terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Amanhã no espaço nimas



Amanhã, pelas 19:00 no Espaço Nimas, estarei a conversar com a minha colega walshiana, Raquel Morais, e a minha ex-colega de Conservatório de Cinema (Escola Superior de Teatro e Cinema - IPL), Mariana Gaivao, acerca da obra-prima de Larisa Sheptiko, Krylya (Asas) de 1966. O filme é exibido no âmbito do ciclo Ciclo Género e Identidade - ASAS de Larisa Sheptiko, organizado pela Cluster Photography and Film Studies – Instituto de História da Arte - FCSH NOVALeopardo Filmes e Medeia Filmes. Agradeço desde já o gentil convite da Sabrina D. Marques, do Luís Mendonça e do Bruno Marques curadores do projecto. Ainda um agradecimento especial ao António M. Costa, que possibilita a existência destes interessantes eventos numa sala de cinema de Lisboa. Resta-me pedir que apareçam uma vez que vai ser certamente um final de tarde agradável, com boa conversa e ainda melhor cinema.

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Hell or High Water

A decadência do western enquanto género não tem necessariamente a ver com uma quebra nos padrões culturais que o autorizavam a retratar a América profunda do wild wild west. Contudo, no filme de Mackenzie é a circularidade do dinheiro que torna o modo de agir dos bank robbers em algo demodé. Dois irmãos a fazerem algo juntos, vestidos de cowboy mas com máscaras de ski a entrar pelos bancos adentro, sem pensar muito nas câmaras de vigilância, e a acumular notas à antiga. Mas quem ainda rouba bancos? “Vocês nem são mexicanos”, diz-lhes um dos clientes do banco. O dinheiro vai ser lavado no casino, circulado em fichas, e depois o grande movimento circular do filme que é o facto do dinheiro do banco roubado ser aquele que servirá para pagar a esse mesmo banco que iria executar o rancho da família. Porque tudo pode ser tudo, o texas ranger branco já pode gozar com o texas ranger mexicano, já podem vestir-se de forma igual e sobretudo perceber, como é o caso deste plano, que as perseguições são de outrora e que agora é sobretudo um tempo de estratégia e espera. Aqui, a personagem de Jeff Bridges explica isso mesmo ao seu parceiro: mais vale antecipar a próxima jogada de um xadrez que já não anda a golpes e esticões de violência, mas é antes um affair de gestão de um capital circular e fugidio. O seu parceiro Alberto diz-lhe que ele quer esperar pois quer prolongar ao máximo aquilo que está prestes a terminar dada a eminência da reforma. Não é que também não tenha razão mas é esta espera que faz com que Hell or High Water termine com um adiamento – Bridges dirá a Pine que um dia irão continuar a conversa que poderá finalmente esclarecer a sua culpabilidade. Essa cena final do filme, já com Pine de volta com a família em mais um gesto circular do argumento, ilustra bem esse saborear de um momento antes dele terminar. E já há décadas que esse fin de jeu paira sobre o mundo do western.

Lion


Uma das piadas recorrentes de Ricardo Araújo Pereira é sobre a peça Romeu e Julieta de Shakespeare. Diz ele que a tragédia que ocorre pelo desencontro dos amantes jamais teria lugar se existissem telemóveis. A mesma coisa apetece dizer do destino do pequeno Saroo que vinte e tal anos depois de se perder em criança numa pequena província da Índia, acaba por achar a sua casa através do Google Earth, já vivendo na Austrália junto com a sua família adoptiva. Se a primeira parte de Lion (Lion – A Longa Estrada Para Casa, 2016), quase sem diálogos, é sobre perder-se, a segunda, no mundo da tecnologia e da industrialização, é sobre encontrar-se. Este plano corresponde precisamente a este segundo segmento, bem menos interessante, onde o publicitário Garth Davis monta de forma enjoativa e recorrente planos do presente de Saroo (já encarnado pelo desinspirado Dev Patel) a flashes do passado na Índia onde andou perdido e afastado da família. Talvez os planos que o realizador use directamente do google maps (inaugurando um período onde parece ser impossível perder-se no espaço) sejam os menos eloquentes e ao mesmo tempo os mais certeiros. A simulação digital do espaço faz a personagem reviver o espaço real ao ponto de o percorrer com o indicador (e depois com os pés e a mente). Dito isto merecia a pena ainda dizer que a adaptação deste caso verídico, vertido em tearjerker panfletário sobre o número elevadíssimo de crianças que se perdem anualmente na Índia, está tudo menos perdido. Assim como Patel sente o aroma proustiano do passado nos jalebis que come agora (e que queria poder ter comido com o desaparecido irmão, em criança) também nós encontramos em Patel, ou nos planos de miséria de uma Calcutá perigosa, as coordenadas, o “célebre aroma” de Slumdog Millionaire (Quem Quer Ser Bilionário?, 2008).

