segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O palco, a porta e as maçanetas do cinema português

É comum rotular os anos trinta e quarenta como a época de ouro do cinema português, com as suas comédias populares, grandes sucessos de bilheteira e estrelas populares como Vasco Santana, Laura Alves, Ribeirinho ou António Silva. Já menos comum é falar-se da pobreza da grande maioria destas obras em termos cinematográficos. Um filme que por acaso é a maior excepção a esta regra, O PAI TIRANO (1941), considerado hoje a melhor comédia do cinema português, ilustra num dos seus principais temas, a razão desta degradação qualitativa: a querela entre o cinema e o teatro, designadamente vendo o primeiro como bizarra modernice e o segundo como «arte segura».

O problema era precisamente esse o veiculado pelo filme de António Lopes Ribeiro. O filme que punha um actor de teatro (Ribeirinho) a esconder essa sua paixão para ganhar os favores de uma cinéfila (a célebre Tatão, interpretada por Leonor Maia), soube falar-nos, por exemplo, nas cenas dos ensaios do grupo de teatro dos «Grandelinhas» da dimensão de uma arte que, sob a ameaça do cinema, parecia esgotar-se em poses e posturas divertidas numa altivez anacrónica. Ou mesmo de uma degradação dos gostos do seu público: relembre-se como a plateia adora a nova «peça», modificada no seu plot original por instâncias dos amores e desamores de Tatão e Francisco. Mas deixando o filme O PAI TIRANO, que já continha algumas sementes de um teatro a querer ser tratado como cinema, diga-se que genericamente este cinema popular feito sob os auspícios do Estado Novo era sobretudo baseado em folhetins de revistas, em farsas vicentinas que pouca margem davam ao cinema, no interior do seu argumento de peripécia, para se desenvolver como arte do espaço, com valorização do detalhe, da aproximação, da ruptura com uma visão horizontal, encerrada, distante, numa palavra: teatral.


Um bom exemplo deste tipo de filmes é O COSTA D'ÁFRICA (1954), realizado por João Mendes, com Vasco Santana e Ribeirinho. Para além da sátira colonialista ao tio que vem de África, aos nós que as posturas sociais da metrópole dão azo, à voz de Laura Alves ou aos divertidíssimos diálogos que lhe servem de base, raras vezes a câmara está a contar, raras vezes há um envolvimento da acção no espaço, como se os brandos costumes portugueses tivesse tido dificuldade em acomodar uma arte de que se desenvolve sobretudo na fractura da horizontalidade, na profundidade do campo, quer no sentido técnico, quer no sentido lúdico do termo. Ou seja, se O COSTA D'ÁFRICA é um dos mais hilariantes filmes feitos nestas décadas é também um dos que melhor ilustra a teatralidade com que o cinema português apresentava ainda os seus choques e morais.


Interessante é o ponto intermédio onde hoje podemos colocar um filme como O COSTA DO CASTELO (1943), de Arthur Duarte. A necessidade de recorrer aos belos fados, à mostragem da cidade de Lisboa, não escondem o falhanço cinematográfico que desde o seu início - ainda com os planos de Lisboa e o genérico inicial a correr – é. Outra vez, há um lado teatral na forma como se concebe o espaço da hospedaria onde vive Simplício Costa (António Silva) e Luisinha (Milú) e mesmo na mansão dos tios de Daniel (Curado Ribeiro). Ou mesmo no sublinhar, à medida do regime de Salazar, da mensagem da pobreza como alegria e vida, por oposição à lugubridade das classes abastadas pertencentes a uma burguesia portuguesa em decadência. Não é aliás preciso muita imaginação para fazer o cruzamento entre a imobilidade solene, despropositada, destas classes e o teatro como arte da imobilidade do espaço, e do outro lado, a correria bem disposta do Costa do Castelo, sinal da popularidade das classes mais desfavorecidas, mas também do cinema como arte popular, que penetra na rua, na loja, na dimensão imprevidente do dia-a-dia

Contudo, se como dizia, há um falhanço no filme de Artur Duarte, e ele lá está em alguns diálogos, em algumas cenas (veja-se o ideia final do Costa do Castelo para reconciliar a «Julieta» Milú e o «Romeu» André), também há nele uma consciência imperiosa de um cinema que não chega a acontecer.

