancha os edifícios, as ruas, quem me adorar merece morrer.
O riso da demência, uma vez mais, na poluição do pensamento.
O amor, o amor que nem a Deus concede é miserável antídoto para a eternidade.
A morte e a dança dos falsos felizes: o rato, o estrume.
A morte , essa desconhecida da carne,
a ciência que envelhece numa cadeira de braços.
A dança dos falsos felizes é sempre a última ceia dos condenados.

A peste ou a sombra a carregar os seus corpos.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Green Wars



Em 1999, Scott Smith ia vencendo um Oscar de melhor argumento adaptado pela tradução, para o grande ecrã, do seu próprio romance “A Simple Plan”. A tradução portuguesa do título do filme ofuscou a simplicidade do original ficando-se apenas por “O Plano”. Omissão nada oportuna, uma vez que era a linearidade das escolhas de Billy Bob Thorton e companhia, e sua escalada em algo cada vez mais impossível de atingir, que gizaram o sucesso da obra. Um percurso discreto de “como fazer do fácil difícil”, portanto. Quase uma década depois, o processo repete-se: Smith escreve um romance entre o thriller e o terror e adapta-o ele próprio ao cinema. Porém, no resultado, “The Ruins”, não há um plano delineado de início. As personagens aceitam colocar-se numa posição de incerteza por um instinto de aventura e, quando colocadas em situação de perigo, voltam a reagir por instinto, desta feita, de sobrevivência. Mas a essência mantém-se. Porque a natureza humana dita que, quer a partir de um simples plano, quer lutando pela sobrevivência, acções simples, quando geradas sob tensão, possam derivar em verdadeiras escaladas de irrazoabilidade. Ora, “The Ruins” é um filme sobre essa irrazoabilidade e os cenários hediondos que esta pode produzir.

É neste plano que se opera a primeira das operações de cosmética de “The Ruins”, que o metamorfoseam numa obra de terror divergente da habitual estrutura formular. Na sua primeira vintena de minutos, Jeff (Jonathan Tucker) e Amy (Jena Malone), Eric (Shawn Ashmore) e Stacy (Laura Ramsey), dois casais de jovens de uma beleza inusitada (parece haver no universo em questão uma predilecção pela destruição da beleza) são atraídos, no final de umas férias exóticas (até então o exotismo tinha com degré máximo o resort turístico mexicano), para um templo secreto. Desde os dilemas das personagens (Jeff, por exemplo está prestes a separar-se da namorada para estudar medicina), passando pelo discurso abstruso (“Four americans on vacation don`t just disappear!”), até à típica atitude de “dollar solving every problem”, tudo parece construir uma visão “americanocêntrica” de terror xenófobo, muito em voga (“Turistas”, “Hostel”). No entanto, Smith, o realizador, e Smith, o autor, souberam divergir. O primeiro na forma como contorna a superficialidade inicial e transforma “The Ruins” num estudo de personagens em tensão, onde, com a ajuda de uma inegável base literária na gestão dramática de algumas cenas e dialógos, dá-nos, senão uma noção de identificação, pelo menos a ideia de que há pessoas em stress debaixo das respectivas caricaturas. O investimento emocional no background das personagens é substituído pela dor autêntica. O segundo diverge na forma como desloca essa estrutura perigosa do horror com origem no outro “geográfico” (ainda assim, dispensável, os bonecos mexicanos com armas em punho a rodear o templo), para uma ameaça biológica que acaba por funcionar como marca do filme. São as plantas no templo a origem da quarentena e progressiva contaminação dos jovens.

