Ainda a propósito disto e dos eficazes mecanismos de composição da solidão
nas cidades modernas relembro um episódio que aconteceu comigo há menos de uma
semana num conhecido centro comercial de Lisboa. Sento-me à espera de uma
pessoa e tomo um café. Leio sem muita concentração um livro. Na mesa ao meu
lado está um sénior (é assim que se diz agora não é?), que, sem levantar os
olhos da sua mesa, arranca metodicamente uma a uma as folhas do jornal «A Dica
da Semana». Dobra cada uma delas com a maior concentração possível. Depois de
estabelecida a forma, retira do bolso do casaco gasto um agrafador e completa a
obra. Agrafa-os por baixo para lhes dar estabilidade no voo. Um a um, vai
colocando perfeitos aviões de papel em cima da mesa. A observá-lo apenas eu e
um outro velhote na mesa do lado. A certa altura termina de dobrar mais um
avião e diz para o senhor do lado, olhando para o relógio: «é melhor ir indo que
já são meia-noite e vinte». Era precisamente meio-dia e vinte. Colocou os
aviões num saco de papel e disse satisfeito: «ora, oito vezes cem, oitocentos
euros». Presumo que falasse ainda dos aviões. Arrumou o material e sem se
despedir do amigo, ou olhar para alguém, pegou no saco e foi andando devagar,
em passo trôpego, até desaparecer por entre a multidão que, atarefada, comprava
camisas e massas take away. Retomei a
leitura mas não me conseguia concentrar. O raio do velho e os aviões de papel.
Pensei que seria bonito que os aviões voassem todos. Pensei que gostava que,
por ele, cada avião valesse cem euros e que não existisse nenhuma diferença
entre o meio-dia e a meia-noite. Ou seria por mim? Eu também estava sozinho mas não tinha levado o agrafador.
Excelente.
ResponderEliminarOlá, Carlos, dê uma olhadinha nessa entrevista. Cito o seu blog.
ResponderEliminarhttp://poseseneuroses.blogspot.com/2011/11/entrevista-antonio-nahud-junior.html
O Falcão Maltês