quarta-feira, 11 de agosto de 2010

The Pawnbroker - Sidney Lumet (1964)

Se o crime compensa, e isso já o sabíamos da História e das histórias do cinema, parece ser da mais elementar das lógicas que o bom comportamento, a honestidade, o não façam. E a razão de começar por tremenda generalidade é que não nos parece existir outra explicação para que um cineasta como Sidney Lumet, com meio século de carreira, e mais de quatro dezenas de obras que angariaram cinquenta nomeações aos óscares, não seja (ainda) hoje um dos “grandes”. O deslumbramento que constituiu para Lumet passar a trabalhar em cinema (recorde-se que este fora com John Frankenheimer, Arthur Penn, Robert Mulligan, Alan Pakula, a geração de cineastas que vinda da televisão, sobretudo feita ao vivo, vem tentar ressuscitar o cinema americano depois da falência do sistema de estúdios, tentando recuperar a audiência do clássico que se lhes tinha escapado para esse outro medium) traduziu-se num excessivo voluntarismo que se manteve na base do seu cinema. Por outro lado, tal voluntarismo estende-se a um discurso optimista e redundante sobre a forma de fazer cinema: ficaram célebres as suas palavras em Who the Devil Made It?, livro de entrevistas de Peter Bogdanovich, comparando a feitura de um filme à justaposição de azulejos num mosaico, ou ao facto das obras primas serem “acidentes que acontecem”, com maior ou menor preparação. Desta forma, esta visão fez dele um “autor” ao qual se lhe reconhecem entusiasmo pela inovação estilística, até coerência temática - a claustrofobia espacial e psicológica, a corrupção do sistema político e judicial, as entranhas da sua cidade de Nova Iorque – mas face ao qual parece impossível ver, ou mesmo só vislumbrar, a sua verdadeira personalidade. Quem é Sidney Lumet, artista?

Por outras palavras, cada filme de Lumet parece ter entre si e o próprio realizador sempre alguma outro factor de atenção e “distracção” que mantém a referida pergunta irrespondida. Sejam eles, o domínio sobre a concentração espacial (12 Angry Men, Dog Day Afternoon), a fidelização aos textos originais nas adaptações teatrais (Long Day's Journey into Night, The Fugitive Kind) e literárias (The Verdict), o histrionismo estilístico (The Pawnbroker), a temática inovadora (Serpico) ou as grandes performances dos seus actores (Murder on the Orient Express, The Hill), só para dar alguns exemplos.


Ora, The Pawnbroker, obra que corresponde ao terminus de um primeiro período de grande sucesso para Lumet (que não pode ter melhor começo do que com 12 Angry Men, uma das mais auspiciosas primeiras obras de que o cinema tem memória), é dessa distracção sugestivo exemplo. À data de estreia da adaptação do romance de Edward Lewis Wallant, e mesmo mais tarde, falou-se de tudo e mais alguma coisa (do exibicionismo visual de Lumet, da subliminariedade da montagem, da estranheza da banda sonora de Quincy Jones, dos escandalosos seios da actriz negra Thelma Oliver, da importância /arrogância na abordagem às memórias do holocausto pelo novo cinema americano) perdendo-se algures aí no meio, o próprio filme. Ou perdendo-se pelo menos aquilo que valia a pena discutir.

Peguemos apenas em três dos exemplos mais reveladores.
É inegável a importância de The Pawnbroker por ter sabido incorporar pela primeira vez, de forma tão pungente, para a ficção visual norte-americana, as memórias pós-traumáticas e vivências dos campos de concentração. E sublinhemos o verbo incorporar pois, ao contrário do poder evocativo das imagens documentais de Nuit et Bruillard, de Alain Resnais para uma memória colectiva, ou do que “não podia ser visto” senão emocionalmente em Hiroshima Mon Amour, na obra de Lumet a distância geográfica (e mesmo histórica) não parece ter permitido ultrapassar essa relação de exterioridade face ao grande acontecimento. As memórias do judeu Sol Nazerman que o fazem viver “morto” não têm suficiente força expressiva para ultrapassarem o presente nova iorquino do prestamista. Ver as imagens da memória do holocausto relembradas por Sol equivalem a uma experiência abstracta de trauma. Ou seja, primeiro tiro no pé: The Pawnbroker não é, como é claro, um filme sobre o holocausto. Utiliza antes essa dimensão (como usa por exemplo, Lumet, o sistema judicial em 12 Angry Men, para nos falar de tensão) para a sua “message”: a tendência do ser humano para a apagamento e repressão das experiências limite. E a suprema tristeza que invade todo o filme não é feita do terror e do massacre nos campos de concentração, mas antes pela incompreensão que o fechamento de Sol provoca nos que o rodeiam. A tristeza vem-nos da alegria de Jesus Ortiz, que o vê como um modelo (é Sol que lhe “ordena” que o assalte quando fala da única coisa que interessa, o dinheiro). Vem-nos do esforço de compreensão de Marylin (o There’s nothing I could do de Sol transforma-se no There’s nothing I can’t do, de Marylin). Vem-nos, em última análise, da impossibilidade de explicar como nos doem as coisas.

