Parece haver à partida uma distância infinita, quanto mais não seja moral,
entre tentar impor uma homogeneidade e deixar correr livre o que é heterogéneo.
Com a saída de Sílvio Berlusconi na passada semana, são já três as saídas
forçadas de governos do sul da Europa, dos países ditos «enrascados». Estes
ameaçam transformar-se, aos olhos do mundo, em pouco mais do que símbolos de um
problema real: aquele que faz agitar o conceito que ensombra mediaticamente o nosso
pensamento e que muitas vezes parece não sair de uma espécie de abstracção
conveniente, a crise. A Grécia, Portugal, a Irlanda, a Itália e a Espanha
espelham a pouco e pouco a ideia de contaminação, de um problema de fim ou
ruptura de regime, e vão dando tempo aos maiores de começar realmente a fazer
pela vida.
Estas saídas políticas mostram como é necessário que o programa inicial da
União Europeia, o de forçar uma homogeneidade aparente aos seus membros, seja mantido a qualquer custo. Mesmo que para isso se rejeitem
referendos, se «derrubem» governos e se tente esconder os sinais dessa
interessante heterogeneidade que como sabemos vem já do inicio da formação da
aventura europeia. O regresso à tecnocracia em Itália, o bom comportamento de Passos Coelho,
a ligação ao BCE de Lucas Papademos são improvisos que parecem explicar o
funcionamento daquilo que em matemática chamamos - a transformação do padeiro.
Este fenómeno mostra como um quadrado pode ser esticado em rectângulo e ao
colocar a parte da direita do rectângulo acima da parte esquerda ficaremos
de novo com o quadrado, com uma nova redistribuição de superfície. Ou seja,
estas são opções de redesenho do mesmo todo, que fecham a possibilidade da
introdução de uma solução de ruptura que seja um olhar que espreita, ou tenta
espreitar, o lado de lá da bolha do sistema.
É que dentro da bolha, há os que a criaram e vivem da bolha e há os que são
modelados pela bolha por forma a fazer crer que um português ou um grego não
tem a mesma dignidade económica de um alemão. Esse é o argumento
neo-colonialista mediatizado, que os pequeninos usam para se manterem na
pequenez: «usámos mal o dinheiro, não nos soubemos orientar, mas ainda
merecemos outra oportunidade» A questão é que essa desorientação sempre já fez parte
do jogo, ou melhor, do negócio de manutenção de um sistema com diferentes
velocidades e sobretudo com diferentes sistemas de veracidade.
Se a reconfiguração da forma matemática equipara o mais perto e o mais
distante, fá-lo para resultados equivalentes, no elogio da transformação. Não é
o caso do sistema europeu. O sistema europeu, entroncado no nosso modelo de
conhecimento em rede, interactivo, em dialéctica ou em trama, em contínuo
movimento, gerou uma crise como abstracção aberrante, embora com efeitos
concretos e respostas disseminadas – a ocupação de Wall Street, os indignados
em Espanha, os gangs em Inglaterra e nos arredores de Paris - e um tanto ou quanto
abstractas também. Este protesto é difuso por duas razões: porque a tomada
de consciência é feita desde o interior desta bolha capitalista e sobretudo
porque não houve ainda a apropriação concreta destes eventos para um
movimento coeso, numa só direcção. Quem se apropriará desta energia de ruptura?
Sem sermos adeptos da noção de «humanidade como organismo», nem sequer da
noção de «humanidade», pode ser que uma pseudo – entidade a que chamamos planeta,
ou pessoas a viver em comum, para preservar uma certa ingenuidade conceptual, nos
tenha trazido a ruptura com quem teremos de viver nos próximos anos. A crise talvez
seja uma entidade que alargue as soluções comunitárias que alguns encetaram há
anos no sentido de reduzir no seu modo de vida o excesso perturbador do
capitalismo, e ensine e obrigue a cultura ocidental a saber viver com menos. Isto
enquanto, sob os louros do fracasso deste modus
vivendi, se leve o humano a perder o interesse pelo domínio obsessivo da
natureza. Porque, como sabemos, a morte, a destruição e a indignidade não foram suficientes na conquista de tal façanha.
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