A partir do momento em que Lars von Trier decidiu transferiu o «negro», a
falta de esperança na Humanidade - outrora depositada na Europa do pós-Guerra (EUROPA, THE ELEMENT OF CRIME, EPIDEMIC)
– para o universo feminino, houve muita gente que começou lentamente a
enervar-se. BREAKING THE WAVES ainda
era uma novidade. Ou seja, a sua tortura psicológica, o choro, a violência, eram
aplicadas em souplesse à construção
de uma personagem interessante balizada por uma assinalável dimensão romanesca:
os efeitos de um acidente na tortuosidade de um casamento. Com as suas duas
obras seguintes, IDIOTERNE sobre os
limites da «idiotice» no interior de cada ser humano, se assim se pode dizer, e DANCER IN THE DARK, sobre uma operária
cega que ruma aos EUA em busca de uma vida de sonho, ficou claro para alguns
a necessidade que Trier tinha de explorar territórios proibidos. Os seus detractores
viram claro a necessidade oportunista de extrair do horror alheio a compaixão do
público. Essa atitude sempre Von Trier foi «rato» o suficiente para a ir conseguindo
esbater: ora porque os filmes se faziam em estilo dogma, ora porque de repente
no interior de uma fábrica toda a gente começava a cantar e a dançar como em
Demy. E mesmo DOGVILLE, a via
dolorosa de Nicole Kidman, Trier concebeu como tentativa de um cinema
brechtiano que, com giz no chão e negros, contrastava com a riqueza de um retrato
imperial norte-americano. Houve certamente qualquer coisa que mudou com DOGVILLE e depois com MANDERLAY, o segundo filme da sua
trilogia sobre os Estados Unidos como terra das oportunidades. E não é difícil efabular
sobre isso. Ora eram os relatos épicos do mau feitio que Trier descarregava
sobre as suas protagonistas feministas durante as rodagens que ficavam à beira
do esgotamento, ora eram as notícias que falavam de um realizador que caíra em
profunda depressão. Como se Trier procurasse em desespero um limite para o
sofrimento, para lá do qual outra realidade e sensibilidade pudesse emergir.
Foi com ANTICHRIST que o flanco se abriu completamente àqueles que sempre
preferiram ver nos seus filmes a lágrima útil por detrás do rosto atormentado e
o sangue para além da resposta ao trauma. E ANTICHRIST com as suas excisões e ejaculações sangrentas é um filme
que estetiza, que cria e se recria
opulentamente sobre a dor, ao caso a trauma da perda de um filho, levando a
simbologia dessa mesma dor a um extremo que não anda muito longe do puro prazer
estético. Um extremo, o que encontrou Lars von Trier, que tem qualquer coisa de
risível, mas em igual medida, vasculha uma profundidade na perda. Seja ela de
um sonho, de um filho, ou da esperança na Humanidade.
Eis-nos então chegados a MELANCHOLIA
neste percurso que converteu Lars von Trier no puro provocador do cinema contemporâneo,
naquele que diz sempre o errado na hora mais inoportuna, mas sobretudo aquele
que mostra as imagens que no passado já foram destituídas de valor moral pelo percurso
do cinema. E bom, festival de Cannes de 2011, elenco de luxo, Kirsten Dunst, Charlotte
Gainsbourg, Charlotte Rampling, Kiefer Sutherland, John Hurt, e eis que Trier
manda uma «granada» das suas. Em conferência de imprensa quando questionado
sobre a sua admiração pela estética nazi, disse que compreendia Hitler e que o
conseguia imaginar no final sentado no seu bunker. Que sempre pensara ter
raízes judias e que quando descobriu que eram «nazis» também não achou mal.
Perante isto é impossível separar MELANCHOLIA
destas afirmações, com o evento mediático a invadir a obra, tal como tinha
acontecido com PASSION OF THE CHRIST e
as declarações anti-semitas de Mel Gibson, também em Cannes uns anos antes. Mas
ganhará o filme ao ser visto à luz de uma suposta estética nazi? Bom, o seu
início é com Wagner, na sua entrada em slow
motion operático como já tinha acontecido com ANTICHRIST. E de resto? De resto nem por isso. É desta feita
Kirsten Dunst que entra no universo do cineasta, esta «verdadeira máquina de
desgastar actrizes» para nos dizer que se está a casar com toda a pompa, numa
mansão rodeada por um campo de golfe de 18 buracos e um jardim «marienbadiano».
Um pouco como nesse «clássico» dogma 95, FESTEN
de Thomas Vinterberg, aqui também a inquietação no grupo que assiste ao
casamento se instala lentamente. Uma vez que apesar de Justina (Dunst) estar a
ter um casamento de sonho, de sorrir e se fartar de sorrir como diz, algo
perturbar o evento. Tudo é filmado em câmara à mão como nos seus filmes dos
anos 90, reforçando esse lado de perturbação a instalar e a corromper o luxo. Num
segundo momento do filme, dedicado à irmã de Justine, Claire (Charlotte Gainsbourg),
a melancolia insanável da irmã ganha uma dimensão apocalítitica, com «Melancholia»,
um planeta de órbita instável, a poder entrar em rota de colisão com a terra.
Se TREE OF LIFE de Terence
Mallick nos expõe de forma, digamos, «agradável à vista», um manifesto pela
vitalidade da vida em todas as suas formas e cambiantes, MELANCHOLIA, proporciona um fechamento à vida, não menos
surpreendente, não menos belo na sua inevitabilidade. Frases como «I know we
are alone» (sobre a vida no universo), ou «The earth is evil» mostram como MELANCHOLIA não quer ir para lado
nenhum, que é uma variação minimalista sobre a tristeza e onde o fim do mundo é
a única redenção possível. Se em DANCER IN THE DARK ou ANTICHRIST
a apetência pelo sofrimento podia provocar o choro, ou emocionar aqueles que o
testemunhavam, com MELANCHOLIA esse
sofrimento atinge uma tal depuração que já nem lágrimas convoca. Mantém-se em
estado de imobilidade a pairar sobre todo o filme, convertido que foi em plena
afirmação filosófica.
Dito isto arriscamos uma comparação, que Lars von Trier seja uma espécie de Schopenhauer
do cinema contemporâneo. No final da sua vida, o filósofo alemão pôs um pouco
de parte os pensamentos sobre a dor desta vida e a morte e suicídio como únicas
soluções, para depois abraçar Deus. Lars von Trier ainda é novo, mas conhecida a sua evolução enquanto cineasta, há já vários
anos a filmar o fim - o fim das relações, dos países, das expectativas e desta
vez o fim do mundo - perguntamo-nos: o que virá depois do fim?
Para já apenas um
genérico.
MELANCHOLIA chega às nossas salas dia 1 de Dezembro.
Um dos melhores filmes do ano... Chocante e poético.
ResponderEliminarO Falcão Maltês
Carlos,
ResponderEliminarficando sem saber exactamente o que é que achaste do filme, deixa-me dizer que o considerei ridículo. Cantar o fim do mundo como saída única é um acto desnecessário e soa terrivelmente a old news. Parece-me que neste filme Von Trier desiste de explorar o individuo, escamoteando-o com o preto ou branco, como se reduzisse as personagens a bem da grandeza do seu proprio fim. Em resumo, uma das maiores merdas que vi em 2011.