terça-feira, 31 de agosto de 2010

Morte ao caractere


“Eis a segunda frase de The Harvest of Sorrow: Soviet Collectivization and the Terror-Famine [A Ceifa da Dor: A Colectivização Soviética e o Terror-Fome], de Robert Conquest:

No caso presente, podemos pôr isto em persepctiva se dissermos que nos actos aqui registados se perderam cerca de vinte vidas humanas, não por cada palavra, mas por cada letra deste livro.

Esta frase representa 3140 vidas. O livro tem 411 páginas.

“Comia-se estrume de cavalo, em parte porque muitas vezes continha grãos inteiros de trigo (1502 vidas). «Oleska Voitrikhovski salvou a sua vida e as da sua família… consumindo a carne de cavalos que tinham morrido na herdade colectiva de mormo e outras doenças» (2560 vidas). Conquest cita o romance ensaístico-documental de Vassili Grossman Forever Flowing: «E os rostos das crianças estavam envelhecidos, atormentados, como se elas tivessem setenta anos. E na primavera já não tinham rostos. Não, tinham umas cabeças de pássaros com bicos, ou cabeças de sapo – lábios finos, compridos – e algumas delas pareciam peixes, com as bocas abertas» (4720 vidas). E Grossman prossegue:

Num pavilhão havia uma espécie de guerra. Todos se vigiavam apertadamente… A mulher virou-se contra o marido e o marido contra a mulher. A mãe odiava os filhos. E num outro pavilhão o amor manteve-se inviolável até ao fim. Conheci uma mulher com quatro filhos. Contava-lhes contos de fadas e lendas para eles esquecerem a fome. Mal podia mexer a língua, mas tomava-os nuns braços que quase não tinha forças para erguer vazios. O amor vivia dentro dela. E as pessoas repararam que onde havia ódio se morria mais depressa. Mas a verdade é que o amor não salvou ninguém. Toda a aldeia pereceu até ao último habitante. Não restou vida alguma.

Ou seja: 10780 vidas. O canibalismo praticou-se em larga escala – e foi punido em larga escala. Nem todos esses lastimáveis antropófagos receberam o castigo supremo. No fim dos anos trinta, 325 canibais da Ucrânia cumpriam ainda penas perpétuas nos campos de escravos do Báltico.

A fome foi uma fome imposta: os camponeses eram desapossados dos seus alimentos. A 11 de Junho de 1933, o jornal ucraniano Visti louvava um polícia secreto “atento” por desmascarar e prender um “sabotador fascista” que tinha escondido pão num buraco sob um monte de forragem. Essa palavra, fascista. Cento e sessenta vidas.

Nestas páginas, preposições inocentes como de ou até representam, cada uma, o assassinato de seis ou sete grandes famílias. Há apenas um livro importante sobre este assunto: o de Conquest. Recorde-se: tem 411 páginas.”

In Koba, o Terrível – de Martin Amis (2002)

domingo, 29 de agosto de 2010

Sugestão de aditamento ao Código de Trabalho


I would prefer not to.
Bartleby (Herman Melville)

terça-feira, 24 de agosto de 2010

The Expendables - feios, velhos e maus

As palavras que mais ouvimos a propósito de The Expendables foram, por esta ordem, “nostalgia”, “vaidade” e por fim, “caricatura”. Estas servem para, na maioria dos casos, suportar o raciocínio que conduz à mediocridade do último filme de Sylvester Stallone.

Comecemos por esta última conclusão: “The Expendables é um filme medíocre”. Afirmá-lo implica assumir que a grande maioria das suas imagens e seus sons não possui qualidade mínima e que o filme se auto-encerra numa espécie de vazio. Ou, situar o critério em meia dúzia de factores que não são, de longe, a razão de ser do objecto em causa. Sabemos que a plot é mínimo, que o mundo de General Garza e James Munroe está hiper-simplificado (mesmo para os padrões de um filme de acção), que há diálogos risíveis e que a banda sonora é descuidada. E nesse sentido, de acordo, trata-se de um filme medíocre. (Mas quando é que, nesse sentido, os filmes de Stallone não foram “medíocres”?)

Mas está na cara que The Expendables não existe por causa disso, e aliás, quase pressupõe esse “descuido”. E, assim, qualificá-lo de medíocre é vê-lo pelo que ele não é, é ignorar uma série de coisas, é como dizer que Avatar também é um blockbuster medíocre sem mais e esquecer que é sobretudo o 3D que o justifica. Com a diferença de ser duvidoso que essa terceira dimensão acrescente alguma coisa à qualidade do filme em causa, ou por outra, como se o 3D de Avatar justificasse uma crítica só para ele, separável do próprio filme.

Depois de se sublinhar todos estes aspectos, The Expendables seria então um exercício de “nostalgia” motivado por uma “vaidade”e obsessão pela juventude do seu argumentista, realizador e protagonista.

