domingo, 15 de agosto de 2010

Revolução permanente = orgasmo permanente

Sendo ou não um estereótipo ocidental, pouco importa - o de que o cinema da Europa de leste dos anos 60, 70 era sobretudo, ou quase só política, com Vera Chytilová, Miklós Jancsó e Dušan Makavejev como exemplos tradicionais – ao ver W.R. - Misterije organizma (1972) é quase obrigatório pensar em “que cinema fica depois das ideologias”? A visão, confortável admitimos, de hoje dá-nos a impressão de que W.R. é incontestavelmente uma obra importante menos pela sua expressão brechtiana e montagem eisenstainiana, que assim recuperadas tem um cunho desusado, mas antes como viril testemunho das inúmeras referências e agremiações que o filme de Makavejev contém.


No início dos anos 70, as réplicas da geração make love not war sentidas pelos novos cinemas europeus justapuseram-se na perfeição ao interesse que o cineasta com formação em psicologia Dejan Makavejev sentia por aquele que se converteu numa espécie de padroeiro daquela geração, Willem Reich (o WR do título). Discípulo de Freud, Reich ganhou importância mundial ao escrever em 27 The Function of the Orgasm. Três anos mais tarde, já depois de se ter juntado ao partido comunista, editaria The Mass Psychology of Fascism, no qual estabelece uma relação importante entre a libertação da energia sexual e a convivência sã. Ou por outras palavras, o fascismo como sintoma da repressão sexual (a repressão de energias vitais seria mais tarde recanalizada para estados de enfemidade, designadamente o cancro, no imprescindível Ilness as Metaphor de Susan Sontag). A visão de Reich valeu-lhe a expulsão da Alemanha nazi e mesmo do partido comunista, sendo que a partir do final dos anos 30 sediou-se nos EUA onde faria experiências sobre o poder regulador do orgasmo e da libido na vida do ser humano. É este seu período final com a perseguição estatal e condenação, durante o qual viria a falecer, que impulsiou Makevejev a W.R..


Se a tese de Reich é desde o início a tese Makevejev – a liberdade sexual é um correlato da liberdade política – há no filme, para além da equiparação dos dois universos, uma espécie de transferência desse fluir orgástico para a sua estrutura. E se isso foi, como dissemos, sintomático da História mas também da História do cinema, é também verdade que a sua leitura ideológica, ora comunista, ora revisionista, não permitiu uma recepção apaziguadora. Com acusações semelhantes às feitas a Godard no seu período maoista, Dejan Makevejev teve mesmo de sair da Jugoslávia, tendo o seu filme sido banido no país durante 16 anos


Mas para terminar esta questão da política nos Mistérios do Organismo, que aqui parece ser uma clara questão do gato à caça da própria cauda, lembre-se que o “seu” revisionismo e “contradição” – a sua personagem principal Milena, verdadeira instigadora da revolução política e sexual comunista, termina sendo decepada pelos patins de um cidadão russo, logo após ter atingido com ele um verdadeiro orgasmo – é prolongado pelo “catequismo comunista e reichiano” recorrente no filme, saído da cabeça decepada de Milena. A isto se juntam as claríssimas imagens de arquivo de filmes de propaganda comunista e nazi, que associam ambos os lados da barricada ao excesso e à inibição sexual.


Contudo essa vontade libertadora dir-se-ia não fez bem ao cinema de Makavejev. O labirinto intrincado que este construiu como imagem sua desde Nevinost bez zastite (1968) ganha em W.R. uma dimensão de espalhafato inocente. A articulação entre o lado documental – as imagens de arquivo das experiências e célebres workshops de bioenergia de Reich nos EUA – e o ficcional – a história jugoslava de amor e revolução entre Milena e o patinador russo – carregam pouco mais do que uma ilustração. A ficção a ferros a explicar o real, entrecortada com os happenings do poeta Tuli Kupferberg filmados em 16 mm nas ruas de Nova Iorque, dão a sensação de que tudo era, foi, possível, na visão utópica que Makevejev concebeu do sexo e da política, acabando por sublinhar precisamente o oposto que W.R. - Misterije organizma pretendia demonstrar. Que o orgasmo tal como a revolução não são estados de permanência.

6 comentários:

  1. Olá,

    Ainda só dei uma vista de olhos, não li nada aínda, fá-lo-ei noutra ocasião, com mais calma, mas queria dizer-te que adorei este Blog, os meus sinceros parabéns!!

    Cumptos.

    Zé alberto (colaborador do Blog "Cenas Gagas" com textos de Cinema&Psicanálise)

    ResponderEliminar
  2. Olá,

    Pelo lado exótico da atenção minuciosa que dás a cinematografias e autores que se acham debaixo do tapete, este Blog me parece de grande estima e valor confirmado pelas leituras que ja por aqui fiz.
    Adorei este post relativo ao cineasta Makavejev e o paralelismo que estabeleceste entre a sua obra e a do William Reich.

    Cumpts!

    * colaborador do Blog "Cenas Gagas*

    ResponderEliminar
  3. Excelente. Estou a ler neste momento o "Big Sur" do Kerouac e há uma parte em que ele perde muitas linhas a pôr o Reich e o "A Função do Orgasmo" nos píncaros (agora não consigo encontrar as passagens, mas vou ver se encontro...)

    Quanto a Makevejev, perguntava-te se viste este filme via Criterion e se conheces outros filmes dele, como por exemplo os que estão presentes na caixa da Eclipse: Free Radical

    http://www.amazon.com/Eclipse-18-Dusan-Makavejev-Radical/dp/B002IVDLHI/ref=sr_1_1?ie=UTF8&s=dvd&qid=1281991248&sr=1-1-spell

    Olhando para os stills que pões aqui e o que li, de facto, Makavejev parece de facto estar na linha (estético-ideológica) da Vera Chytilová ("Daisies"), que não é bem o meu cup of tea (apesar de não odiar como o Godard odiava também não adoro como o Rosenbaum adora...).

    ResponderEliminar
  4. Zé: obrigado pelos teus comentários. A ideia deste blog é menos fazer crítica e mais reflectir sobre o que os filmes têm para nos dizer. Ainda não o fiz, mas está promoetido para breve uma visita ao Cenas Gagas e respectiva opinião. Abraço.

    Luís: Tenho de admitir que no caso do Makavejev os filmes que vi apanhei-os da internet, algo que tento evitar não por uma questão ética mas mais por uma questão de qualidade. Dele vi ainda Man is Not a Bird (1965) sobre o qual espero ter tempo para escrever em breve. (Um pouco offtopic: agora que a minha mudança para Lisboa está completa vou repegar o assunto da petição RTP2. Não está esquecido o assunto! Abraço.

    ResponderEliminar
  5. Avante camarada! Por estes lados também não está NADA esquecida... a programação da RTP2 nunca foi tão anárquica que nos últimos tempos...

    ResponderEliminar