Fences


No momento-chave do desfecho do segundo acto do Fences, a personagem de Troy Maxzon, caída em desgraça - "Can't taste nothing...", diz - , brande um taco de baseball e olha para a câmara. "Come on, anytime you want. This is between you and me, now." Denzel Washington já nos havia mostrado, momentos antes, a súbita luz vinda da janela do andar de cima de sua casa e através da peça homónima de August Wilson já tínhamos a informação que, no passado, Troy pensava ter vencido a morte numa luta corpo a corpo, evitando morrer precocemente de pneumonia. Mas agora, após a expulsão do filho de casa e os problemas conjugais, esse novo desafio já não é com a bola segura pendurada na árvore do seu quintal mas sim um novo jogo com a morte, do qual apenas um poderá sair vencedor. Naturalmente que Denzel, enquanto realizador e protagonista do filme, afirma o momento como a disputa final do personagem também com o espectador. Não deixa assim de ser interessante esta ideia da lente da câmara como uma oponente da ficção e um aliado do voyeurismo, uma mesma cortina a marcar dois pontos de partida, mais uma "fence" a adicionar à metáfora dupla das vedações que ora abrigam o cá dentro, ora excluem o lá fora. (Juntamente com Lion (Lion - A Longa Estrada Para Casa, 2016) de Garth Davis este é o segundo filme desta corrida aos Óscares a falar de integração e exclusão, isto é, a dar um double bill perfeito para mostrar numa sessão de "esclarecimento" a Donald Trump.) Seja como for, ainda sobre a questão da vedação como limite, esse é o principal pecado de Denzel Washington neste filme: colocar-se sempre no centro de tudo - actuação, realização - não conseguindo enxergar as linhas de demarcação que tornariam um e outro trabalho mais secos e sérios.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