Pode, como se fez com “The Happening”, de Night Shyamalan, situar essa ameaça ecológica num aviso do planeta à acção humana, aqui claramente com contornos de reprimenda de uma terra ante a exploração e ignorância de representantes de uma outra. Mas essa dimensão sígnica não ofusca o que é chave no ataque de plantas a seres humanos: o silêncio, a inexplicabilidade do mal. Essa inexplicabilidade, que permite a construção do universo maligno ex machina, como algo opaco, sem falhas (não há planos para o derrotar, pois não há pontos fracos), permite deixar o hipotético happy ending ao abrigo da sorte. Tudo se converte num jogo de probabilidades onde, por um lado, há que lidar com uma inquietante mensagem de impassibilidade (faças o que fizeres...), e por outro, a constatação de que esse terror sem rosto ou explicação é o preço a pagar para não cair na moralidade (por exemplo, nos anos 80, os jovens pecadores do sexo, drogas e rock & roll é que pagavam as favas e pagavam-nas consoante um grau crescente de culpa).

Eis-nos, então, chegados à segunda operação de cosmética. A amoralidade de que falávamos, a ameaça invisível que tudo consome e contamina sem ordem aparente, faz deslocar o terror para as reacções dos seres humanos: assim ele está presente nas suas acções, nas aulas práticas forçadas de medicina de Jeff, de um terror que visa evitar o terror maior e derradeiro, a morte. Mas esse epicentro típico do survival terror contribui para outro importante deslocamento: o lado moral existe, ganha é contornos subterrâneos, ora de gozo, ora de sub-leitura delirante. O primeiro, já aqui adiantámos quando falávamos da reacção biológica do “local” contra o “preconceituoso” (é a própria Terra quem pune os receosos da globalização). Mas que dizer das parecenças físicas das plantas à pecaminosa marijuana? Ou ainda mais fundo. Que dizer do sémen e da seiva, ambas substâncias de vitalidade “ausentes” mas em oposição? Se a moralidade desistiu do terror, porque é que aqui se aposta no sexo oral? Porque é que o sémen é desaproveitado (o sexo é só oral ou masturbação, em cenas tão inusitadas) e se punem estes actos com o único acto de penetração verdadeira - o das raparigas pelas plantas – com a seiva a tomar o lugar do sémen? “I feel it inside me!”, grita em desespero Stacy.

Desta feita, a primeira longa-metragem de Carter Smith, que os distribuidores americanos não quiseram mostrar aos críticos antes de estrear em sala (receio? marketing? Provavelmente ambos) é uma agradável estreia no campo do terror produzido em estado de necessidade. Darius Khondji, iraniano, director de fotografia de filmes como “Seven”, “Panic Room”, “Delicatessen”, consegue na perfeição dar a cor própria a um sentimento de hopelessness que consome “The Ruins” e quem o vê.

D. Quixote e a Crise


Quem pelo menos tiver visto os anúncios que Clive Owen fez para a BMW sabe que este teria sido, a par do escolhido Daniel Craig, uma interessante escolha para a pele do agente secreto mais famoso do mundo. Quem vir este “The International”, uma espécie de prémio de consolação para Owen, ficará a indagar como seria um 007 assim, de um glamour traumatizado, homem verdadeiramente preocupado com o sucesso da sua façanha.

Quase que bastaria o plano inicial da obra de Tom Tykwer, com o dito olhar transtornado de Owen, para perceber que este seu Louis Salinger, agente de Interpol em luta titânica contra uma gigantesca e tentancular rede conspirativa do qual a alta finança é só uma das pontas do icebergue, para perceber que se trata de um homem fora da sua ficção. Ou por outra, o peso interior da sua personagem aporta a “The International” uma seriedade que o convencionalismo do argumento de Eric Singer não suporta. O mundo é povoado dos lugares comuns dos thrillers de espionagem, desde as falsas identidades, a troca de informações secretas em lugares insuspeitos como parques de estacionamento ou museus, assassinatos encobertos, etc., tudo secundado por uma intriga “internacional”, que sob a ligeireza de tudo poder integrar como sistema opaco (desde bancos, juntas militares, líderes políticos, a máfia), nada desenvolve, generalizando mais um macguffin capitalista. Por isso, pouco importa que este “The International” tenha estreado, por coincidência ou não, em plena crise económica mundial, com a falência de inúmeros bancos.

