domingo, 31 de maio de 2015

Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia

chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a

é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece

Mário-Henrique Leiria
in Novos Contos do Gin

sábado, 30 de maio de 2015

Sou mãe de um cão

Não sou a melhor pessoa para escrever isto mas porque não há ninguém aqui à mão, cá vai. Tendo eu passado os últimos três meses a tratar de um cão bebé - que irreflectidamente adquiri ao pensar que seria um estágio para aqueles outros de marca humana -, e tendo eu lentamente metamorfoseado-me em mãe solteira de 35 anos que chama o seu cão de "o meu menino" e o leva à rua ao colo mais vezes do que na realidade necessita, tendo eu feito tudo isto deveria ser legalmente impedido, durante um tempo indeterminado, de escrever ou opinar criticamente sobre filmes onde pontuem afáveis canídeos que interfiram com as minhas hormonas maternais de dono.

O cão é o do laço

Devia ser impedido sim... mas como não fui, digo-vos que, além de ter achado o Sivas o melhor filme deste último IndieLisboa, agora a distribuição portuguesa sabendo do meu ponto fraco me estreia um filme húngaro onde o protagonista é um cão ruivo. Além de ser ruivo possui muitas outras qualidades entre as quais suportar o mesmo treino do Rocky, ser perseguido insistentemente por mafiosos que acontece labutarem num canil ou ter de levar com um "sogro" com a sensibilidade de uma espingarda, que o abandona numa espécie de segunda circular lá deles. No final, o realizador Kornél Mundruczó quer compor o triunfo dos porcos em versão cão, e o nosso herói liberta centenas de cães do canil apenas apaziguados ante o talento da dona do ruivo, de súbito tornada trompetista de Hamlin. A coisa excede-se, a metáfora política evidencia-se e o White God do título, espécie de contraponto do White Dog do Fuller, é vítima da uma certa visão romântica e antropomórfica desses seres que adoram cheirar esquinas mal lavadas e lamber orelhas pela manhã.

Entre esta versão um tanto salvífica e a da indagação filosófica do olhar animal (com tradições filosóficas conhecidas Singer-Derrida-Agamben, por exemplo) há uma outra via um tanto indiferente à especificidade e poderes dos animais. Em Timbuktu, de Abderrahmane Sissako (em estreia esta semana), há também essa metáfora dos animais a serem perseguidos (há um antílope que foge em desespero de um grupo de jihadistas logo ao abrir) tal como os humanos nessa cidade que dá nome ao filme. Mas além dessa ideia há galos como símbolos de poder, os burros interrompem jogos de futebol e as vacas, com nome de tecnologia de navegação automóvel, podem condenar um homem à morte. Esta circulação indiferente entre o homem e o animal, que obviamente não esquece uma determinada hierarquia sobretudo motivada por questões de trabalho e subsistência, é talvez a melhor homenagem que o racional pode fazer ao dito irracional. Papel invisível e omnipresente o dos animais nesta história sobre fundamentalismo religioso, e que, caso tivesse um cão entre estes referidos, seria mesmo uma obra-prima. Não o tendo é só um bonito filme, mais eficaz do que a "beleza" da odisseia do nosso pobre amigo ruivo-húngaro de 4 patas.

Mas eu não sou a melhor pessoa para escrever isto. Porque neste momento eu defendo que todos os filmes deviam ter (pelo menos) uma personagem cão. Eu não sou a melhor pessoa para escrever isto até porque neste momento eu já sei em que locais de Lisboa há snacks para cão mais saborosos e mais em conta.

terça-feira, 26 de maio de 2015

"O problema com os computadores é que eles só conseguem dar respostas."
Pablo Picasso

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Übermensch da loja dos trezentos


 Para além do empreendedorismo ter servido à política dos partidinhos para sacudir a água do capote em todo este "roubo à moda antiga", há algo que por vezes fica na sombra. O bom aluno da lição sobre o "bater do punho" (na verdade, ele é o aluno medíocre de cabeça baixa e subserviente, que não sai da literalidade da mensagem e não lê nas entrelinhas) não percebe da obscenidade da sua tarefa. Não percebe que está a ser usado e que está a proclamar um modelo de sucesso que, não sendo o seu mas o de uma ideologia (uma ideologia que não o serve, mas antes dele se serve), proclama o triunfo como um sorriso e um pé sobre a cabeça do outro derrotado, do fraco que aceitou um não. O empreendedor é o Übermensch da loja dos trezentos, que não entende que o sentimento de força que vende como mais um produto de um yoga interior instantâneo, pseudo-revolucionário, é afinal uma máscara de vergonha que carrega, muitas vezes sem compreender que nem o privilégio de classe lhe assistiria a possibilidade de trepar até onde desejaria: um palcozinho não de onde pudesse ver as carecas dos fraquinhos, mas de onde estes o pudessem proclamar como ídolo de barro em tempos de barro.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

