A segunda das nove colaborações entre Buñuel e o produtor Oscar Dancigers, e segundo filme do seu período mexicano, El Gran Calavera (1949) foi o primeiro filme do espanhol a ter estreia comercial em Portugal. Coincidência ou não, esta adaptação da popular peça homónima de Adolfo Torrado tem, na sua estrutura de farsa, um universo muito semelhante às comédias populares portuguesas dos anos 40. Mas ao contrário destas, a perversão que se lhe atribui, designadamente na inversão de classe social e crítica institucional, é muito mais de obsessão buñueliana, do que da própria fonte original. Nesse sentido o convite de Dancigers a Buñuel, apesar do fracasso de Gran Casino, filme anterior, no sentido de desconcentrar os poderes nas mãos de Fernando Leger (que queria co-produzir, realizar e protagonizar El Gran Calavera), não podia ter sido mais acertado. Porque afinal, sempre se produziu um objecto de “cinema normal”, como lhe chamava Buñuel, que, além de ter sido um sucesso comercial, possibilitou a força anímica para o segundo momento de viragem na sua carreira - Los Olvidados (1950).
Além do universo populista que explica as trocas e baldrocas na família Mata, há em El Gran Calavera um inusitado sentido de triunfo do amor e da justiça que justificam a comparação ao mundo da screwball (que está lá mas é o que menos funciona) e a uma inocência capriana. Tudo isto seria verdade senão fosse meia verdade, como dizia o outro. Nesta comédia de costumes, revisteira, chamemos-lhe mesmo sem medo, a inversão de papéis – a família rica tem de se fazer passar por pobre para dar uma “lição” a Ramiro, o patriarca, que desde que ficou viúvo bebe incansavelmente, destruindo o seu património e saúde – converte-se depois numa segunda lição, desta feita sobre o valor da materialidade. Agora com os papéis invertidos, onde os “falsos pobres”, todos eles com tiques de riqueza, ficam convencidos que Ramiro perdeu mesmo a fortuna.
E, se bem que à custa do seu próprio corpo, é Ramiro que embriagado rejeita lucidamente o casamento da filha com um interesseiro e denúncia ainda o “problema” dos seus parentes (a cunhada hipocondríaca, o irmão indigente, o filho que não quer estudar e a filha que vive num sonho romântico) vivendo todos à sombra do seu dinheiro. Para Ramiro derrotar a bebida “basta” o simbólico suicídio de Ramiro pobre, quando salta de um prédio e cai no andar de baixo, assentando os pés na terra. Mas tudo isto é claro e num ápice. É só depois que Ramiro convence os parentes que perdeu mesmo a fortuna e Buñuel já pode “explicar” à vontade as virtudes da pobreza, curando os parentes dos verdadeiros dilemas de burguesia, nos quais pobreza e trabalho são maçadores e só para suportar se for a fingir.
Se o lado material do estatuto burguês está arrumado, falta lidar com o lado emocional, o estatuto de classe. E é este o dilema da filha Virginia, porque ela é de todos a que “sempre teve bom coração” No final, na aclamada sequência onde Virginia não casa com o namorado rico devido à interferência dos slogans popularuchos que saem do altifalante do namorado pobre, imiscuindo-se no discurso do padre, mais do que um novo ataque à ideologia cristã, há a reafirmação de um novo “estatuto”: o de que os estatutos valem menos do que gelados de chocolate e carros que não pegam. Mas, entretanto, a concretização do amor sai sempre furada, excepto no final. Mas aí claro, e isto é Buñuel amigos, já não vemos.
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