Mas seria injusto dizer que, se Clive Owen dinamita as possibilidades de “The International” se arvorar a thriller pouco preconceituoso, Tom Tykwer, o seu realizador, não tente tirar partido da sua elegância a lançar ritmos de empolgamento (“Lola Rennt”). Por isso, assistimos a um carrossel, com frequentes paragens e arranques, nos quais as sequências de acção em espaços controlados fazem o filme lançar alguma da tensão que revisita Hitchcock especialista nesses dispositivos (“The Men Who Knew Too Much”, “Sabotage”). Assinale-se, como exemplo, o confronto em pleno museu Guggenheim, durante o qual, o som dos disparos, a interacção com as instalações vídeo a estender o “campo visível” ou a progressiva destruição da criação de Frank Lloyd Wright, (para lá da evidente metáfora artística), rompem momentaneamente o desinteresse. Estas acelerações narrativas que pululam no espaço global e cosmopolita de “The Internacional” (Milão, Nova Iorque, Istambul, Berlim), deixam entrever uma analogia que o cineasta alemão explicitou entre a arquitectura moderna de muitos dos locais onde a acção decorre, num misto de transparências e opacidades, e a dupla natureza das grandes instituições capitalistas em causa, simples no exterior, densas no seu interior. Uma espécie de “diz-me onde moras, dir-te-ei quem és” da espionagem.

Se é a verdade que o filme de Tykwer resiste pela desenquadrada obstinação quixotesca do seu protagonista, transformando o seu conflito contra as ilicitudes do gigante banco europeu IBBC, numa luta ideológica, o certo é que a não concretização do pecado capitalista (“quando eu morrer outros 100 banqueiros como eu estarão desejosos de ocupar o meu lugar”, diz Skarssen, o presidente do IBBC, perto do final) é aproveitada como discutível mensagem de resignação. E então tudo volta ao mesmo. A única diferença é que ao menos poder-se-ia ter aproveitado melhor a “viagem”.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Jogos de Sobrevivência





É um facto. Não parece haver nos últimos anos forma de o cinema brasileiro se exportar, pelo menos desde o boom “Cidade de Deus”, senão através da exploração do seu mundo de pobreza abissal, em que as suas histórias, os seus actores, mascaram um “charmoso” statement terceiro mundista. Ora, essa obsessão não é inédita, nem necessariamente empobrecedora. Cinematografias há que, lidando com o trauma histórico ficcionalizável (veja-se muito do recente cinema palestiniano e mesmo israelita), dele se souberam libertar, politicizando sempre, mas com o cuidado de evitar os sublinhados panfletários e a desambiguação.

Infelizmente, não se passa o mesmo com o Brasil. O seu cinema mais recente tem conquistado visibilidade exterior contando sempre a mesma crónica de miserabilismo sobre um país com profunda desigualdade de classes, miséria e violência extremas. Curioso é que Walter Salles (“Central do Brasil”, “Diários de Motocicleta”), cineasta sem vícios reconhecíveis, ao entroncar-se nessa tendência com este “Linha de Passe”, filme nomeado à palma de ouro em Cannes no ano transacto, se apoderou de outros esquemas, mais ou menos reconhecíveis e eficazes.

Por um lado, a temática do fresco familiar com propósitos de denúncia social, conhece a clara influência do documentarismo do irmão, João Salles. Mas se João trabalha em pleno na “dobragem” do real, Walter, lança mão de uma estratégia de ficcionalização do mesmo. Por exemplo, uma das personagens de “Linha de Passe”, o pequeno Reginaldo, que procura obsessivamente conhecer o seu pai, pega a dado momento num autocarro e parte nele em busca do progenitor. Nesse episódio, retirado de um fait divers que apaixonou a opinião pública brasileira, é possível ver a clara intenção de usar essa veridicidade para fortalecer o activismo da mensagem. E há outros dispositivos naturalistas à vista: a utilização da câmara à mão, o cast de actores amadores, a improvisação como método preferencial. Porém, o que ressai de todas estas manobras de aproximação ao realismo documental é um esforço inglório, contrasensual mesmo, uma vez que as situações, as personagens, todas elas, são embrulhos para ideias maneirinhas e toda a obra acaba por se afirmar como explosão metafórica mais ou menos óbvia (veja-se a metáfora do lavatório entupido) sobre o social brasileiro que urge modificar.