AIM 2015 - ISCTE Lisboa


quarta-feira, 20 de maio de 2015

Somos formigas ou somos abelhas?


Mais um artigo extremamente sedutor de Bernard Stiegler ao Le Monde, sobretudo na parte final, em que fala da forma como os intermitentes do espectáculo podem ser o modelo económico de uma nova economia da contribuição. Nesta, os indivíduos seriam ressarcidas pela "polinização económica" em vez do trabalho contínuo de formiga assente em relações contínuas de trabalho, cuja exportação tecnológica faz desaparecer.

Um excerto:

"La grande question à laquelle il va falloir répondre dans les années qui viennent est donc la suivante : comment redistribuer le temps gagné par l’automatisation autrement que sous forme de salaire ? C’est le problème qui est à l’horizon du « revenu d'existence ». Mais il faut aller beaucoup plus loin et parler de « revenu contributif ». Le modèle qui a été inventé pour les intermittents du spectacle est une réponse à ces questions : un artiste ne produit que par intermittences et son travail se fait dans un temps qui n’est pas celui de la production mais de son individuation. Cela aboutit, dans les moments de production, à l’individuation des autres – de son public. C’est pourquoi on a parlé d’intermittence nécessitant un régime spécifique d’allocation chômage."

La valorisation du temps hors production (et la redéfinition de ce que signifie produire), c’est ce qui relève de ce que Yan Moulier Boutang appelle « l’économie pollen ». L’économie contemporaine repose de plus en plus sur une telle « pollinisation ». Le pollen, on le sait bien de nos jours, est ce que les abeilles et autres hyménoptères transportent entre les sexes du règne végétal et qui rend possible la reproduction du vivant dans son ensemble. C’est une telle valeur que produisent les communautés de pairs. Cependant, les systèmes de traçabilité qui se sont installés avec le social engineering ressemblent plus à des fourmilières qu’à des ruches : les internautes qui tracent leurs activités plus ou moins involontairement et inconsciemment sont très comparables à ces fourmis qui émettent des phéromones chimiques et indiquent ainsi et en permanence à toute la fourmilière ce qu’elles font – ce qui permet la régulation de l’ensemble du système et un contrôle quasiment parfait de l’ordre « social » (qui n’a précisément rien de social de ce fait même). La question de l’automatisation est aussi celle-là : abeilles ou fourmis ?


terça-feira, 19 de maio de 2015

É a deseconomia, estúpido!

"L’objet qu'investit le désir est ce que la libido économise. L’objet n'est désiré au point d'inverser les buts des pulsions qui le supportent que parce que, ainsi économisé, c'est à dire retenu, il fait plus qu'exister: il consiste. Et, en cela, il s'infinitise - c'est à dire qu'il excède tout calcul. Telle est aussi la question de l'excès dans l’économie général de Georges Bataille.
La destruction simultanée du désir, de l'investissement dans son objet et de l'expérience de sa consistance a pour conséquence la liquidation de tout attachement et de toute fidélité - c'est à dire aussi de toute confiance, sans laquelle aucune économie n'est possible - et, finalement, de toute croyance, et donc de tout crédit.