Basta ver uns minutos quer de Rocky Balboa (2006), Rambo (2008), ou deste último The Expendables (2010) para perceber que todas essa personagens têm um pudor em auto representar-se como heróis de acção, auto ironizando a sua posição de caricatura, mantendo-se longe de qualquer romance que não platónico, tendo mesmo uma certa vergonha do próprio corpo (não é Stallone que está a tatuar no seu corpo, letra a letra, a palavra “expendables”?).

Obviamente que a chave destes três filmes capitaliza um sentimento de nostalgia face aos heróis em causa, e mais concretamente em The Expendables, a saudade das fórmulas do filme de acção dos anos 80. Agora, mais do que um exercício de hedonismo, Sylvester Stallone é um homem apanhado no “dilema do carpinteiro” que toda a vida fez cadeiras e agora lhe pedem para dominar design de interiores. Stallone só sabe fazer cinema assim, e essa honestidade desarmante faz mais pela alma dos seus últimos três filmes do que qualquer preocupação de verosimilhança (e repare-se, por exemplo, não é por Sam Worthington ter 34 anos que eu acredito mais nos seus saltos entre penhacos ou lutas com dragões). E o irónico é que essa obstinação do herói que recusa a reforma (o que não é novo, lembremo-nos de Wayne, Bogart, Cooper, etc, etc) e que possui marcas visíveis de decadência corporal, é algo que cai hoje, num tempo em que o cinema vive uma querela tecnológica e resiste ao seu desaparecimento analógico, como statement de um cinema onde os seus corpos são precisamente o que de mais vital e jovem possuem, a ideia de que a bad body is better than no body. E conversamente, “bad Shakespeare” também é melhor que “no Shakespeare”.

É precisamente a consciência dessa sua anacronia que permite que The Expendables não se feche num exercício camp de acção nostálgico. Nesta sua nova posição, Sylvester Stallone tem bastante mais a dizer no presente do que o ensimesmado “dantes é que era, dantes é que se faziam filmes a sério”. A comprová-lo está a forma como, a suportar as cenas de acção, não foi aproveitado o feeling de “let’s have some fun and kill some bad guys” que o all star team que Stallone reuniu permitia. Não há felicidade banana, mas também não há desgosto pelo que já não pode vir a ser. Há antes uma certa melancolia pela incapacidade do corpo, do qual Mickey Rourke é o oráculo, e inegavelmente cenas de acção que homenageiam uma certa ideia de raiva, agressividade, a tal atitude “comando” que espelham bem esse desgosto. E um desgosto assim não pode estar mais longe da mediocridade.


sábado, 21 de agosto de 2010

O sonho da pobreza

A segunda das nove colaborações entre Buñuel e o produtor Oscar Dancigers, e segundo filme do seu período mexicano, El Gran Calavera (1949) foi o primeiro filme do espanhol a ter estreia comercial em Portugal. Coincidência ou não, esta adaptação da popular peça homónima de Adolfo Torrado tem, na sua estrutura de farsa, um universo muito semelhante às comédias populares portuguesas dos anos 40. Mas ao contrário destas, a perversão que se lhe atribui, designadamente na inversão de classe social e crítica institucional, é muito mais de obsessão buñueliana, do que da própria fonte original. Nesse sentido o convite de Dancigers a Buñuel, apesar do fracasso de Gran Casino, filme anterior, no sentido de desconcentrar os poderes nas mãos de Fernando Leger (que queria co-produzir, realizar e protagonizar El Gran Calavera), não podia ter sido mais acertado. Porque afinal, sempre se produziu um objecto de “cinema normal”, como lhe chamava Buñuel, que, além de ter sido um sucesso comercial, possibilitou a força anímica para o segundo momento de viragem na sua carreira - Los Olvidados (1950).

Além do universo populista que explica as trocas e baldrocas na família Mata, há em El Gran Calavera um inusitado sentido de triunfo do amor e da justiça que justificam a comparação ao mundo da screwball (que está lá mas é o que menos funciona) e a uma inocência capriana. Tudo isto seria verdade senão fosse meia verdade, como dizia o outro. Nesta comédia de costumes, revisteira, chamemos-lhe mesmo sem medo, a inversão de papéis – a família rica tem de se fazer passar por pobre para dar uma “lição” a Ramiro, o patriarca, que desde que ficou viúvo bebe incansavelmente, destruindo o seu património e saúde – converte-se depois numa segunda lição, desta feita sobre o valor da materialidade. Agora com os papéis invertidos, onde os “falsos pobres”, todos eles com tiques de riqueza, ficam convencidos que Ramiro perdeu mesmo a fortuna.