The Eyes of My Mother

No terror, quando a fonte do mal provém da psicopatia humana, é corrente tomar uma de duas opções. Muitas vezes o assassino, mesmo que sugerida a causa do distúrbio, age como mera máquina da matar, transferindo a psicologia para a faca ou para a motosserra (Michael Myers ou Leatherface) e fazendo do filme um correr de perseguição e vísceras. Essa é uma opção. A outra é aquela que transfere a psicologia do mal para o quotidiano do psicopata, advindo daí muitas vezes quer a fonte do seu trauma, quer a total inconsciência dos seus tresloucados actos. É por esta segunda via que o jovem de 26 anos, Nicolas Pesce, vindo de um carreira até então feita no universo dos videoclipes, resolve seguir ao estrear-se no cinema com este The Eyes of My Mother(Os Olhos de Minha Mãe, 2016).
Do quotidiano da menina Francisca (não confundir com a outra Francisca do cinema português) faz parte uma mãe de origem portuguesa e com formação em cirurgia que conta à filha sobre as perturbações da vista que teve São Francisco de Assis (que o levaram à cegueira e à morte), das relações entre solidão e psicose e que ainda lhe ensina, nos tempos livres, a extrair os olhos às vacas. Bastam estes elementos para perceber que todo o filme se irá construir sobre o tema do olho. Não apenas nos planos buñuelianos dessas referidas operações, como mesmo em tudo aquilo que não se vê. Não se vê vivalma no espaço rural habitado pela família de Francisca (e só a televisão fala, praticamente), as vítimas vão deixar de poder ver, assim como a própria Francisca não «vê» a dimensão dos seus actos.
Ainda sobre o tema da visão há que dizer que The Eyes of My Mother, sendo um filme curto – quer no seu orçamento, quer mesmo no alcance do seu episódio de terror gótico – usa o preto e branco para gerir de forma mais hábil o que é para ver. O sangue confundido com a água leitosa da banheira, a papa que há para comer que pode muito bem ser feita de ratos mortos, os saquinhos de conteúdo implícito/explícito, o fundo sombrio do celeiro ou o breve brilho dos esqueletos. Da ausência de cor nasce assim a compensação de uma história de desarranjo mental que se prolonga nos planos das linhas oblíquas, nos pontos de vista aéreos ou distantes da violência prestes a acontecer (a interessante sequência da morte do assassino da mãe com o trabalho sobre o som), na tranquilidade suave do horror. Essa qualidade «grim» que possui todo o filme faz com que em vários ocasiões se sinta a falta de antagonismos à altura capaz de gerar um maior interesse no espectador, além da composição sugestiva que estende o realismo a seu belo prazer: lembro a cena em que Francisca dança uma música de Amália enquanto o cadáver do seu pai e uma boneca assistem à bonita performance.
Por tudo este cumular de elementos sugestivos e ambientais várias conclusões se podem tirar. A relação entre o drama e o horror e o uso do preto e branco fazem lembrar outra estreia, a de Ana Lily Amirpour em A Girl Walks Home Alone at Night (Uma Rapariga Regressa à Noite Sozinha a Casa, 2014). Depois, a relação familiar de Francisca oscila entre uma versão estática de The Texas Chain Saw Massacre (Massacre no Texas, 1974) e a conservação dos valores e dos corpos no muito conhecido Motel Bates de Psycho (Psico, 1960). Já as relações «extra-curriculares» de uma amizade extrema provém de filmes como Misery (1990) de Rob Reiner ou a mais recente folia do torture porn, neste caso, um slow torture porn.
Resta-me terminar fazendo um pequeno exercício de especulação: o que terá motivado a decisão de estrear The Eyes of My Mother em Portugal? Terá sido o facto de Nicolas Pesce filmar cabeças de vaca na mesa da cozinha como uma elegância fora do comum? Talvez sim. Ou terá sido a produção da «Borderline Films» de Sean Durkin, Josh Mond e Antonio Campos? Talvez também. Mas a aposta mais certa é que o filme estreia em Portugal por causa da jovem protagonista Kika Magalhães, actriz portuguesa, que com os seus olhos grandes e gestos subtis, aporta alguma da dualidade que o filme projecta algures entre o drama familiar e a tragédia sanguínea.
Curiosamente, sendo The Eyes um filme espelho de Portugal ele é também um filme que usa os diferentes sotaques portugueses (o brasileiro, a açoriano, o do continente) de forma indiscriminada, além de usar o fado como raccord para construir o sinistro, uma música provinda de um país que abre as suas vacas para ver o que têm dentro. Daqui se presta a perguntar se o «português» enquanto todo, no filme de Pesce, não ocupa o lugar desse espaço mítico e grotesco de onde se serve este singelo pesadelo.

Lei do clímax

Lei do clímax: don't give a fuck+shoot+reload+black.


Poesia


sábado, 18 de fevereiro de 2017

Estou a pensar numa iniciativa legislativa que proíba a lavagem de tachos onde foi cozinhado arroz após uma hora de serem utilizados. O arroz que por lá fica, só e abandonado, enrijece e depois é o costume, os interesses instalados, os lobbies, os preconceitos. Tudo isto faz com que seja muito difícil, mesmo que usemos esfregão forte e anti-corrupção, remover esses arrozes do sítio onde um dia foram felizes, de onde estão hoje instalados e apegados à mais básica das rotinas. É preciso terminar com esta pouca vergonha. Quem está comigo?