Bernard Stiegler in
La Société Automatique 1. L'avenir du Travail, p. 45

segunda-feira, 18 de maio de 2015

34


quinta-feira, 14 de maio de 2015

Force Majeure - Force Mineur

No espaços de curtos dias, outra premissa "e se" aplicado a uma família/casal depois de iraniano Melbourne. E se o teu marido fosse um cobarde? Não escavaco mais a premissa que é mais fina do que isto em Force Majeure. Outra vez o espaço apertado, desta vez a estância de ski "aperta-se" em virtude do sucedido e vemos sobretudo os quartos de hotel, halls e salas de jantar comuns, deixado as montanhas cobertas de neve para um espelho que tenta, em vão, arejar o que vai no interior. Outra vez a grande revelação inicial, da qual Ruben Östlund quer a todo o custo extrair as consequências. Outra vez a sensação de desilusão. Sendo este um argumento bem mais conciso (notam-se menos os buracos, pois o rendilhado não é thrillesco), e sendo a premissa desafiante, o filme trata-a sempre como uma tese mais ou menos abstracta, na qual é difícil "enfiar" as situações dramáticas para lá caberem. Dessa "penetração forçada" da teoria pelos factos da vida, fica a ideia que Force Majeure não controla bem a velocidade, a intensidade, da sua avalanche. Nesse descontrolo, em que os diálogos procuram sempre ilustrar o problema, falta a "força (o tom) menor" de um certo esquecimento do propósito, um alivio que o Verão de Vivaldi, por si só (e já faz muito) não consegue trazer. Fosse este snapshot em Cannes mais inspirador para Östlund e talvez comprássemos melhor a premissa de um filme, nordicamente, trop rigide.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Amazónia

Ontem tocaram à campainha e fui ao intercomunicador.

Eu: quem é?
Intercomunicador: é da casa do sr. Carlos Eduardo?
Eu: sim.
Intercomunicador: é da Amazónia.

Surpreendido, abri a porta ao senhor com a certeza que será uma questão de tempo até chegar a Amazon Amazónia.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Carpenter, eat your heart out

*obrigado ao Ricardo Gonçalves por esta pérola.

domingo, 10 de maio de 2015

Hanekização


Estando eu a experimentar, como já devem ter reparado, um processo de acelerada hanekização da minha corrente sanguínea, maço-vos com duas coisas que me andam a fazer macacos no sótão e que não têm nada a ver entre si. Uma, o espanto por saber que, apesar da exposição da violência se tornar mais e mais num acto conservador quando devíamos estar no campo da transgressão, Funny Games, resiste bem melhor ao tempo do que A Pianista. E eu que julgava o oposto. Duas, quando Haneke decide ser um pouco mais humano e filmar mais gente nos planos e menos pedaços deles (o materialismo bressoniano numa lógica calculista) em O Tempo do Lobo, talvez o mais fraco dos filmes do austríaco, não me sai da cabeça uma double bill com Snowpiercer de Bong Joon-ho. Neste as personagens a viver um pós-apocalipse querem parar o comboio e sair dele, ver o mundo; no filme de Haneke querem parar um comboio para entrar nele. Campo contracampo aparentemente inútil, eu avisei-vos.

sábado, 9 de maio de 2015

Orgulho da Serenidade

Escritas de luz investem pela sombra, mais prodigiosas do que meteoros.
A alta cidade irreconhecível cresce sobre o campo.
Certo da minha vida e da minha morte, olho os ambiciosos e queria

                                                                                        [entendê-los.

O seu dia é ávido como o laço no ar.
A sua noite é a trégua da ira no ferro, rápido ao atacar.
Falam de humanidade.
A minha humanidade está em sentir que somos vozes da mesma penúria.
Falam de pátria.
A minha pátria é um ganido de guitarra, alguns retratos e uma velha

                                                                                               [espada,

a clara prece do salgueiral nos entardeceres.
O tempo está a viver-me.
Mais silencioso do que a minha sombra, cruzo o tropel da sua excitada

                                                                                               [cobiça.

Eles são imprescindíveis, únicos, merecedores do amanhã.
O meu nome é alguém e qualquer um.
Passo com lentidão, como quem vem de tão longe que não espera chegar.


Jorge Luis Borges
 (trad. Fernando Pinto do Amaral)

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Home alone




E na origem do mal temos...

Benny's Video

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Notas sobre o indielisboa e sobre fístulas anais

Tendo este ano integrado com o João Miranda (C7nema) e com o Carlos Nogueira (Cinéfilo Invertebrado) o recente Júri Blogues de Cinema do Indielisboa e tendo visto toda a competição internacional, não podia deixar de vir aqui arrotar umas quantas postas de pescada sobre o rol de filmes a concurso. A votação foi mais ou menos renhida, divertimo-nos muito à base de papelinhos, trunfos, vetos, bifes com molho (estamos a uma lagosta do FIPRESCI) e no final ficamos todos na mesma: barriga muito cheia, ódios e raivas por filmes particulares e a pena de que os prémios sejam sobretudo consensos. (Um dia destes farei o elogio da ditadura no mesmo post em que explicar ao João Miguel Tavares que as fístulas anais não são probabilisticamente casos de homossexualidade. Deve ter tido apenas métodos quantitativos no secundário.)