Para esse excesso metafórico contribui indelevelmente uma ideia de montagem que procede linearmente por uma acção/uma ideia (esta última de cariz abstracto, pronta a ser veiculada). Isto além das suas preocupações quase obsessivas de alternar e ligar emocionalmente universos semi-distantes (preocupações essas provindas de filmes como “Babel” de Alejandro González Iñarritu, ou “Crash”, de Paul Haggis). O efeito é simples, o menosprezo enorme.

O mais interessante é que essa montagem de “associação ditatorial” é o cimento que mantem unidas as personagens de “Linha de Passe”: a mãe, que espera um quinto filho e que teme perder o emprego de empregada de limpeza devido a essa gravidez; e os seus quatro filhos, cada um jogando individualmente o jogo da sobrevivência, procurando na religião, no futebol, na delinquência e no modelo paternal, estratégias de consolo.

Se o futebol é um jogo de colectivo, onde “quem não passa a bola, está fora” (como se diz no início), a lei do asfalto é bem diferente. Essa coloca os indivíduos das classes baixas brasileiras, num estado de alerta urbano único. Por isso, todas as personagens de “Linha de Passe” passam o tempo todo a tentar desencantar as tais linhas de passe, sendo que parece não existir ninguém em posição de jogar com eles.

O problema é que esse individualismo desesperado, esse estado de alerta, se ameaça tornar bilhete postal de uma arte brasileira, a par do futebol ou do samba, pelo menos, enquanto o seu cinema continuar a “distribuir jogo” desta maneira....

domingo, 12 de abril de 2009

O Alienista, 1882 (PAPÉIS AVULSOS)


“Positivamente o terror”.


Só depois de ler os dois romances mais conhecidos de Machado de Assis surgiu a ideia iluminada de escrever a proprósito do brasileiro. A “culpa” é da sua função contista e daquele que provavelmente é considerado o seu melhor exercício: “O Alienista”.

Extraordinária é, desde logo, a sua mutação estilística, que faz de Machado de Assis escritor igualmente culto mas menos histriónico. A revelação da loquacidade exibida em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” é eficaz, surpreendente, mas com prazo de validade mais ou menos preciso. Ora, em “O Alienista” essa neutralidade, essa ausência de um narrador forte, “engraçadisso”, faz sair para primeiro plano uma reflexão fascinante, modé, sobre a loucura como nova malaise, assente numa estratégia de aparente contaminação (como uma peste, ou uma cegueira progressiva).

Em Itaguaí, pequena cidade brasileira, o dr. Simão Bacamarte é um médico que pede a construção de um asilo, “a casa verde”, para assim colocar em local apropriado de estudo os loucos da zona. Tudo com intuito científico. Mas Simão, imune ao amor de D. Evarista, começa obsessivamente a mandar internar qualquer pessoa da cidade que possua sinais da dita “loucura”. Loucura é, no entender do médico, qualquer manifestação de bizarria, diferença. A dado momento, “o alienista”, assim é designado Simão, parece instrumentalizar a ciência como sinal de domínio político, naquele que se assemelha a um banal trajecto de um tirano. É pelo menos essa a leitura da cidade, quando liderada é a sua revolta pelo barbeiro. Este sim instrumentaliza a insurreição para ganhar o controlo da cidade. A animização do sentimento de revolta é usada para obter poder: uma vez atingido este, há uma tranquilidade que é sinal de falsa simpatia, de falsa segurança, mas que pode ser também o gérmen da sua “queda”. É o que acontece quando a revolta do barbeiro é substituída por outra revolta e logo derrubada. A política, o poder, não são puros, ao contrário da ciência lunática de Simão, e por isso, estão condenados a sucederem-se de forma vazia.