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

O modo alemão de acumular riquezas

«Pois bem, é exactamente como nos livrinhos ilustrados de moral alemã: em cada casa há um Vater (pai), terrivelmente virtuoso e extraordinariamente honrado. Tão honrado que temos medo de nos chegarmos a ele. Não posso suportar as pessoas honradas que inspiram medo. Cada um destes Vater tem a sua família e à noite, reunidos todos eles, leem em voz alta livros instrutivos. Sobre o telhado da casa rumorejam os ulmos e os castanheiros. O Sol que se põe, a cegonha no telhado, tudo isto é extraordinariamente poético e comovedor.

(...)

Bom, aqui todas as famílias se encontram sob o jugo e a submissão mais completa do Vater. Trabalham como bois e acumulam dinheiro como judeus. Suponhamos que o Vater reuniu já uns tantos florins e espera legar ao primogénito o seu táler ou a sua parcela de terreno. Para isso, não dá qualquer dote à filha e esta fica para tia. Para isso vende o filho mais pequeno como criado ou como soldado, e este dinheiro é incorporado no capital familiar. Faz-se assim, acreditem-me. Procurei informar-me. E fazem tudo isto movidos pela honradez, por um exaltado espírito de honradez, até ao ponto de o filho mais pequeno, que foi vendido, estar convencido que o venderam movidos pela honradez. E isto é o ideal: a própria vítima alegra-se por ter sido oferecida em holocausto. O que acontece depois? As coisas também não correm de feição para o primogénito: há ali uma certa Amalchen à qual o seu coração de sente unido. Mas não pode casar-se porque não arrolou os florins necessários para fazê-lo. Ficam também à espera, digna e sinceramente, aceitando o holocausto com um sorriso nos lábios. Amalchen continua extenuada e fraca. Finalmente, ao cabo de vinte anos, os bens foram multiplicados: dispõem de florins honrada e virtuosamente poupados. O Vater dá a benção ao primogénito, de quarenta anos, e à Amalchen, de trinta e cinco, peitos flácidos e nariz avermelhado. Chora, dá-lhes conselhos e morre. O primogénito transforma-se, por sua vez, num virtuoso Vater, e a sua história volta a repetir-se. Aos cinquenta ou sessenta anos, o neto do primeiro Vater dispõe, na verdade, de um capital considerável, que lega ao seu filho, e este ao seu, e assim ao cabo de cinco ou seis gerações, deparamos com um barão Rothschild ou um qualquer Goppe & Ca. Não é um espectáculo grandioso? Um trabalho permanente de cem ou duzentos anos, paciência, inteligência, honradez, carácter, decisão, cálculo, a cegonha no telhado! Que mais querem? Porque nada há superior a isto, e a partir deste ponto de vista começam a julgar o mundo e a castigar os culpados, quer dizer, aqueles que se diferenciam deles um milímetro que seja. Eis a questão: prefiro a agitação do estilo russo ou enriquecer à roleta.»

in «O Jogador» de Fiódor Dostoiévski 

«Eldorado XXI» de Salomé Lamas


Quase todos os filmes da Salomé Lamas parecem conter uma luta com a realidade. Não apenas no sentido em que um documentarista arranca do mundo as suas imagens, mas sobretudo um conflito que implica trazer para a visibilidade uma complexidade que esse mundo sempre contém e encerra. O não visto, o não assumido, o reprimido, o «não representável», o historicamente abafado são os propósitos (paradoxalmente) visíveis de uma realizadora como Salomé Lamas. Contudo, os seus filmes, não se limitam a justapor essas invisibilidades, mutando-as em obras visíveis. Por exemplo, «Eldorado XXI» que logo no título nos indica a visão que parte dos trabalhadores mineiros tem sobre La Rinconada y Cerro Lunar, nos Andes peruanos, não é (apenas) um olhar crítico da miséria laboral e da pobreza dessa comunidade. Desde logo existe um fascínio da autora, que já vem de obras como «Golden Dawn» (em que acompanhou um barco de pescadores holandeses no Mar do Norte) com a dureza do trabalho e seus movimentos rituais. Mas essa dureza também está presente na natureza (por exemplo, «Encounters With Landscape - 3X», filmado na Lagoa das Sete Cidades nos Açores), que Salomé compara, desafia, através do seu próprio métier. Percorrer o espaço com a câmara é um acto de desafio, e ao mesmo tempo de respeito, por essa mesma natureza.