E, se bem que à custa do seu próprio corpo, é Ramiro que embriagado rejeita lucidamente o casamento da filha com um interesseiro e denúncia ainda o “problema” dos seus parentes (a cunhada hipocondríaca, o irmão indigente, o filho que não quer estudar e a filha que vive num sonho romântico) vivendo todos à sombra do seu dinheiro. Para Ramiro derrotar a bebida “basta” o simbólico suicídio de Ramiro pobre, quando salta de um prédio e cai no andar de baixo, assentando os pés na terra. Mas tudo isto é claro e num ápice. É só depois que Ramiro convence os parentes que perdeu mesmo a fortuna e Buñuel já pode “explicar” à vontade as virtudes da pobreza, curando os parentes dos verdadeiros dilemas de burguesia, nos quais pobreza e trabalho são maçadores e só para suportar se for a fingir.

Se o lado material do estatuto burguês está arrumado, falta lidar com o lado emocional, o estatuto de classe. E é este o dilema da filha Virginia, porque ela é de todos a que “sempre teve bom coração” No final, na aclamada sequência onde Virginia não casa com o namorado rico devido à interferência dos slogans popularuchos que saem do altifalante do namorado pobre, imiscuindo-se no discurso do padre, mais do que um novo ataque à ideologia cristã, há a reafirmação de um novo “estatuto”: o de que os estatutos valem menos do que gelados de chocolate e carros que não pegam. Mas, entretanto, a concretização do amor sai sempre furada, excepto no final. Mas aí claro, e isto é Buñuel amigos, já não vemos.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Baby TV (II)

Sim, nunca me passaria pela cabeça desmerecer a Baby TV. Esta é por certo um exemplo que se pode aplicar mesmo antes do 3D. Muitos dos blockbusters mais desmiolados produzem um estado de imersão na forma e na cor que parecem mesmo produzir essa estupefacção, como se o cinema “narrativíssimo” suprisse o que quer contar pela agitação do que pode mostrar. Se bem que, desconfio, esta posição não é só de um cinema a compensar a sua “pobreza”, mas também lida com a forma como cada geração aprendeu a ler imagens. Como se se introduzisse uma lógica de skim reading (quem é que já tem tempo para ler coisas de fio a pavio?) à forma de processar as imagens. Cinema en passant?

Quanto ao 3D é verdade que já se instalou uma rotina facilitista que tem sobretudo a preocupação de pôr coisas aos pulos. Lembro-me que quando assisti ao primeiro filme nesta nova vaga 3D (Avatar), o que mais me impressionou foi o anúncio da Vodafone no início com as pipocas aos saltos a entrarem-me pelo nariz. Se é para espantar, que se vá directo ao assunto. Que o 3D traz ainda muito pouco ao cinema é bem verdade. Se poderá fazer mais com a integração da dita técnica na linguagem e discurso cinematográfico não me parece chocante que aconteça. Poderá é já nem se chamar 3D, mas outra coisa qualquer…

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Baby TV

Isto aqui é bem verdade. Mas como sou optimista vou acrescentar a palavra "ainda". Quanto à infantilização ela é uma inerência do discurso de massas e, nesse sentido, um blockbuster não é menos propenso a ser infantil, do que a Biblia é a ser lida como "mera" colecção de parábolas.

"Definitivamente, as 3D são ainda uma espécie de Baby TV para adultos. Símbolo perfeito para a “grande regressão”, corolário do processo de deliberada infantilização do espectador que já vem de há muitos anos." - Luís Miguel Oliveira

domingo, 15 de agosto de 2010

Revolução permanente = orgasmo permanente

Sendo ou não um estereótipo ocidental, pouco importa - o de que o cinema da Europa de leste dos anos 60, 70 era sobretudo, ou quase só política, com Vera Chytilová, Miklós Jancsó e Dušan Makavejev como exemplos tradicionais – ao ver W.R. - Misterije organizma (1972) é quase obrigatório pensar em “que cinema fica depois das ideologias”? A visão, confortável admitimos, de hoje dá-nos a impressão de que W.R. é incontestavelmente uma obra importante menos pela sua expressão brechtiana e montagem eisenstainiana, que assim recuperadas tem um cunho desusado, mas antes como viril testemunho das inúmeras referências e agremiações que o filme de Makavejev contém.


No início dos anos 70, as réplicas da geração make love not war sentidas pelos novos cinemas europeus justapuseram-se na perfeição ao interesse que o cineasta com formação em psicologia Dejan Makavejev sentia por aquele que se converteu numa espécie de padroeiro daquela geração, Willem Reich (o WR do título). Discípulo de Freud, Reich ganhou importância mundial ao escrever em 27 The Function of the Orgasm. Três anos mais tarde, já depois de se ter juntado ao partido comunista, editaria The Mass Psychology of Fascism, no qual estabelece uma relação importante entre a libertação da energia sexual e a convivência sã. Ou por outras palavras, o fascismo como sintoma da repressão sexual (a repressão de energias vitais seria mais tarde recanalizada para estados de enfemidade, designadamente o cancro, no imprescindível Ilness as Metaphor de Susan Sontag). A visão de Reich valeu-lhe a expulsão da Alemanha nazi e mesmo do partido comunista, sendo que a partir do final dos anos 30 sediou-se nos EUA onde faria experiências sobre o poder regulador do orgasmo e da libido na vida do ser humano. É este seu período final com a perseguição estatal e condenação, durante o qual viria a falecer, que impulsiou Makevejev a W.R..


