domingo, 13 de novembro de 2011

A Infância de Ivan, Andrei Tarkovsky


Sobre IVANOVO DETSVO (Ivan’s Childhood), um auto reconhecido teste de Tarkovsky à sua capacidade de filmar e ser artista, há uma cadência de elementos, que se diria líquida, que insere, compromete, como nunca antes no cinema, a sua primeira longa – metragem, num processo imparável de circulação entre sentir e pensar, entre compreender num mesmo tempo, uma diagonal e uma guerra que mata adultos, mas também crianças. Esta parece ser uma série de elementos que se sucedem uns aos outros, mas que se contaminam, por forma a que uma vez chegados a um aparente final, o sonho final do protagonista que é o sonho de um morto, nos vemos obrigados a retomar o início, como uma primeira obra que diz tudo sobre a última e viceversa. 

Porque nesta primeira obra, o epíteto «primeira» excede em muito a cronologia do trabalho cinematográfico do cineasta russo, e diz respeito à produção de uma primeira e nova abordagem ao cinema que parece respeitar de forma mais intrínseca os princípios da imagem em movimento que buscam incessantemente desde o seu inicio aceder a uma vida, simultaneamente interior e exterior, como se o quotidiano fosse uma espécie de poesia da alma e o sentimento uma prosa da natureza. São elementos que o cinema ajuda, na sua relação imagem/coisa, a conceber como duas coisas «indiscerníveis e contudo distintas». 

Por isso é tão injusto o ataque da crítica de esquerda italiana aquando da estreia do filme em Veneza, acusando-o de preferir um esteticismo burguês à verdadeira luta de classes (referindo-se sobretudo às sequências dos sonhos de Ivan). Mas não o é menos a defesa de Sartre à obra apelidando-a de QUATRE CENT COUPS soviético, inaugural de um «surrealismo socialista». Neste início esteve em causa uma criança, amputada na sua infância, forçada a crescer, mas que não serve a deambulação subjectiva pela experiência de guerra (como GERMANIA, por exemplo); e onde nem sequer a guerra, tema chave, importante prova de certificação para os cineastas de renome na união soviética desta altura, é meramente um palco de tragédia infantil. A infância com prolongamento na idade adulta, e a guerra encolhida nos seus bunkers, invisível e centrada na relação entre os soldados, ambientam antes o projecto artístico de Tarkovsky: a circularidade entre o comprometimento político e o descomprometimento artístico, o cinema que deseja transformar-se em poesia. Não que esta poesia seja enaltecida como um especial acesso aos «lugares mais profundos da alma humana», mas sobretudo porque é a conexão, ou a articulação poética aquela que melhor abre a lógica do raciocínio dos homens. Se o raciocínio é para Tarkovsky uma espécie de «poesia do pensamento», é sobretudo na carga material do cinema que se consegue visualizar a questão. 

A guerra e a infância são os temas a propósito dos quais Andrey Tarkovsky começou o seu périplo pelas imagens terríficas e maravilhosas. Entre o fotograma do horror e o do êxtase, depois quase sempre houve chuva, fogo, levitações, reflexões, beijos, deambulações, desaparições e trincheiras. Mas estes elementos que construíram situações e a proximidade entre o homem e o mundo nunca simbolizaram. Essa coragem de não ser simbolista valeu provavelmente a Tarkovsky a vida. Mas também nos mostrou como é que o quotidiano no mundo, quando visto por esse «terceiro diabólico» que é a câmara, pode ser eterno; também nos deu a ver a proximidade entre a ficção científica - um espaço desconhecido sem fronteiras - e os dilemas metafísicos do homem (SOLARIS) - um espaço interior desconhecido sem fronteiras.

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