Estes dois elementos, assim como a já referida intenção de explorar espaços/terras de ninguém como forma de os redimir e desafiar o espectador, confluem para este «Eldorado XXI», creio que o seu melhor filme à data. A confluência destes elementos permite ver o filme como uma sucessão de portas abertas. O duelo entre o plano fixo (o equivalente de uma mina do qual o espectador só sai passado quase uma hora) e os espaços abertos é apenas uma dessas portas. Mas está em causa também a tensão entre a imagem (mental) que fazemos de uma comunidade através das suas histórias de miséria ou jingles radiofónicos e as imagens que de facto nos são dadas a ver. E como a realidade é demasiado complexa para se ser (ou ver) apenas uma coisa, ou mesmo uma oposição, «Eldorado XXI» é muitas coisas mais. É um drama sobre a pobreza - por exemplo, a história da senhora com muitos filhos que chega à Rinconada sem trabalho, sem tecto, apenas com tripas para comer. É uma comédia subtil onde as coreografias da dança e das festas locais ou a música pop no meio das montanhas mostram o sorriso onde menos se espera. É um filme de terror onde os relâmpagos da tempestade e as máscaras na noite ganham contornos desconhecidos e assustadores. É ainda um filme que questiona as noções do sagrado e das crenças religiosas, como forma de suster a vida e o trabalho.

Mas em minha opinião «Eldorado XXI» é sobretudo um filme de comunidade: que sabe ouvir as histórias e as presenças das pessoas. Assim como o faz com a natureza que é tudo menos silenciosa e inerte em La Rinconada. 

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

«Split» de M. Night Shyamalan

Receio que possa passar por recurso um tanto fácil mas não é por isso que deixa de ser menos verdade: a crítica a «Split» de M. Night Shyamalan faz-se com a ajuda do seu próprio tema, o transtorno dissociativo de identidadeTrata-se de um filme que, ao longo das suas quase duas horas, passa por várias peles ou identidades sem que se decida por nenhuma.

Inicialmente, «Split» anuncia-se como um filme de clausura, de espaço confinado. Neste, os seus códigos indicam ao espectador que é a tensão crescente entre as personagens dessa clausura que devem ditar um escape ou fuga. Ora, essa identidade do filme apenas é retomada alternadamente com as suas possibilidades, esmorecendo o nosso investimento emocional nesse choque, ou nessa fuga. Como se Shyamalan dissesse: «fujamos!» e na cena seguinte mostrasse o quão bem se está naquele espaço.

A «segunda identidade» de «Split» é a de filme sobre a explicação detalhada e quase obsessiva acerca dessa desordem da múltipla personalidade. Tem-se referido e com razão «Psycho» de Alfred Hitchcock a propósito da relação entre Norman Bates e a(s) personagem(ns) interpretada(s) por James McAvoy. Contudo, no filme de 1960 o transtorno surge como uma desvelação chocante e aqui ocupa a narrativa desde os primeiros minutos. Além de possíveis diferenças legítimas de ponto de vista, diga-se que Hitchcock percebeu que a premissa científica da mudança de identidade pouco era em si se não acompanhada de uma escalada na tensão. Ora, «Split» é um «Psycho» que quer  menos saber do que acontece a Vera Miles e se preocupa mais em conhecer os detalhes do porquê e do como é que Bates se transmuta na sua falecida mãe. E por isso torna-se cansativo e sobretudo informativo. Derivando desta necessidade de explicação, um filme algo imóvel, demasiado preso à explicação da sua premissa.