Se a tese de Reich é desde o início a tese Makevejev – a liberdade sexual é um correlato da liberdade política – há no filme, para além da equiparação dos dois universos, uma espécie de transferência desse fluir orgástico para a sua estrutura. E se isso foi, como dissemos, sintomático da História mas também da História do cinema, é também verdade que a sua leitura ideológica, ora comunista, ora revisionista, não permitiu uma recepção apaziguadora. Com acusações semelhantes às feitas a Godard no seu período maoista, Dejan Makevejev teve mesmo de sair da Jugoslávia, tendo o seu filme sido banido no país durante 16 anos


Mas para terminar esta questão da política nos Mistérios do Organismo, que aqui parece ser uma clara questão do gato à caça da própria cauda, lembre-se que o “seu” revisionismo e “contradição” – a sua personagem principal Milena, verdadeira instigadora da revolução política e sexual comunista, termina sendo decepada pelos patins de um cidadão russo, logo após ter atingido com ele um verdadeiro orgasmo – é prolongado pelo “catequismo comunista e reichiano” recorrente no filme, saído da cabeça decepada de Milena. A isto se juntam as claríssimas imagens de arquivo de filmes de propaganda comunista e nazi, que associam ambos os lados da barricada ao excesso e à inibição sexual.


Contudo essa vontade libertadora dir-se-ia não fez bem ao cinema de Makavejev. O labirinto intrincado que este construiu como imagem sua desde Nevinost bez zastite (1968) ganha em W.R. uma dimensão de espalhafato inocente. A articulação entre o lado documental – as imagens de arquivo das experiências e célebres workshops de bioenergia de Reich nos EUA – e o ficcional – a história jugoslava de amor e revolução entre Milena e o patinador russo – carregam pouco mais do que uma ilustração. A ficção a ferros a explicar o real, entrecortada com os happenings do poeta Tuli Kupferberg filmados em 16 mm nas ruas de Nova Iorque, dão a sensação de que tudo era, foi, possível, na visão utópica que Makevejev concebeu do sexo e da política, acabando por sublinhar precisamente o oposto que W.R. - Misterije organizma pretendia demonstrar. Que o orgasmo tal como a revolução não são estados de permanência.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

The Pawnbroker - Sidney Lumet (1964)

Se o crime compensa, e isso já o sabíamos da História e das histórias do cinema, parece ser da mais elementar das lógicas que o bom comportamento, a honestidade, o não façam. E a razão de começar por tremenda generalidade é que não nos parece existir outra explicação para que um cineasta como Sidney Lumet, com meio século de carreira, e mais de quatro dezenas de obras que angariaram cinquenta nomeações aos óscares, não seja (ainda) hoje um dos “grandes”. O deslumbramento que constituiu para Lumet passar a trabalhar em cinema (recorde-se que este fora com John Frankenheimer, Arthur Penn, Robert Mulligan, Alan Pakula, a geração de cineastas que vinda da televisão, sobretudo feita ao vivo, vem tentar ressuscitar o cinema americano depois da falência do sistema de estúdios, tentando recuperar a audiência do clássico que se lhes tinha escapado para esse outro medium) traduziu-se num excessivo voluntarismo que se manteve na base do seu cinema. Por outro lado, tal voluntarismo estende-se a um discurso optimista e redundante sobre a forma de fazer cinema: ficaram célebres as suas palavras em Who the Devil Made It?, livro de entrevistas de Peter Bogdanovich, comparando a feitura de um filme à justaposição de azulejos num mosaico, ou ao facto das obras primas serem “acidentes que acontecem”, com maior ou menor preparação. Desta forma, esta visão fez dele um “autor” ao qual se lhe reconhecem entusiasmo pela inovação estilística, até coerência temática - a claustrofobia espacial e psicológica, a corrupção do sistema político e judicial, as entranhas da sua cidade de Nova Iorque – mas face ao qual parece impossível ver, ou mesmo só vislumbrar, a sua verdadeira personalidade. Quem é Sidney Lumet, artista?

Por outras palavras, cada filme de Lumet parece ter entre si e o próprio realizador sempre alguma outro factor de atenção e “distracção” que mantém a referida pergunta irrespondida. Sejam eles, o domínio sobre a concentração espacial (12 Angry Men, Dog Day Afternoon), a fidelização aos textos originais nas adaptações teatrais (Long Day's Journey into Night, The Fugitive Kind) e literárias (The Verdict), o histrionismo estilístico (The Pawnbroker), a temática inovadora (Serpico) ou as grandes performances dos seus actores (Murder on the Orient Express, The Hill), só para dar alguns exemplos.