A tragédia ricos versus pobres, a alternância de casas e classes a fazer lembrar RUGGLES OF RED GAP são tudo elementos longe de ser inocentes. Se genericamente muitas cenas são, en passant, para mais uma gargalhada, o estatuto da pobreza como vitalidade tem na sequência em que Milú toca piano na casa da condessa, com a música a invadir o espaço, a transformá-lo, a chamar os seus ocupantes, uma digna ideia cinematográfica que quer romper mais uma vez com uma ideia de horizontalidade da frase e do gag. Mas assim sendo porque insistimos então na ideia de um «falhanço»?

Saltemos até à cena final. Nesta o costa do castelo leva o par desavindo para a reconciliação final, fechando-o num quarto. Lá fora ficamos nós à espera de um desfecho positivo, «esperemos que eles se entendam», diz a mãe Rita (Maria Olguim). Compasso de espera. Aqui damos de caras com uma ideia perfeitamente lubitschiana: um plano sobre as maçanetas de uma porta a rodarem para nos dar o seu interior. Contudo, lá dentro o relógio de cuco não sai com os noivos a juntarem-se como em THE AWFUL TRUTH, de Leo McCarey, ou Maurice Chevalier não tem uma espada diferente como em THE SMILING LIEUTENANT, de Ernst Lubitsch. No seu interior, vemos apenas o par reconciliado quase por toques de magia. Ou seja, não há gag. Há final feliz, e das maçanetas que se abriram não se nos é revelado o porquê, para nós, se abriram.

O fim de O COSTA do CASTELO ilustra como poucos a posição intermediária que o filme ocupa num momento de grande euforia do cinema português na relação com o público, onde a certas ideias de cinema não lhes foi muitas vezes dado o suficiente espaço para se concretizarem. Contudo, a presença daquelas maçanetas permitiu ao público português ter a esperança na existência de um verdadeiro cinema clássico português. Algo que infelizmente nunca chegou a existir.



sábado, 27 de agosto de 2011

Lições de medo e de suspeita


“You don’t know what fear is. But you’ll see. It’s catching.

It’s catching like smallpox. And once you get it, it’s for life.”


Começar uma carreira, qualquer que ela seja, quando o nosso país está a ser ocupado por uma potência inimiga deixa marcas, que no caso de serem o nosso instrumento de trabalho - a impressão e o registo dessas marcas - isso fica à vista de todos. Depois de um início na escrita e de uma primeira obra, L'ASSASSIN HABITE... AU 21, para a produtora alemã pro-nazi Continental, o realizador Henri-Georges Clouzot embarca na realização de LE CORBEAU, sua primeira obra marcante, com argumento de Louis Chavance e colaboração do próprio Clouzot. Numa «pequena cidade aqui ou algures», os seus habitantes começam a receber cartas assinadas por um tal de «corbeau» denunciando todos os segredos dos seus habitantes. Com a matizada presença de Pierre Fresnay como Dr. Germain, protagonista e principal visado por estas cartas, Clouzot usa dinheiro alemão para falar sobre a desconfiança e a denúncia, temas naturalmente riscados, em plena segunda guerra mundial. O resultado é que esta teia de segredos e delatores de LE CORBEAU, este «whodunnit» vertido em «who wrote it», como diz um dos críticos à sua obra, teve o condão de ofender toda a gente: Governo de Vichy, colaboracionistas, nazis, liberais, conservadores, you name it. Que os franceses tenham ficado enervados por verem o seu sistema de educação parodiado na cena em que os habitantes da vila têm de fazer o ditado das dezenas de cartas anónimas do corvo para se apanhar o responsável através da sua letra, percebe-se. Que os alemães se chateassem com o filme, mais dificilmente se perceberá. Ainda assim, Clouzot foi ameaçado por causa deste filme por tudo e todos, inclusivé de condenação à morte e só quatro anos volvidos conseguiu retomar a realização.


