terça-feira, 29 de novembro de 2011

La Piel que Habito - Pedro Almodóvar


Começando com uma evidente metáfora epidérmica diga-se que Pedro Almodóvar, que sempre foi fã das peles extravagantes com que vestiu o kitsch do cinema espanhol na década de 80 e 90, não veste com naturalidade esta pele: a do thriller negro. E isto porque há uma sensibilidade ao drama, que busca o trágico e o adorna de peripécias rocambolescas (que começou a despontar há já vários anos, pelo menos deste TODO SOBRE MI MADRE) e que insiste em povoar o universo do romance TARANTULA, de Thierry Jonquet, da qual parte LA PIEL QUE HABITO. Desta forma, em lugar de acarinhar o mistério que encerra a relação das duas personagens principais, um louco cirurgião plástico (Antonio Banderas) e a sua cobaia (Elena Anaya) para experiências que comprometem os limites da bioética científica, prefere explorar os habituais traumas do passado familiar, conflitos de género e dramas finais de reencontro. E desta feita o que começa por ser um corpo estranho, despedaçado, no mundo almodovariano - tocando o universo temático de LES YEUX SANS VISAGE, de George Franju, fundindo, ou inserindo, o mito de Frankenstein no centro das problemáticas contemporâneas dos gender studies - acaba por introduzir todos estes elementos numa sensibilidade reconhecida e reconhecível que desde MALA EDUCATION, se vem recriando, cada vez com menos sucesso. Volta a haver números musicais quentes, exóticos q. b. (desta feita é Concha Buika, a cantora espanhola vencedora de um Grammy em 2008 com o álbum Niña de Fuego), décors e roupas de bom gosto e um sistema de analepses que enerva mais do que é eficaz. Contudo, tudo isto não faz mais do que tentar criar um todo desconjuntado, plasticamente apelativo, mas sem capacidade de criar algo novo, vivo em todas as suas partes. Ainda como Frankenstein… Digamos que Almodóvar está transformado num bonacheirão arty, demasiado ocupado com as coisas belas e sofisticadas da vida para escavar com imprudência o mundo destes loucos e assassinos que aqui simplesmente aflora. No genérico, Almodóvar agradece a Louise Bourgeois...

domingo, 27 de novembro de 2011

Grelha de Televisão

«Imagine que era, por 24 horas, responsável pela programação de um canal nacional de televisão. Usando os seus plenos poderes programe uma emissão a seu gosto do meio-dia às duas horas da madrugada.

O esforço sobre-humano que é preciso fazer para imaginar uma coisa dessas! Bom, mas fazendo-o, e conseguindo-o, primeiro é preciso definir o dia da semana. Suponhamos que é domingo (talvez de Agosto, talvez escaldante):

12:00, Televendas
Em directo dos "stands" da Feira Popular de Lisboa
12:40, Carros, Detergentes, Tampões e Salsichas
Programa de valor acrescentado
13:00, Noticiário
Com as frentes de guerra onde paira a ameaça de paz, e as frentes de paz onde há esperança de guerra
13:50, Detergentes, Tampões, Carros e Salsichas
Programa de valor acrescentado
14:00, Mulheres à beira de Um Ataque de Nervos
O conhecido "western" de P. Almodovar
16:00 Detergentes, Salsichas, Carros e Tampões
Programa de valor acrescentado
16:10, A Entrevista da Semana
Entrevista política com um dirigente desportivo
17:00, Tampões, Salsichas, Carros e Detergentes
Programa de valor acrescentado
17:10, Desporto
19:50, Salsichas, Tampões, Carros e Detergentes
Programa de valor acrescentado
20:00, Notícias
Com uma entrevista ao ministro da Administração Interna sobre os resultados desportivos do dia
20:50, Carros, Tampões, Salsichas e Detergentes
Programa de valor acrescentado
21:00, FFF
As flutuações das taxas de desconto, das taxas de referência e das taxas de mercado, por três analistas financeiros.
21:50, Salsichas, Carros, Detergentes e Tampões
Programa de valor acrescentado
 22:00, Dinheiro Não Faz Felicidade
247º episódio
22:50, Tampões, Carros, Salsichas, e Detergentes
Programa de valor acrescentado
23:00, Ganhe um Coelhão com a Coelhinha
Concurso dominical
23:50, Carros, Salsichas, Tampões e Detergentes
Programa de valor acrescentado.»