O grano de salis é que é só quando o poder governamental instituído repõe a ordem na cidade e Simão Bacamarte coloca a própria mulher no asilo, que este dá ordens para libertar todos os “loucos”, os contestatários das suas ideias. Porém, mantém-se a dúvida: o alienista é louco pela pureza com que leva as suas ideias? Ou é louco pelo equilíbrio, que entretanto se formou em torno da sua personalidade, equilíbrio quase ficcional, por medo, criado pela sociedade? Ou equilíbrio porque tudo à sua volta se modifica e só a certeza da definição de loucura, em toda a sua obstinação, se mantém sã?

Mimando a forma de ver a loucura ao longo dos séculos, também o alienista constata que o louco não é o que age de forma diferente mas aquele que é demasiado igual: loucos são os sãos (Freud). E por isso, apenas os demasiado justos, ponderados, coerentes, conhecem agora a “casa verde”. Os juízes, o vereador razoável que se opunha à irrazoabilidade da lei (que excluía os políticos desta nova definição de loucura), todos estes, são os novos loucos. Ironia máxima é que, “preso por ter cão, preso por não ter”, e o barbeiro que agora se recusava a encetar nova revolução contra o alienista, porque dizia, a “câmara tinha autorizado a sua nova experiência por um ano” e que confessava que o seu móbil da primeira vez tinha sido exclusivamente a ambição, será, segundo a nova visão, o demente, e então, de imediato, aprisionado.

Como nas grandes façanhas e investigações, a grande sabedoria reconhece a importância do pequeno passo, do papel da natureza, e Simão encontra maneira de colocar os novos loucos em posições em que a natureza e/ou sociedade os corromperia, os tornaria um pouco menos razoáveis e inatacáveis, os “curaria” em suma.
Seja esta ideia uma grande invenção da inteligência do “alienista” ou o decorrer normal da natureza, o certo é que este concluiu que não existiam, na realidade, loucos em Itaguaí. Ou melhor, se algum louco haveria - pelo menos as qualidades, atestavam-nas a sociedade, que o eregia como homem de bem e honra inestimável - era ele. Por isso, Simão Bacamarte se encerra na sua “casa verde” e lá, louco ou são, ou ambos, morre.

Machado de Assis sugere que é preciso grande dose de loucura para reflectir razoavelmente sobre a demência humana. E que esta, consoante as circunstâncias sociais, políticas, históricas, pode colocar-se a sel bel prazer onde quisermos. Como a religião, a ciência, tem tanto de ficcional, como factual. Cabe à imaginação, e sobretudo à ambição humanas, ir gerindo fronteiras e barreiras. No fundo, não há cimento, construções, palavras, conceitos, atitudes, que separem o racional do irracional, a sanidade da demência. E ainda bem.

sábado, 4 de abril de 2009

Vredens Dag (Day of Wrath) -Carl Dreyer


“Meu Deus, a vida que os homens levam!”