Após vários filmes menores como MIQUETTE ET SA MÈRE (1953), ou outros menos menores como a adaptação de Prévost, MANON (1949) ou ainda QUAI DES ORFÈVRES (1947), Clouzot embarcaria na realização das suas duas grandes obras-primas: LE SALAIRE DE LA PEUR (1953) e dois anos depois, aquele que é considerado o precursor do thriller psicológico LES DIABOLIQUES (1955).

Se provavelmente um filme como LES DIABOLIQUES, ou mesmo LE CORBEAU, pelos seus respectivos ambientes de gato e do rato, cerebrais, contribuíram muito mais para apelidar Clouzot como o Hitchcock francês, LE SALAIRE DE LA PEUR, que até é um filme de acção, tem na sua génese uma ligação mais forte com o mestre do suspense. Isto porque Hitchcock queria comprar os direitos do romance de Georges Arnaud, que deu nome ao filme, mas o escritor preferia que a sua obra fosse adaptada por um realizador francês. Essa primeira desfeita, que voltaria a repetir-se com os direitos literários do romance de base de LES DIABOLIQUES, seria complementada pelo facto de LE SALAIRE DE LA PEUR completar-se a si próprio por via do tratamento do medo e da tensão, um e outro contaminando-se de forma invulgar. Rodado na América Latina, o filme conta a história de uns vagabundos, hoje desempregados (?), na pequena vila de Las Piedras que, sem perspectiva de trabalho, aceitam a perigosíssima tarefa, oferecida por uma companhia petrolífera norte-americana, de transportar dois camiões de nitroglicerina ao longo de centenas de quilómetros para poder conter um incêndio numa das suas explorações.

Sendo este um filme de acção homo-erótica sobre o destino dos heróis da vida real, os heróis precários, com doenças de pulmões ou encharcados em petróleo, ele é também um retrato de miséria terceiro mundista, em aberta crítica ao imperialismo capitalista norte-americano. Assim, o primeiro segmento do filme que começa com planos de sádica brincadeira de crianças com insectos (um plano depois «enxugado» e reutilizado por Peckinpah na abertura de THE WILD BUNCH) começa a abrir um retrato quase geracional de gente que olha para baixo, para as poças de água nas estradas e se abstém de olhar para cima. Relembre-se o papel vital das personagens infantis em LE CORBEAU, para perceber este gesto tão importante que começa nas crianças e se desenvolve. O próprio Clouzot aos quatro anos já dava recitais e escrevia pequenas peças de teatro. É nesse microcosmos, onde o bar é tão importante ou onde os homens não vêem o grande sacrifício das suas mulheres pelo amor - Mario (Yves Montand) subestima e muito Linda (Véra Clouzot) – que Clouzot começa a contextalizar o medo e o perigo. Na segunda metade de LE SALAIRE DE LA PEUR, o trajecto homérico dos quatros escolhidos para «ganhar a vida» consegue então contextualizar o exercício perfeitamente hitchcokiano sobre a tensão – em que obstáculo? em que pedra? em que desnível vai o camião, e por conseguinte o ecrã, rebentar? – numa dimensão de coragem e medo. Medo de não conseguir sobreviver, e medo de ficar para sempre aí, nesse bar de Las Piedras a tossir e a suspirar por Paris.

Este filme de Clouzot, a sua obra mais premiada, vencedora inédita até então dos dois galardões máximos em Cannes e Veneza, foi considerado à época pela revista Time, um dos filmes mais perigosos de sempre. Esse perigo, não está claramente tanto no ataque a projectos de vida e de império, mas sobretudo na angustiante remoção da subjectividade dos seus personagens, o que ainda hoje dá ao seu espectador um papel muito mais activo e consciente na procura das alegrias e dos dramas do cinema.