Finalmente, o melhor de «Split», ou a sua terceira personalidade, é aquilo que o realizador de «Unbreakable» melhor sabe fazer: a junção de um universo fantástico com uma sensibilidade poética, algures fora deste tempo, mas que ainda nos consegue tocar. O twist final de um filme sem drama, como este, é dessa ordem, apelando a uma violência com respeito pelas agruras da vida. Seja como for já chega tarde para um certo anonimato na realização, e sobretudo, para um filme que se perde na explicação do que é ser-se muita coisa ao mesmo tempo. 

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Um escritor é um vidente do que ainda não aconteceu. Ou, como diz Calvino, um «actor de órbitas vazias a memorizar o texto» para um filme que há-de um dia ser visto.

Morrermo-nos

As primeiras frases do texto do Antonio Guerreiro sobre a eutanásia, acerca da necessidade de não definir o que é a vida através de critérios médico-científicos, recorda-me o preâmbulo de Hannah Arendt do seu «A Condição Humana». 

Escreve ela (em 58, note-se):

«Recentemente, a ciência tem-se esforçado por tornar «artificial» a própria vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza. O mesmo desejo de fugir da prisão terrena manifesta-se na tentativa de criar a vida numa proveta, no desejo de misturar, «sob o microscópio, o plasma seminal congelado de pessoas comprovadamente capazes de produzir seres humanos superiores» e «alterar(-lhes) o tamanho, a forma e a função»; e talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança de prolongar a duração da vida humana para além do limite dos cem anos.

Esse homem futuro, que segundo os cineastas será produzido, em menos de um século, parece motivado por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada — um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo. Não há razão para duvidar de que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo para duvidar da nossa actual capacidade de destruir toda a vida orgânica da terra. A questão é a de saber se desejamos usar nessa direcção o nosso novo conhecimento científico e técnico — e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é uma questão política de primeira grandeza, e, portanto, não deve ser decidida por cientistas profissionais nem por políticos profissionais.»

Ou seja, eutanasiar-nos a nós e/ou à Terra, desfazer-nos e refazer-nos noutra coisa é coisa que não deve ser encaixotada nos critérios científicos da mera possibilidade ou impossibilidade.

«Morrermo-nos» não deve ser um affair de máquinas. Máquinas de facto ou máquinas sociais, pouco importa.

sábado, 11 de fevereiro de 2017


Eutanásia

Eutanásia vem do grego εὐθανασία que significa «boa morte». Em que circunstâncias pode uma morte ser boa? A boa morte é a morte digna, aquela que permite a um «ser vivo» passar a ser um «ser morto». A que termina a sua existência, o seu ser como um todo. É que, por vezes, acontece acabarmos aos pedaços, a mente aqui, um órgão acolá, uma lembrança no caixote do lixo, uma actividade — como passear no lago ou comer bolachas às mãos cheias  que sempre definia o nosso viver, agora parado para sempre, extinto como animal caçado irremediavelmente pelo destino. A boa morte é a que começa na expressão «eu quero morrer», a que se ri do mundo como bugiganga barata e que vê o fim tal qual jardim suspenso entre o cristal e a imundície. Quando o cavalo parte sem o cavaleiro, não faz sentido avançar com as patas sobre o solo. Já quando é o cavaleiro que fica apeado, cavalo morto, inchado na berma da estrada, o mínimo a fazer é despir a couraça, tornar-se leve para assim enfrentar e comer o pó. A «boa morte» talvez seja a que evite o desencontro, a falsa partida, que seja digna de um fechar das pálpebras como uma pedra sobre o assunto. Sem adiamentos, twists ou ecos improváveis. A liberdade serve sobretudo para isto: evitar as dessinscronias da natureza.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

A ponte, o arco e as pedras

«Marco Polo descreve uma ponte, pedra a pedra.
—Mas qual é a pedra que sustém a ponte? — pergunta Kublai Kan.
—A ponte não é sustida por esta ou aquela pedra — responde Marco —, mas sim pela linha do arco que elas formam.
Kublai Kan permanece silencioso, reflectindo. Depois acrescenta:
— Porque me falas das pedras? É só o arco que me importa.
Polo responde: — Sem pedras não há arco.»

in «As Cidades Invisíveis», Italo Calvino, 1972

Por vezes, a melhor forma de construir um electrocardiograma do quotidiano é escrever os dias e as horas como sístoles e diástoles de um motorzinho feito de brilhos, intensidades, calores e lágrimas.