ALBERTO PIMENTA em entrevista ao Público (1995)








sábado, 26 de novembro de 2011

Melancholia - Lars Von Trier


A partir do momento em que Lars von Trier decidiu transferiu o «negro», a falta de esperança na Humanidade - outrora depositada na Europa do pós-Guerra (EUROPA, THE ELEMENT OF CRIME, EPIDEMIC) – para o universo feminino, houve muita gente que começou lentamente a enervar-se. BREAKING THE WAVES ainda era uma novidade. Ou seja, a sua tortura psicológica, o choro, a violência, eram aplicadas em souplesse à construção de uma personagem interessante balizada por uma assinalável dimensão romanesca: os efeitos de um acidente na tortuosidade de um casamento. Com as suas duas obras seguintes, IDIOTERNE sobre os limites da «idiotice» no interior de cada ser humano, se assim se pode dizer, e DANCER IN THE DARK, sobre uma operária cega que ruma aos EUA em busca de uma vida de sonho, ficou claro para alguns a necessidade que Trier tinha de explorar territórios proibidos. Os seus detractores viram claro a necessidade oportunista de extrair do horror alheio a compaixão do público. Essa atitude sempre Von Trier foi «rato» o suficiente para a ir conseguindo esbater: ora porque os filmes se faziam em estilo dogma, ora porque de repente no interior de uma fábrica toda a gente começava a cantar e a dançar como em Demy. E mesmo DOGVILLE, a via dolorosa de Nicole Kidman, Trier concebeu como tentativa de um cinema brechtiano que, com giz no chão e negros, contrastava com a riqueza de um retrato imperial norte-americano. Houve certamente qualquer coisa que mudou com DOGVILLE e depois com MANDERLAY, o segundo filme da sua trilogia sobre os Estados Unidos como terra das oportunidades. E não é difícil efabular sobre isso. Ora eram os relatos épicos do mau feitio que Trier descarregava sobre as suas protagonistas feministas durante as rodagens que ficavam à beira do esgotamento, ora eram as notícias que falavam de um realizador que caíra em profunda depressão. Como se Trier procurasse em desespero um limite para o sofrimento, para lá do qual outra realidade e sensibilidade pudesse emergir.

 Foi com ANTICHRIST que o flanco se abriu completamente àqueles que sempre preferiram ver nos seus filmes a lágrima útil por detrás do rosto atormentado e o sangue para além da resposta ao trauma. E ANTICHRIST com as suas excisões e ejaculações sangrentas é um filme que estetiza, que cria e se recria opulentamente sobre a dor, ao caso a trauma da perda de um filho, levando a simbologia dessa mesma dor a um extremo que não anda muito longe do puro prazer estético. Um extremo, o que encontrou Lars von Trier, que tem qualquer coisa de risível, mas em igual medida, vasculha uma profundidade na perda. Seja ela de um sonho, de um filho, ou da esperança na Humanidade.


Eis-nos então chegados a MELANCHOLIA neste percurso que converteu Lars von Trier no puro provocador do cinema contemporâneo, naquele que diz sempre o errado na hora mais inoportuna, mas sobretudo aquele que mostra as imagens que no passado já foram destituídas de valor moral pelo percurso do cinema. E bom, festival de Cannes de 2011, elenco de luxo, Kirsten Dunst, Charlotte Gainsbourg, Charlotte Rampling, Kiefer Sutherland, John Hurt, e eis que Trier manda uma «granada» das suas. Em conferência de imprensa quando questionado sobre a sua admiração pela estética nazi, disse que compreendia Hitler e que o conseguia imaginar no final sentado no seu bunker. Que sempre pensara ter raízes judias e que quando descobriu que eram «nazis» também não achou mal. 

Perante isto é impossível separar MELANCHOLIA destas afirmações, com o evento mediático a invadir a obra, tal como tinha acontecido com PASSION OF THE CHRIST e as declarações anti-semitas de Mel Gibson, também em Cannes uns anos antes. Mas ganhará o filme ao ser visto à luz de uma suposta estética nazi? Bom, o seu início é com Wagner, na sua entrada em slow motion operático como já tinha acontecido com ANTICHRIST. E de resto? De resto nem por isso. É desta feita Kirsten Dunst que entra no universo do cineasta, esta «verdadeira máquina de desgastar actrizes» para nos dizer que se está a casar com toda a pompa, numa mansão rodeada por um campo de golfe de 18 buracos e um jardim «marienbadiano». Um pouco como nesse «clássico» dogma 95, FESTEN de Thomas Vinterberg, aqui também a inquietação no grupo que assiste ao casamento se instala lentamente. Uma vez que apesar de Justina (Dunst) estar a ter um casamento de sonho, de sorrir e se fartar de sorrir como diz, algo perturbar o evento. Tudo é filmado em câmara à mão como nos seus filmes dos anos 90, reforçando esse lado de perturbação a instalar e a corromper o luxo. Num segundo momento do filme, dedicado à irmã de Justine, Claire (Charlotte Gainsbourg), a melancolia insanável da irmã ganha uma dimensão apocalítitica, com «Melancholia», um planeta de órbita instável, a poder entrar em rota de colisão com a terra.