Um segundo aspecto que dividiu, e divide, os que viram The Pawnbroker, prende-se com o marcado contraponto entre a apatia do seu protagonista e a energia do seu estilo visual, cuja expressão máxima está na forma como Lumet decidiu introduzir as memórias do holocausto. A curtíssima duração dos planos que nos trazem essoutro tempo e espaço têm deliberadamente uma dimensão subliminar. Os principais detractores do filme viram neste mecanismo, por um lado, uma arrogância autoral, e por outro, um desrespeito à solenidade de um tema que não se devia expôr sob olhares tão explícitos e exibicionistas. E percebem-se as razões. Sobretudo motivadas pela desconfiança das técnicas herdadas da publicidade e do facto dessas intromissões da memória gerarem um simplismo nas associações. Como na cena em que uma cliente quer empenhar um anel e Sol se recorda dos anéis a serem tirados das mãos dos judeus nos muros dos campos de concentração. Ou mesmo de toda a sequência inicial cujo slow motion e ausência de som evidenciam a traço grosso a diferença de estado de espírito entre um passado e um presente. Mas mais uma vez, todas estas discussões parecem ter uma natureza periférica face a The Pawnbroker. A técnica de narracção pós-traumática utilizada por Lumet, os flashbacks literais, ou por outra, flash flashbacks ilustram, como declarou o realizador à época, a forma que temos de aceder (umas vezes involuntariamente outras vezes por associação) a uma memória recalcada. Desta forma, a um instrumento cinematográfico (o flashback) justapunha-se um conceito psicanalítico (o flash), sendo que mais importante que a representação de uma experiência traumática (as breves imagens) era a interrupção dessa mesma representação (uma espécie de anti-imagem). Muito interessante é a forma com Lumet explica que o conceito que esteve subjacente ao uso desta técnica foi o de que para o protagonista esse passado não estava lá atrás mas intrometia-se, ainda que por breves momentos, no seu presente. Por isso, essa ideia de intromissão de um passado no presente foi construída para o espectador. Ou seja, embora a percepção humana só registe a partir do mínimo de três fotogramas, nos flashes iniciais usaram-se mais para mostrar a ideia ao espectador. Depois voltou a reduzir-se o número de fotogramas em cada flashback para ir novamente ao longo do desenrolar da história aumentando a duração dessas memórias, à medida que Sol Nazerman vai tendo cada vez menos controlo sobre o presente. Seja como fôr, para a História ficou um tipo de flashback nunca antes visto neste cinema, que contrariava as técnicas habituais da introdução ao passado através dos dissolves ou da introdução por palavras, e que rapidamente foi incorporado no reportório narrativo do cinema mainstream como forma de aceder a uma memória.

Por fim, o terceiro grande alarido. Pela primeira vez um filme conseguia escapar ao cada vez mais moribundo código Hays mostrando os seios nus da actriz Thelma Oliver. Na realidade o primeiro filme a conseguir mostrar semelhante parte da anatomia feminina fora Seconds, de John Frankenheimer, de 1964, mas este acabara por ver essa parte amputada da versão final. Assim, ainda hoje permanece o mistério sobre como conseguiu Lumet iludir a censura. Há pelo menos duas teorias. Uma diz que terá sido pelo facto da actriz em questão ser negra e daí se ter desvalorizado o assunto (embora numa sequência de flashback também surjam uns fotogramas da mulher de Sol, branca, de busto descoberto). Por isso, esta teoria talvez não tenha muita razão de ser. A segunda aponta para o facto, mais plausível, de o tema importante da obra justificar a introdução do nu. A ideia era que na cena em causa a valorização seria dada ao alheamento emocional de Sol, sendo que o corpo nu de Thelma surgiria despojado de qualquer carga sexual. O que também é discutível. O que é certo é que tanta controvérsia sobre os ditos seios deixou a coberto a discussão sobre o outro corpo, o que verdadeiramente interessa, aquele que se despe de forma muito mais radical, o de Sol Nazerman. Na verdade, The Pawnbroker nada mais é do que a história do seu corpo e do seu progressivo desvelo. Inicialmente inerte e aprisionado na sua morada suburbana ou por trás do balcão da sua loja, Nazerman vive alheio a qualquer tipo de sentimento, celebrando a não morte (-Today is an anniversary. -What happened? -I didn’t die). Insensível aos corpos presentes, são os ausentes, aqueles que já não podem estar, que lhe exigem que reclame para si o seu próprio corpo. Por isso, a explosão progressiva da magnífica representação de Rod Steiger é o corpo de Sol a começar a sentir medo e angústia de viver nos slums, a levar pancada por recusar, a existir fora da sua memória. E a única saída, o único final feliz, de preservação do corpo pela parcial destruição do mesmo, é aquela em que a cruxificação deixa de ser um acto de altruísmo e passa a acto de egoísmo sobrevivente.

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