Ora, The Pawnbroker, obra que corresponde ao terminus de um primeiro período de grande sucesso para Lumet (que não pode ter melhor começo do que com 12 Angry Men, uma das mais auspiciosas primeiras obras de que o cinema tem memória), é dessa distracção sugestivo exemplo. À data de estreia da adaptação do romance de Edward Lewis Wallant, e mesmo mais tarde, falou-se de tudo e mais alguma coisa (do exibicionismo visual de Lumet, da subliminariedade da montagem, da estranheza da banda sonora de Quincy Jones, dos escandalosos seios da actriz negra Thelma Oliver, da importância /arrogância na abordagem às memórias do holocausto pelo novo cinema americano) perdendo-se algures aí no meio, o próprio filme. Ou perdendo-se pelo menos aquilo que valia a pena discutir.

Peguemos apenas em três dos exemplos mais reveladores.
É inegável a importância de The Pawnbroker por ter sabido incorporar pela primeira vez, de forma tão pungente, para a ficção visual norte-americana, as memórias pós-traumáticas e vivências dos campos de concentração. E sublinhemos o verbo incorporar pois, ao contrário do poder evocativo das imagens documentais de Nuit et Bruillard, de Alain Resnais para uma memória colectiva, ou do que “não podia ser visto” senão emocionalmente em Hiroshima Mon Amour, na obra de Lumet a distância geográfica (e mesmo histórica) não parece ter permitido ultrapassar essa relação de exterioridade face ao grande acontecimento. As memórias do judeu Sol Nazerman que o fazem viver “morto” não têm suficiente força expressiva para ultrapassarem o presente nova iorquino do prestamista. Ver as imagens da memória do holocausto relembradas por Sol equivalem a uma experiência abstracta de trauma. Ou seja, primeiro tiro no pé: The Pawnbroker não é, como é claro, um filme sobre o holocausto. Utiliza antes essa dimensão (como usa por exemplo, Lumet, o sistema judicial em 12 Angry Men, para nos falar de tensão) para a sua “message”: a tendência do ser humano para a apagamento e repressão das experiências limite. E a suprema tristeza que invade todo o filme não é feita do terror e do massacre nos campos de concentração, mas antes pela incompreensão que o fechamento de Sol provoca nos que o rodeiam. A tristeza vem-nos da alegria de Jesus Ortiz, que o vê como um modelo (é Sol que lhe “ordena” que o assalte quando fala da única coisa que interessa, o dinheiro). Vem-nos do esforço de compreensão de Marylin (o There’s nothing I could do de Sol transforma-se no There’s nothing I can’t do, de Marylin). Vem-nos, em última análise, da impossibilidade de explicar como nos doem as coisas.

Um segundo aspecto que dividiu, e divide, os que viram The Pawnbroker, prende-se com o marcado contraponto entre a apatia do seu protagonista e a energia do seu estilo visual, cuja expressão máxima está na forma como Lumet decidiu introduzir as memórias do holocausto. A curtíssima duração dos planos que nos trazem essoutro tempo e espaço têm deliberadamente uma dimensão subliminar. Os principais detractores do filme viram neste mecanismo, por um lado, uma arrogância autoral, e por outro, um desrespeito à solenidade de um tema que não se devia expôr sob olhares tão explícitos e exibicionistas. E percebem-se as razões. Sobretudo motivadas pela desconfiança das técnicas herdadas da publicidade e do facto dessas intromissões da memória gerarem um simplismo nas associações. Como na cena em que uma cliente quer empenhar um anel e Sol se recorda dos anéis a serem tirados das mãos dos judeus nos muros dos campos de concentração. Ou mesmo de toda a sequência inicial cujo slow motion e ausência de som evidenciam a traço grosso a diferença de estado de espírito entre um passado e um presente. Mas mais uma vez, todas estas discussões parecem ter uma natureza periférica face a The Pawnbroker. A técnica de narracção pós-traumática utilizada por Lumet, os flashbacks literais, ou por outra, flash flashbacks ilustram, como declarou o realizador à época, a forma que temos de aceder (umas vezes involuntariamente outras vezes por associação) a uma memória recalcada. Desta forma, a um instrumento cinematográfico (o flashback) justapunha-se um conceito psicanalítico (o flash), sendo que mais importante que a representação de uma experiência traumática (as breves imagens) era a interrupção dessa mesma representação (uma espécie de anti-imagem). Muito interessante é a forma com Lumet explica que o conceito que esteve subjacente ao uso desta técnica foi o de que para o protagonista esse passado não estava lá atrás mas intrometia-se, ainda que por breves momentos, no seu presente. Por isso, essa ideia de intromissão de um passado no presente foi construída para o espectador. Ou seja, embora a percepção humana só registe a partir do mínimo de três fotogramas, nos flashes iniciais usaram-se mais para mostrar a ideia ao espectador. Depois voltou a reduzir-se o número de fotogramas em cada flashback para ir novamente ao longo do desenrolar da história aumentando a duração dessas memórias, à medida que Sol Nazerman vai tendo cada vez menos controlo sobre o presente. Seja como fôr, para a História ficou um tipo de flashback nunca antes visto neste cinema, que contrariava as técnicas habituais da introdução ao passado através dos dissolves ou da introdução por palavras, e que rapidamente foi incorporado no reportório narrativo do cinema mainstream como forma de aceder a uma memória.