Assim sendo:



Aferim!
Radu Jude, Roménia, Bulgária, República Checa, Ficção, 2015, 108’


Bring me the balls of Alfredo Garcia. O filme vencedor dos vencedores. O romeno que continua a agradecer os prémios por skype, devia ter ganho há uns anos com Everybody in Our Family mas ganhou agora. Filme menos tenso, mais problematizador do passado novecentista romeno e dos tomates de um pobre escravo e de uma rainha adúltera. Jude filma a preto e branco a passagem à idade adulta de um miúdo que não faz outra coisa do que "varrer" com o pai os planos da esquerda para a direita (ou vicerversa; ou varre-os o realizador com panorâmicas) numa história de procura e de passagem. A técnica mima o conteúdo e as personagens de Voltaire a Cervantes, teatralizam convenções de um western tornado eastern (como escreveu o outro Carlos quando demos o prémio). É uma escolha algo conservadora, admito-o, mas ver Aferim! e depois outros dos filmes em competição é como ver uma consistente equipa do meio da tabela da primeira liga jogar contra uma equipa da segunda divisão. 



Christmas, Again
Charles Poekel, EUA, Ficção, 2014, 80’


Pertence à mesma família indie do filme de Ross Perry mas  tem a vantagem de ser mais subtil, de se levar menos a sério. Poekel quis filmar no Natal um vendedor de árvores e contar como este está tão triste e só numa época de alegria e afecto, devido a um desgosto de amor. E a primeira vez que ele volta a encontrar alguém,  uma bela e jovem rapariga-cinderela desmaiada num banco de jardim, sabemos logo que vão enrodilhar-se. Mas Poekel não vai com sede ao pote e disfarça bem que está a filmar um boy loses girl, boy meets girl. Muitos tempos de observação com cenas filmadas no escuro e iluminadas pelas luzes de Natal, muitos clientes atendidos, a sugestão do que significaria para aquele rapaz ficar naquele trailer para sempre (é este um dilema da juventude, como passar a fazer coisas com consequência, aqui muito mais encriptado do que noutros filmes em que se culpam as crises e os charros). Claro, depois é uma fórmula (o indie faleceu, sabemos, para integrar o centro) com a folhinha de chá como símbolo de uma mini-árvore de Natal que se "abre"  no interior do protagonista. Há beijinho, música melosa q.b. e tá feito.



Ela Volta na Quinta/She Comes Back on Thursday
André Novais Oliveira, Brasil, Ficção, Documentário, 2014, 107’


Este é um dos filmes que mais gostei e que está mesmo a pedi-las para ser premiado algures. André Novais chama a sua família para filmar um "slice of life", da sua vida. O ritmo é lentinho, os irmãos veem youtubes, a mãe prestes a deixar o marido dança com ele ao som de Roberto Carlos, o irmão mais velho quer ter um filho mas não há condições para tal, o trabalho é horrível, a mãe diz-lhe que ele vai conseguir realizar os seus sonhos num longo monólogo deitada na cama. Embora tenha algum sentido de humor, o melhor de Ela Volta na Quinta é que André sabe que não pode pedir certas coisas (gestos, diálogos) aos seus familiares. E quando estes lho dão, rebenta a parede naturalista e irrompe a teatralidade. André deixa a coisa correr e é essa noção de filme caseiro e híbrido o que permite falar de Minas Gerais e das vidas dos seus habitantes sob o prisma do que acontece de facto e do que poderia acontecer mesmo assim...



Güeros
Alonso Ruiz Palacios, México, Ficção, 2014, 106’


Primeira obra com tudo o que isso implica. Um deslumbre da juventude que, como as crianças que andam de metro pela primeira vez, tudo querem ver, experimentar, tocar, maravilhadas. Farpas ao cinema mexicano, efeitos sonoros hiperbolizados, preto e branco porque é o contrário da cor, referências meta, ímpeto revolucionário, câmaras irrequietas. Güeros é um pouco como apanhar com um daqueles balões de água que vemos no primeiro plano. Molha-nos e isso ora refresca ora irrita mas tudo logo passa. O excitante na carreira de Palacios deve vir a seguir, presumo.