Após o fracasso comercial de Vampyr, Carl Dreyer teria de esperar onze anos para voltar às longas-metragens. Vredens Dag, adaptação de uma peça de Hans Wiers-Jenssen continua o périplo pela representação de mulheres fortes e obstinadas da galeria do dinamarquês. Ficou famosa na história a trilogia (não assumida, entenda-se) composta por esta obra, La Passion e Gertrud. Como nestas, a heroína é uma jovem que vê o seu amor ameaçado pelas normas de uma sociedade patriarcal obtusa que as julga e em última instância as condena. Amor no caso físico contraposto ao amor espiritual em Jeanne e intelectual em Gertrud.
Anne é uma jovem que está casada com um Reverendo bastante mais velho e pelo qual não nutre o menor afecto. Além da frustração erótica tem de lidar com a concorrência da mãe do marido, símbolo de uma religiosidade castradora. Quando Martin, o filho do Reverendo chega, confirma-se o pré-anunciado escândalo: o envolvimento dos dois. Dreyer desde o início que não se preocupa em filmar a tragédia que daí advém mas sim em ensaiar motivos para a sua confirmação.
Sobre esses motivos não é possível esconder que se estava a fazer cinema num país ocupado pela Alemanha nazi. Desta forma, a força do mal, ou antes do desvio, parece encontrar-se num herdado poder místico da protagonista (a sua mãe tinha sido perdoada por actos de bruxaria pelo Reverendo) ou na maldição que Marthe, uma velha bruxa, lança sobre o casal no momento da morte na fogueira. Mas o que na realidade parece existir é um certo desvio em relação à causa da condenação do próprio desvio. Por outras palavras, Dreyer sabe utilizar o misticismo como um acessório para falar do que realmente interessa- a ignorância do ser humano.
Vredens Dag apenas é sobre corpos que querem amar, que têm medo de morrer, que querem ceder a impulsos e não ameaças. É esse o sentido da confissão final de Anne: um acto de libertação quando o seu amante vergado ante o peso do “pecado” a abandona. Uma mulher triste que não teve espaço para ser feliz.
Desta forma, o olhar “puro inocente e claro” de Anne, mais do que carregar um erotismo fechado, alicerça a menos espiritual das obras de Dreyer. Por isso, quando Anne se convence que ela própria pode ser uma bruxa a sua ruptura representativa é tão teatral. Por isso, a figura de Marthe é a menos complexada, aquela cuja tortura e morte mais nos impressiona e por isso aquela que mais claramente permite ver um dedo apontado ao jugo nazi. Marthe apenas tem medo de morrer não se interessando sobre se vai encontrar Deus ou o Diabo quando partir.
Apesar da intemporalidade da cólera humana retratada são curiosamente os elementos mais exteriores ao enredo que fizeram o sucesso de Vredens Dag. Falamos do cenário em que decorre e sobretudo da luz que percorre todo o filme numa homenagem à pintura flamenca. As sombras muito marcadas permitem enclausurar o espaço de Anne e sobretudo afirmam-se como marcas de expressão das personagens, numa continuação exterior do seu rigor representativo.
Estilisticamente Vredens Dag afasta-se do grande plano de Jeanne D’Arc. Procura antes a montagem alternada e a estrutura episodal como em algumas das suas obras menos vistas – Blad Af Satans Bog ou Die Gezeicheneten. Veja-se o episódio cruel de Marthe que parece ser uma antecâmara da intriga principal ou a sequência dos jovens amantes do campo alternada com a morte do velho Laurentius.

terça-feira, 31 de março de 2009

No início era a "palavra"