Por fim, o terceiro grande alarido. Pela primeira vez um filme conseguia escapar ao cada vez mais moribundo código Hays mostrando os seios nus da actriz Thelma Oliver. Na realidade o primeiro filme a conseguir mostrar semelhante parte da anatomia feminina fora Seconds, de John Frankenheimer, de 1964, mas este acabara por ver essa parte amputada da versão final. Assim, ainda hoje permanece o mistério sobre como conseguiu Lumet iludir a censura. Há pelo menos duas teorias. Uma diz que terá sido pelo facto da actriz em questão ser negra e daí se ter desvalorizado o assunto (embora numa sequência de flashback também surjam uns fotogramas da mulher de Sol, branca, de busto descoberto). Por isso, esta teoria talvez não tenha muita razão de ser. A segunda aponta para o facto, mais plausível, de o tema importante da obra justificar a introdução do nu. A ideia era que na cena em causa a valorização seria dada ao alheamento emocional de Sol, sendo que o corpo nu de Thelma surgiria despojado de qualquer carga sexual. O que também é discutível. O que é certo é que tanta controvérsia sobre os ditos seios deixou a coberto a discussão sobre o outro corpo, o que verdadeiramente interessa, aquele que se despe de forma muito mais radical, o de Sol Nazerman. Na verdade, The Pawnbroker nada mais é do que a história do seu corpo e do seu progressivo desvelo. Inicialmente inerte e aprisionado na sua morada suburbana ou por trás do balcão da sua loja, Nazerman vive alheio a qualquer tipo de sentimento, celebrando a não morte (-Today is an anniversary. -What happened? -I didn’t die). Insensível aos corpos presentes, são os ausentes, aqueles que já não podem estar, que lhe exigem que reclame para si o seu próprio corpo. Por isso, a explosão progressiva da magnífica representação de Rod Steiger é o corpo de Sol a começar a sentir medo e angústia de viver nos slums, a levar pancada por recusar, a existir fora da sua memória. E a única saída, o único final feliz, de preservação do corpo pela parcial destruição do mesmo, é aquela em que a cruxificação deixa de ser um acto de altruísmo e passa a acto de egoísmo sobrevivente.

O feitiozinho de Luis Buñuel (V)

"When we were growing up, we instinctively disliked homosexuals, as my response to the innuendoes about Lorca would suggest. Once I even played the agentprovocateur in a public urinal in Madrid, a role that in hindsight seems absurd and embarrassing. While my cohorts waited outside, I entered the cubicle and began baiting whoever was inside. One evening, a man responded; I ran outside, and the minute he emerged, we gave him a sound thrashing."

in My Last Breath - Luis Buñuel

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Sem crédito e no inferno

Na última cena de Drag Me to Hell, Christine Brown (Alison Lohman) confessa, imperial, ao seu namorado que a não renovação de crédito à idosa sinistra Sylvia Ganush não foi um mero procedimento imperativo mas sim uma decisão sua, implacável. Nesse momento, aquilo que tinha sido o tradicional enredar sádico da inocente mosca nas malhas do mal, ou seja, a maldição de Alison como algo precipitado e injusto, transforma-se, e com ele “engrossa” o último filme de Sam Raimi, num tale moral que opõe decisões de carreira/amor (porque o amor do namorado Clay implica um estatuto social) e decisões de justeza moral. Essa inversão completa-se quando a galeria de personagens circundantes a Alison, com que Raimi constrói o seu dilema moral, já não a fazem vítima em terra mas antes alma “danada”. E nesse sentido há uma perversão moral que acompanha esta interessante noção de conto: todos, os indecisos (o namorado), os ambiciosos (o colega de trabalho), os gananciosos (o patrão), os preconceituosos (os pais do namorado) ou mesmo os terminais (o casal no bar), têm na sua imperfeição uma condição que os define como seres humanos e que não envolve, como no caso de Alison, uma escolha e sobretudo a mudança de um estatuto.

Enquanto exercício de terror há uma evidência que é necessário ser reafirmada: Drag me To Hell faz da trilogia Spider Man uma espécie de détour desnecessário na carreira de Sam Raimi, denotando um claro prolongamento formal e sobretudo humorístico entre a trilogia Evil Dead e o terror físico e bem-disposto daquele. Partindo dos pequenos objectos - o lenço, a dentadura, o bolo receita do campo que "vê" Alison no seu novo eu, magro e burguês, o botão, a mosca - o inferno nas pequenas coisas (ou não fosse este uma história sobre a perversão da materialidade), Raimi encontrou o lugar para o seu terror: algures entre o dilema pessoal da sua protagonista e o visualismo grotesco como espaço de ironia (a Peter Jackson de Braindead e Bad Taste falhava-lhe o lado do dilema). E aqui reside, entre estes, a sua eficácia, uma vez que assumido o caricatural - e que mais o pode fazer do que um filme onde a não concessão de crédito é literalmente sinónimo de terror? – a expectativa do que pode causar medo diminui. Mas não desaparece. E Drag Me to Hell consegue causá-lo, o que é hoje, sem dúvida, um feito.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Perder não é diferente de ganhar