Se TREE OF LIFE de Terence Mallick nos expõe de forma, digamos, «agradável à vista», um manifesto pela vitalidade da vida em todas as suas formas e cambiantes, MELANCHOLIA, proporciona um fechamento à vida, não menos surpreendente, não menos belo na sua inevitabilidade. Frases como «I know we are alone» (sobre a vida no universo), ou «The earth is evil» mostram como MELANCHOLIA não quer ir para lado nenhum, que é uma variação minimalista sobre a tristeza e onde o fim do mundo é a única redenção possível. Se em DANCER IN THE DARK ou ANTICHRIST a apetência pelo sofrimento podia provocar o choro, ou emocionar aqueles que o testemunhavam, com MELANCHOLIA esse sofrimento atinge uma tal depuração que já nem lágrimas convoca. Mantém-se em estado de imobilidade a pairar sobre todo o filme, convertido que foi em plena afirmação filosófica.

Dito isto arriscamos uma comparação, que Lars von Trier seja uma espécie de Schopenhauer do cinema contemporâneo. No final da sua vida, o filósofo alemão pôs um pouco de parte os pensamentos sobre a dor desta vida e a morte e suicídio como únicas soluções,  para depois abraçar Deus. Lars von Trier ainda é novo, mas conhecida a sua evolução enquanto cineasta, há já vários anos a filmar o fim - o fim das relações, dos países, das expectativas e desta vez o fim do mundo - perguntamo-nos: o que virá depois do fim?

Para já apenas um genérico.

MELANCHOLIA chega às nossas salas dia 1 de Dezembro. 

domingo, 20 de novembro de 2011

Aviões de papel


Ainda a propósito disto e dos eficazes mecanismos de composição da solidão nas cidades modernas relembro um episódio que aconteceu comigo há menos de uma semana num conhecido centro comercial de Lisboa. Sento-me à espera de uma pessoa e tomo um café. Leio sem muita concentração um livro. Na mesa ao meu lado está um sénior (é assim que se diz agora não é?), que, sem levantar os olhos da sua mesa, arranca metodicamente uma a uma as folhas do jornal «A Dica da Semana». Dobra cada uma delas com a maior concentração possível. Depois de estabelecida a forma, retira do bolso do casaco gasto um agrafador e completa a obra. Agrafa-os por baixo para lhes dar estabilidade no voo. Um a um, vai colocando perfeitos aviões de papel em cima da mesa. A observá-lo apenas eu e um outro velhote na mesa do lado. A certa altura termina de dobrar mais um avião e diz para o senhor do lado, olhando para o relógio: «é melhor ir indo que já são meia-noite e vinte». Era precisamente meio-dia e vinte. Colocou os aviões num saco de papel e disse satisfeito: «ora, oito vezes cem, oitocentos euros». Presumo que falasse ainda dos aviões. Arrumou o material e sem se despedir do amigo, ou olhar para alguém, pegou no saco e foi andando devagar, em passo trôpego, até desaparecer por entre a multidão que, atarefada, comprava camisas e massas take away. Retomei a leitura mas não me conseguia concentrar. O raio do velho e os aviões de papel. Pensei que seria bonito que os aviões voassem todos. Pensei que gostava que, por ele, cada avião valesse cem euros e que não existisse nenhuma diferença entre o meio-dia e a meia-noite. Ou seria por mim? Eu também estava sozinho mas não tinha levado o agrafador.

sábado, 19 de novembro de 2011

O que é que vale a pena?