Koza/Goat
Ivan Ostrochovský, Eslováquia, República Checa, Ficção, 2015, 75’


Demos-lhe uma menção honrosa talvez mais por ser um filme que não irritou ninguém particularmente. Versão povera do Rocky, humor kaurismakiano e um certo lado religioso. Um ex-campeão olímpico de boxe que agora tenta ganhar a vida. Farta-se de levar bordoada, é enganado e tratado como um cão pelo seu agente e prossegue numa via sacra a fim de ganhar uns dinheiritos e consequentemente impedir a sua esposa de abortar do seu segundo filho.



Listen Up Philip
Alex Ross Perry, EUA, Ficção, 2014, 108’


Não consigo gostar do filminho. Nem é pelo que não consegue fazer, é por tentar fazê-lo de forma afectadíssima. Alex Ross Perry que idolatra Cassavetes e Woody Allen, não pára de os emular sendo que o que tem para lá meter nesse exercício parece um pretexto. Ora está a falar de si e das suas ambições literárias (via o seu alter-ego Jason Schwartzman) e a colar-se ao lugar comum do escritor pessoa intratável com dilemas tão profundos que a humanidade o odeia, ora está a falar dos seus devaneios amorosos e do pega não pega de uma fotógrafa aqui, uma professora com lábios fininhos ali. Demasiado onanista, parece não haver filme para lá da pessoa de Ross Perry e da sua escrita ensimesmada.



Melbourne
Nima Javidi, Irão, Ficção, 2014, 93’


Ainda me pergunto hoje, numa competição de qualidade bem razoável, o que fazia aqui neste grupo Melbourne. Não querendo acreditar na tese das quotas para o Irão resta-me falar do seu falhanço. O que passou pela cabeça de Javidi escrever uma premissa hitchcockiana e resolvê-la como Rohmer o faria? Javidi trata a escalada da tensão como uma coisa abstracta (o apartamento daquele casal tem mais visitas que as urgências do Santa Maria, mas nem por isso sentimos a cada visita mais tensão) e depois os constantes telemóveis, skipes, campainhas, só irritam pois vamos perdendo o interesse. É um daqueles raros filmes em que se pode dizer que podemos deitar fora o bebé com a água do banho.



Ming of Harlem: Twenty One Storeys in the Air
Phillip Warnell, Reino Unido, Bélgica, EUA, Documentário, 2014, 71’ 


Phillip Warnell realizou o filme mais ousado deste grupo. Citar Derrida e a poesia de Nancy para se inscrever na questão filosófica do olhar animal é um gesto imponente. Ao contrário do que tinha feito em 2012 Denis Côté com Bestiaire, que assumia esse lado experimental, aqui os planos do tigre e do jacaré enclausurados no apartamento de Antoine Yates são mediados por um olhar "menos animal", mais documental, onde a história deste excêntrico-louco-visionário se conta. A maioria das vezes a centralidade da voz off, os planos pose nas ruas, a câmara montada no carro que o leva deixam revelar que este é o momento mais certinho de Ming e que Warnell não tem imagens suficientes para nele se colocar (ou se tem, não possui o interesse para tal). Conceptualizar Harlem como um jardim zoológico, a própria cidade já como uma selva, a fronteira entre o amor pelos animais e o seu bem estar. Todas estas são ideias que ficam um pouco inexploradas pelo facto de Ming não conseguir nunca ser um filme verdadeiramente selvagem na sua intuição. Pena.




Quand je ne dors pas
Tommy Weber, França, Ficção, 2014, 80’


Como escreveu, e bem, o João Lameira, o filme de Weber é uma versão française do After Hours do Scorsese. Um jovenzinho que precisa de arranjar dinheiro durante uma madrugada para poder apanhar o comboio e ir ver o mar. Neste trajecto vende erva, suspira por meninas em festas privadas nas quais penetra (é a única coisa que penetra), tem sorte ao jogo e vai andado qual flâneur por uma noite de Paris, filmada a preto e branco. Se Listen Up Philip pode dizer algo mais a quem vive a realidade intelectual nova iorquina, o mesmo acontece com este passeio e a cultura romântica francesa e especialmente aos habitantes da cidade da luz. Antoine é Antoine Doinel claro, a ida à praia é a de Les 400 Coups e o motor anímico o da nouvelle vague e seu deslumbramento entre o burlesco e o romântico das possibilidades que a cidade encerra. Algo novo, talvez as lágrimas do mesmo Antoine que deixam pensar numa carga mais negra que pudesse ser acrescentada contemporaneamente a uma certa pose optimista dessa época da história do cinema.