Entre Las Hurdes e este Gran Casino (1947), primeiro dos vinte filmes que Buñuel faria no Mexico, passaram-se catorze anos e nestes, uma guerra civil, quatro filmes populares produzidos em Espanha, um cargo de adido cultural em Paris, a montagem de filmes anti-nazi no Museu de Arte Contemporânea de Nova Iorque e dois trabalhos em Hollywood. O primeiro como representante da Republica espanhola para supervisionar filmes sobre a Guerra Civil e o segundo à frente das dobragens espanholas de filmes da Warner. A aventura americana terminou com o livro The Secret Life of Salvador Dali, no qual o pintor viria a denunciar Buñuel como comunista. Exilado, sem dinheiro, decidiu aceitar um pedido do produtor Oscar Dancigers para filmar no Mexico.

Baseado numa história de Michel Veber e argumento de Mauricio Magdaleno, este “melodrama musical”, com uma estrutura a lembrar um western de série B, era sobretudo um veículo para os famosos cantores mexicanos Jorge Negrete e Libertad Lamarque. E é sobretudo por isso que costuma ser lembrado, sendo que Buñuel admitiu que estas histórias eram uma forma de voltar à realização e sobreviver, pelo que em tudo o mais o aborreciam de morte. E esse aborrecimento deriva, no caso do plot de Gran Casino, – uma mulher argentina que vem ao Golfo do México ter com o seu irmão que desapareceu devido a um conflito com o dono de um casino por causa de uns poços de petróleo – de tudo ser previsível, com excepção da inocência dos números musicais, crowdpleasers do público mexicano. Contudo, faz parte da arqueologia crítica, no que diz respeito à filmografia de um cineasta maior como Buñuel, ver traços autorais em obras suas consideradas “menores”.

E os momentos de distracção buñueliana não são tão poucos como isso, sendo que ilustrativo desse seu “desinteresse” é, sem dúvida, a cena em que a personagem de Negredo se enfada com a cleptomaníaca Nanette e Buñuel concentra a atenção da cena no reflexo de uma recipiente de gelo, como imagem de desfoque. Ou o olhar gozão do espanhol sobre os tradicionais números musicais: numa das ocasiões as bailarinas empunham lanternas e em quase todos os outros, do nada, surge o típico coro mexicano de bigode, seja a canção num palco ou numa prisão. Mas mais do que marcas que estão à vista para quem as quiser ver, Gran Casino é também outro exemplo das acções da burguesia exploradora: na “casa amarilla” vive o verdadeiro vilão, o responsável pelas mortes e desaparecimentos, um executivo, claro está, alemão, que quer à força comprar os poços. Poços que nunca chegarão a reabrir, noutro exemplo dos famosos “objectivos inconcretizados” de Buñuel. Mas aqui há uma recompensa “burguesa”, um outro lado. Como diz Mercedes no final “algo gañamos com nuestra derrota” e o que se ganhou foi o amor entre Mercedes e Gerardo. O único jogo importante para o público mexicano a ser jogado no lugar de derrotas que foi o Gran Casino.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O feitiozinho de Luis Buñuel (IV)


"Perhaps Buñuel’s most reprehensible act in relation to his wife involved her beloved piano, a gift from Jeannette Alcoriza, wife of the scriptwriter, Luis Alcoriza. This was an instrument that Jeanne enjoyed playing everyday, as Buñuel well knew, but one evening, after dinner and after drinking a copious amount of alcohol, the daughter of a family friend suggested that Buñuel give her the piano in exchange for three bottles of champagne. Jeanne initially thought that this was a joke, but to her horror the exchange took place on the following day (Rucar de Buñuel, 106). Despite her feelings of outrage at such a thoughtless act, she remained silent, as she invariably did when her husband treated her in the ways described earlier. Later, he regretted what he had done and, as compensation, bought her – typically – a sewing machine and – more thoughtfully – an accordion, but such gifts can barely excuse Buñuel’s inconsiderate behaviour. The bitterness that Jeanne must have felt surely remained with her for the rest of her life, for when she produced her autobiography she chose to call it Reminiscences of aWoman Without a Piano (Memorias de una mujer sin piano).

in A Companion to Luis Buñuel, Gwynne Edwards

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Inocência Desprotegida




Innocence Unprotected, filmado em 1942, é considerado o primeiro filme sonoro jugoslavo. Não havia dúvidas que o regime nazi, especialista em propaganda do corpo, nunca teria aceitado este melodrama popular feito e mostrado clandestinamente numa Jugoslávia ocupada. Não porque seja um filme abertamente nocivo no seu olhar político, mas sobretudo porque oferece nas sequências dos feitos atléticos de Dragoljub Aleksic, seu realizador, e na altura símbolo de força e rectidão sérvia, uma inocência desarmante em relação à qual não se teria sabido muito bem como responder. Entre os “bíceps” de Leni Riefenstahl e os do atleta Dragoljub iria certamente uma distância que não era do domínio do corpo mas antes uma intenção que é mais a história e menos o cinema a determinar.