Não espanta que o ministro Miguel Relvas tenha estabelecido um grupo de trabalho (GT) para a definição do serviço público de comunicação social, no âmbito da «missão» do Governo de limpar o país da «salganhada socialista» e aplainar mais um terreno para uma política liberalista, contida, e de correção dos mal-comportados. Nesta área quer-se aparentar esta iniciativa a um murro na mesa num já longo folhetim que envolve a RTP e o seu buraco financeiro. Contudo, aquilo de que o executivo não se apercebe é que este suposto acto final de uma verdadeira comédia lusitana não é fim coisa nenhuma, mas sim mais um episódio que ameaça perpetuar uma discussão para português ouvir, enquanto as decisões giram naturalmente à direita ou à esquerda consoante as eleições. Além disso, basta ler as principais conlusões deste GT para perceber que esta é apenas uma forma, nem sequer muito original diga-se, de besuntar de fundamento pseudo-científico uma decisão política que mesmo antes das eleições já parecia ser um facto: extinguir um canal do serviço público e readaptar a sua lógica ao contexto económico sobejamente conhecido. No entanto, para não se ver o óbvio - que esta é manobra burocrática consumidora de tempo e recursos - elaborou-se a ideia de que os membros deste GT trabalhariam pro bono. Embora se tenha visto e com alguma razão que para tapar uma ponta se levantou outra: trabalhar sem receber fica sempre bem, mas implica uma afirmação da desvalorização do trabalho.

Este jogo de atenções, da ciência a cobrir os rastos da política, não espanta assim tanto. O que surpreende é que ainda haja pessoas que comentam as conclusões do GT como algo relevante e sério para decidir o futuro do serviço público nacional, e mais, que adoptem o seguinte raciocínio. São 300 milhões por ano, é muito dinheiro e talvez não valha a pena (dado o passado histórico ruinoso da RTP e a sua manifesta falta de qualidade) prosseguir em tentantivas de recuperar o conceito de serviço público adaptado a uma televisão nacional (Vasco Pulido Valente- Público 19/11/11) . Ou que se tente colocar as coisas em regime de tragédia shaskespereana: é isto ou é o «cerelac para as crianças» e por tanto larguemos a RTP de uma vez porque não temos condições para tal (João Miguel Tavares- Governo Sombra - TSF 18/11/11). Em surdina, ouvimos o longínquo balbuciar do argumento da inutilidade da cultura, subsídio-depente, habitada por inúteis incompreensíveis, com incomodativo poder de agitação mediática.

Mas separemos as águas. A RTP não tem qualidade de serviço público (não, não é um conceito assim tão nebuloso quanto alguns dos seus detractores querem fazer querer) e contém um gigantesco buraco financeiro. Isto é incontornável. Agora, esse buraco é um buraco feito pelas pessoas que o geriram ao longo dos anos em lógica corporativista, aproveitando-se do saco sem fundo que algumas pessoas colaram indevidamente ao conceito «serviço público» para se safar. Esta lógica não permite esburacar, devido à incompetência das pessoas, o próprio conceito. Porque essa lógica, por maioria de razão, teria de ser aplicada a muitas outras áreas inclusivé à da manutenção do Estado. Se o Estado gera buracos financeiros, talvez não valha a pena ele existir. Se nenhum aluno tira positiva nos testes da escola, talvez não valha a pena termos avaliações, e por aí fora. Este é um argumento absurdo porque não só nos desresponsabiliza de detectarmos e eliminarmos os erros cometidos (a gestão da RTP não é o conceito serviço público) como mancha a visão que temos do mundo e seus princípios, de respostas fáceis, que apenas têm uma obsessão: a) corrigir a matemática, para b) acalmar as águas das políticas, para  c) que no futuro se continue a ter fundos para gerir organizações sem sentido público, para gerir futuros buracos. Ora a possibilidade da gestão de futuros buracos é o telos no horizonte da política nacional neste momento. E com isso não podemos conviver. 

De toda esta situação, o conceito de serviço público está arredado. Este só se preocupa com o seguinte: assim como o dinheiro dos impostos dos contribuintes serve para manter a saúde, a justiça dos seus, também deve assegurar um nível de educação e cultura. Nem iremos pelo atalho do dito popular que «a educação e cultura não têm preço». Agora o que não há é um correspondente directo entre o nível de cultura e educação e o dinheiro despendido com um canal de televisão. Essa fuga à lógica economicista enerva muita gente. Aliás, foi a a necessidade de entrar nesse esquema economicista que levou a RTP a entrar nos circuitos de mercado que pagam a peso de ouro programas ignóbeis que traem o espírito do verdadeiro serviço público.

Desta forma, corre-se o risco de ter vista curta, de se assistir à desfiguração dos valores para propósitos político-económicos. É desse «déficit», o «déficit de valores», que, ao contrário de outros, nos parece impossível recuperar.