Tinha quarenta e poucos anos Carl Dreyer quando terminou Vampyr, um dos mais espectaculares falhanços comerciais da sua carreira. Além do conhecido interregno na realização de longas-metragens, outros dois factos são assinaláveis. O cineasta começou, mais ou menos a partir desse momento, a conceber um projecto sobre a vida de Jesus Cristo judeu, ideia que nunca viria a concretizar. Depois, em 1932, Dreyer assistiria à peça “A Palavra”, do pastor e dramaturgo Kaj Munk. Consta que terá ficado entusiasmadíssimo, pensando de imediato numa adaptação cinematográfica da mesma. No entanto também passariam cerca de vinte anos antes que Ordet fosse uma realidade. E viria a sê-lo curiosamente com um retumbante sucesso. E sublinhamos o curiosamente pois apesar de se tratar de uma obra-prima absoluta da história do cinema e certamente monumento paradigmático do cinema do dinamarquês, trata-se de uma obra densa, de ritmo difícil, diga-se, muito pouco à medida do grande público, mesmo pelos padrões menos “contaminados” de então.
Então o que terá explicado este fascínio? Certamente não será alheio o facto de se tratar de uma obra que aos olhos do público consagrava o inegável talento de um artista como Dreyer, talento que havia mostrado ao longo dos anos. Mas parece-nos que decisivo terá sido mesmo o facto de Ordet não ser de um idealismo intransigente como o tinham sido de certa maneira Vredens Dag ou La Passion. Lembre-se que ambas as suas protagonistas sucumbem ante a “pressão” da sociedade pela afirmação de um ideal. Um idealismo com tradução prática: os finais sempre elevados mas “em abismo”. Pela primeira vez, Dreyer reflectia sobre o seu “tema”- a relação entre a fé espiritual e o carne desses mesmo fiéis- mas agora numa perspectiva de síntese, de conciliação dos dois universos. O resultado teria implicações práticas ao nível da recepção dos espectadores: a ambiência desta dualidade numa recusa do sobrenatural e o apoio num consequente realismo (no qual todos os seus personagens se movem), seriam factor de familiaridade decisiva para as pessoas. E ainda um feito estraordinário: pela primeira vez, um filme dito “sério” do circunspecto dinamarquês, que terminava de forma esperançosa, com um milagre (e o risco, por um lado, e a audácia, por outro, que seria mostrar um milagre às pessoas; recorde-se a polémica com as sequências de Jesus Cristo em Blade Af Satans Bog).
Mas retome-se a discussão sobre o hiato entre a ideia de Ordet e a sua consumação. Uma vintena de anos, mais concretamente vinte e três, que terão certamente permitido a Dreyer fazer uma obra, diz-se, de maturidade. Exercício vão, mas certamente profíquo do ponto de vista intelectual, seria imaginar a mesma obra feita por um cineasta de quarenta anos. O resultado é impossível de concretizar mas avance-se uma hipótese. Teria Dreyer sabido receber para o seu universo a desconfiança racional do Kierkegaard que muito o influenciara? Teria Carl Dreyer decidido, como o fez, deslocar o centro dramático da peça de Kaj Munk do protagonista Johannes para Inger? Nunca o saberemos. Johannes, o homem que enlouqueceu a ler Kierkegaard e de quem não se sabe se há que ter pena ou não, seria, e é certamente, a personagem mais à medida de Dreyer: um marginalizado, que não abdica. Alguém que encarna (por muito a despropósito que a palavra possa vir) a sua metafísica, o elogio da espiritualidade. Nos seus antípodas está Inger, que representa a “palavra” de Ordet, ou antes a possibilidade que esta encerra: a conciliação entre o mundo espiritual e o corpóreo, o amor etéreo e devorador e o mundo prático dos homens. Inger é religiosa mas não deixa de ser pragmática, não deixa de corporizar a sensualidade de Ordet (tão à flor da pele nos planos “colados” do nascimento do seu filho). Talvez por isso o seu corpo seja o mais débil e também, porque é o único que se dá, sem complexos, sem pejos, aquele que merece ser salvo. Algures entre as “agruras do céu e da terra” estão Mikkel e Maren, e porque não dizê-lo, também o pastor ou o médico, que vivem atormentados, em cheque, entre a razão e a fé.