Contudo, estas são considerações que apenas o part-pris de ter acesso as estas imagens através do filme de Makavejev feito em 1968 permitem. Makavejev viu em Dragoljub um homem que admirava mas sobretudo uma potencialidade visual nos seus feitos registados no filme original (Aleksic foi o primeiro homem a andar pendurado pelos dentes num avião ou por ter sobrevivido a uma queda de vinte metros). A esta noção de heroicidade simplória que fascinou Makavejev, juntavam-se obviamente as limitações técnicas que implicava fazer um filme sonoro, sem meios, experiência e em condições políticas adversas. Daqui resultam os naturais erros de raccord, a excessiva imobilidade da câmara ou o artificialismo nas representações que o primeiro filme sonoro ostenta.

Seja como for, foi esta “inocência desprotegida” que Makavejev retrabalhou e transformou em Nevinost bez zastite. Makavejev procurou os actores que tinham participado no filme de 42, recolhendo depoimentos e fazendo-os regressar aos locais de filmagem e entrecortou com planos do filme original, muitas vezes tintados à mão por si e ainda imagens de arquivo de edifícios destruídos e corpos deixados pela invasão e destruição de Belgrado.


O resultado de toda esta "montagem de atracções" (Dusan admite-o) é que Nevinost contém em si uma dimensão de justiça reparadora - a reintegração das imagens que Dragoljib filmou - ainda que entretanto essa inocência inicial se tenha transformado numa outra coisa: num objecto pop entre a ficção e o documentário, de propaganda brechtiana que simultaneamente ironiza e afirma o alcance da acção propagandística. Dir-se-ia que apenas um homem como Makavejev que sabe o que é filmar sob pressão, não soube outra coisa, sob sombras censórias, poderia operar de forma tão descomplexada a ingenuidade do filme inicial.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

A “meia luz” de Gaslight: entre o sadismo e o saudosismo

É um saudável exercício de sadismo imaginar Lars Von Trier, o cineasta decepador de clitóris e vertedor de lágrimas femininas, a filmar a galeria de heroínas da obra de George Cukor (com Eliza Doolitle à cabeça, claro está). A antinomia entre os dois é uma ideia interessante, já feita e um pouco imobilizadora. Contudo, quem vir Gaslight, o “mindfucking gothic tale” que o cineasta das mulheres fez em 1944, e que valeu o primeiro oscar de melhor actriz a Ingrid Bergman, certamente verá nela, a actriz, e nele, o cineasta, um inusitado talento para o martírio. Bergman é Paula, uma mulher que assistiu à morte da tia no nº 9 da Angel Street em Londres, e que resolve passar um tempo em Itália para recuperar do episódio. É lá, nas aulas de canto, que se apaixona por Gregory (excepcional presença de Charles Boyer). Casam-se e ele convence-a a viver na antiga casa em Londres sob pretensa razão de gostar da cidade. O que se segue é Gregory a tentar enlouquecer Paula por motivos que no final se revelarão, obviamente. A questão é: não é novo que um homem enlouqueça uma mulher. No cinema, quero dizer. Aliás, Ingrid Bergman quase que repetiu o papel um ano depois em Notorious de Hitchcock. Agora, o interessante é que em Paula, o progressivo desmoronamento da sua sanidade mental, sem que a ela seja dado qualquer impulso de salvação, é um dos elementos que contribui para o que é uma “imobilidade emocional" do espectador e consequente sinal de envelhecimento de Gaslight. Inversamente, com as devidíssimas diferenças, a moldagem de expectativas que gente como Haneke e Amat Escalante faz é “salutar” exercício moderno e visionário. Estranho. Como pode o mesmo estatismo, a mesma expectativa quebrada, ser ora velha, ora nova?

Seja como for, Gaslight envelheceu mesmo. A moral vitoriana na relação homem / mulher, a ausência de contorno do argumento - Cukor poderá até saber filmar como Hitchcock, mas não mantém o investimento dramático - são tudo sinais da sua imobilidade no tempo. Contudo, para cada elemento imóvel há um outro que se mexe: Gaslight é ainda um interessante exercício atmosférico onde a Londres nocturna e a mansão, com as lâmpadas do título a desenhar as sombras do gótico, ganham contornos de personagem. E embora se veja sobretudo um interesse de Cukor em filmar a cena de lirismo final e redentor, o certo é que é também a câmara deste que moderniza o filme. No interior teatralizado da mansão só esse seu movimento mimou o que o olhar de Bergman mostrava: o vai-vem de uma mente entre a sanidade e a loucura.