Sivas
Kaan Mujdeci, Turquia, Alemanha, Ficção, 2014, 97’


Sivas era o melhor filme em competição do festival. Herdeiro da trilogia de Apu ou da caminhada para provar a amizade do menino pelo seu companheiro de escola em Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1988) de Kiarostami, o filme de Mujdeci quer acompanhar essa passagem à idade adulta. A "lição" é metaforizada por uma peça de escola na qual Aslam, 11 anos e sobrancelhas-olhar de adulto, vai participar. Fica triste pois queria fazer de príncipe mas cabe-lhe apenas o papel de um dos sete anões. Mas cada um tem o seu papel no mundo, é o que lhe diz o pai a propósito do seu cão, a quem quer impedir de voltar a combater com outros cães apesar de se ter tornado campeão. Algumas das elipses de Sivas são tão ousadas que correm o risco de se confundir com inépcia narrativa. Mas esse ousado é o que resulta da necessidade de expor que o crescimento é essa contradição, a todo o tempo, entre o que se quer e o que acontece, entre dizer uma coisa e fazer outra. As imagens das lutas de cães espectacularizam um tanto a violência (com o sangue, os dentes, o som do rosnar) mas esta contribui apenas para voltar a essa indecisão entre uma criança adulta ou um adulto-criança, entre o sentir-se chocado/revoltado e o ter força para aceitar o caminho que o espera. Sivas está sempre a percorrer esse trilho entre a crueza e o delicodoce da infância e por isso resulta tão forte, porque tão-entre-decisões implacáveis.


Une jeunesse Allemande/A German Youth
Jean-Gabriel Périot, França, Suíça, Alemanha, Documentário, 2015, 93’


Sendo eu de esquerda, tenho de ser um tanto brutal com Une jeunesse Allemande. Há qualquer coisa de fraudulento nos discursos sobre o filme de Périot. Quer dizer, não há voz off do realizador nem qualquer outra intervenção visível ou audível além da escolha do material que usou e da montagem que daí fez. Tudo muito certo. Ousado? Nem por isso. Aliás o documentário fly on the wall não faz outra coisa. Outro caminho para pôr o filme nos píncaros é essa veia política que tenta desenterrar o grupo Baader-Meinhof e com ele um certo filme activista. Se por um lado não se consegue detectar essa força política de manifesto (antes uma ideia de sedução que cativou o realizador por estas icónicas figuras), por outro, a minha noção de política na arte tem dificuldade em lidar com filmes-punho e valorizá-los por isso. Salas de comício são salas de comício, salas de cinema são salas de cinema. O mais interessante apesar de tudo é esse problematizar mais genérico de desnorte da juventude alemã pós-guerra, entre a culpa indirecta e o desejo de mudança. Infelizmente o filme rapidamente se afasta dessa premissa mais genérica. Ainda um risco: se se louva esta ausência de participação visível de Périot (que só lá está pelo geist da montagem; não se está sempre assim?) e uma vez que é bem clara a sua visão favorável ao grupo revolucionário, pergunto-me: não será perverso "esconder" uma opinião entre o fluir das imagens de arquivo, podendo esta confundir-se com uma versão "oficial" das coisas?

quarta-feira, 6 de maio de 2015

A única maneira de levarmos isto a cabo é se formos sistemáticos...


Ainda ontem assistia a um apresentação onde se abordava o entusiasmo benjaminiano por essa nova atitude definidora do espírito modernista que é o coleccionismo. Hoje assisto, pouco incrédulo, à sistemática e categórica destruição da memória em Der siebent Kontinent do Michael Haneke. Entre o livro das passagens do primeiro e o filme do segundo só vão escassos 50 anos...

terça-feira, 5 de maio de 2015

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Hoje às 22

http://indielisboa.com/filme/sivas/