Raccords de homens sem filhos

Um bom double bill para «Manchester By the Sea», o filme que sem música erudita era um drama banal, é «The Invitation» de Karyn Kusama. Também aqui um homem que perdeu a prole agora a tentar recuperar e a refazer-se mentalmente. Mas enquanto Casey Affleck é chamado a Manchester-by-the-Sea, a sua casa de horrores, com o intuito de prosseguir numa tarefa de parentalidade interrompida (em relação ao seu sobrinho, devido à morte do irmão), já o barbudo Will (Logan Marshall-Green) é no interior do parque temático de obsessões e terapias que é Hollywood que terá de buscar reparação. Se o drama do primeiro filme filma um slice of life que lentamente produzirá um avanço, a suspeita do segundo - depois de anos de ausência, a ex-mulher de Will dá, com o seu novo companheiro, um jantar na sua casa para aquele e os amigos em comum - faz com que o terror se «entale» entre a loucura produzida pelo desgosto da perda de um filho e o terror das reparações espirituais automáticas veiculadas através de seitas religiosas. 

O filme de Kusama, que por vezes trás à memória «The Rope», tem sobre a obra de Lonergan a vantagem de expor (e de se expor) sentimentos que podem estar errados, podem ser paranoicos e desajustados, mas precisam de sair. Já Lonergan parece usar a introversão de Affleck, que muito possivelmente lhe valerá um óscar, para mostrar o silêncio dos grandes pequenos e trágicos heróis como um antídoto ao frenesim da vida. O problema é que entretanto esse «silêncio» já há muito que foi convertido em viva voz autoral. Um tique audível, portanto.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Negrume


Sambando o silêncio,
chega da festinha,
comendo nostalgia de catana.
Veio assim vestidinha,
casaco preto, neve de montanha
na cintura, planície de dois sóis.
Depois escancarou no sonho,
afogou na piscina do ponche,
e comeu fome de baile alheio.
Mas agora que tudo passou,
sua alpinista de abismo,
estrábica do acontecimento,
deixa eu perguntar pr’a você:
e esse negrume, queridinha:
é semente de costela?,
ou iguaria de quilo?

A prisão sem livros

«Por seu intermédio pude dispor de mais dinheiro, escrever à minha família e arranjar livros. Havia anos que não lia um único e seria difícil descrever a estranha emoção que me causou o primeiro volume - uma revista. Lembro-me de ter começado a ler à noite, depois de fecharem as casernas, e de ter continuado a leitura pela noite fora, até ao nascer do dia.  Dir-se-ia que viera até mim um mensageiro de outro mundo. A minha vida antiga surgiu aos meus olhos com extrema claridade e tentei adivinhar, através do que lia, se me deixara ficar para trás, se eles - os outros, os livres - tinham vivido muito, sem mim.»

in «Recordações da casa dos Mortos», Fiódor Dostoiévski 

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

O traço mais característico e impressionante do nosso povo é a sua consciência e a sua sede de justiça. Falsa vaidade, meter-se à frente, lutar para conseguir o primeiro lugar, sem ter em conta se se possuem ou não condições para o ocupar, não são defeitos que caracterizam o nosso povo. Desde que se levante a sua grosseira casca exterior e se observe com atenção, sem preconceitos, o que germina por baixo, descobrem-se nele qualidades insuspeitadas. Os nossos sábios não têm muito que lhe ensinar. Direi mais, os nossos sábios encontrariam muito que aprender no seu contacto.

(...) 

Aliás, na prisão não havia grande estima pelo dinheiro nem pela riqueza, sobretudo se se considerarem os reclusos em conjunto. E mesmo, passando-os em revista um a um, não consigo recordar-me de ter visto um só humilhar-se pelo dinheiro.

in "Recordação da Casa dos Mortos", Fiódor Dostoiévski