Assim, Ordet, com a sua Inger, confere a textura e a voluptuosidade que faltavam a Joana D’Arc, a Jesus Cristo, a Anne, que é o mesmo que dizer, ao espiritual das suas obras anteriores. Como se a complexa natureza da fé e do ser humano redundasse nessa síntese quase milagrosa. E outra coisa não faz esta obra de Dreyer senão confirmar em todos os seus capítulos, desde as representações aos movimentos de câmara, essa intromissão do espiritual no corpóreo. Aliás, o milagre final operado, tour de force do cinema de autor no primeiro século de cinema, é uma espécie de introdução na narrativa, na carne do seu naturalismo, na sua lógica causal, de um deus ex-machina. Neste caso antes um “deus “ex-corpo”, o do pobre e louco Johannes, que contendo em si a santidade espiritual, a demostra, a dá (ou antes, a perde) mostrando que os milagres da vida ainda acontecem, mas sobretudo que os da arte também. O milagre artístico é expresso na força da sequência final, num clímax que filma a transcêndência através de um realismo poderoso, inquietante, que recusa o grande plano, que recusa esconder o beijo entre um homem e uma mulher. E é esse beijo lento e sereno entre Ingrid e Morgen, ou antes o seu peso, que nos lembra que estamos ante a ressureição de um corpo. E com ele também o tempo que “estava morto” (planos do pêndulo do relógio parado), volta à vida. Estamos de volta ao cenário final de Vredens Dag, num jogo de inversos. Só que desta vez é de um renascimento, e não de uma morte que Dreyer se ocupa.
É inegável que a obra de Dreyer seja feita de dualidades – veja-se a oposição já citada entre o espiritual e o corpóreo, a religião versus razão (“chame o médico se ele conseguir trazê-la de volta à vida”, diz Borgen com ironia), a sanidade dos descrentes contra a loucura de Johannes ou a “luta” de uma fé contra a outra (corporizada na relação entre o protestante Borgen e o alfaiate cristão). Poderia então pensar-se que o clímax de Ordet funcionaria como a defesa de uma tese, com o anúncio ao mundo que os loucos são os verdadeiros sãos nesta querela espiritual que se encena. No entanto, o desaparecimento de Johannes do qual retorna recuperando a sanidade mental surge-nos antes com contornos de preparação para um sacrifício. Desta forma, o final de “A Palavra”, mais do que um milagre, feito em nome, lembre-se, da filha de Inger (a única que não põe em causa o poder do tio), é antes a perda de uma condição. Como Jesus, Johannes sacrifica a sua condição de ser iluminado e insano pela salvação da sua cunhada e do seu corpo, que o marido admite sentir tanto a falta como do seu espírito...
Dreyer defendeu por várias vezes o paralelismo que existia entre o ser humano e uma obra de arte: ambas possuem corpo e alma, sendo que através do primeiro se exprime o segundo. Ora, se o corpo do cinema é feito de outros corpos, a sua alma está concentrada no estilo. E em nenhuma outra obra, Carl Dreyer exprime tão claramente o alma do seu cinema. O seu olhar, em panorâmicas demoradas e fluídas, parece querer procurar nas situações o invisível, o que ainda lá não está, sob a forma do irrevelável. É nessa espera, nessa tensão nos objectos e nos corpos, que a síntese corpo e alma se constrói. (veja-se a cena de Johannes com a sobrinha ao colo, a revelar-lhe o que poderá fazer). A deambulação precisa e invisível da câmara, sempre em espaços interiores, (estes vistos como locais de indefinição também ela interior), são sinais dessa força de transcendência no espaço que é por excelência o da materialidade – a casa. Já os exteriores, escassos, são locais de mera transição, ou onde domina uma “força” que transcende as personagens (o ponto de vista “sagrado” aquando da procura da Johannes pela sua família).
A austeridade das representações, sinais de um exterior a mostrar um interior, não são novidade de Ordet. Contudo a sua famosa “espiritualidade encarnada”, emparelha-se aqui com a prostração das próprias figuras. Veja-se, uma vez mais, como Dreyer filma o corpo de Inger, como Johannes segura na sobrinha, ou como, à mesa da cozinha, Peter olha a sua amada.
Em suma, o visual e o espiritual em Ordet fundem-se numa ordem do domínio do religioso: como se as suas imagens fossem elas próprias uma questão de fé. Por isso, muitos nelas acreditaram (e talvez não seja outra a chave do sucesso comercial da obra). Outros delas desconfiaram e muito. Recorde-se que estapalavra foi vista, talvez com algum excesso de zelo, como alegoria anti-nazi.