sábado, 27 de agosto de 2011

Lições de medo e de suspeita


“You don’t know what fear is. But you’ll see. It’s catching.

It’s catching like smallpox. And once you get it, it’s for life.”


Começar uma carreira, qualquer que ela seja, quando o nosso país está a ser ocupado por uma potência inimiga deixa marcas, que no caso de serem o nosso instrumento de trabalho - a impressão e o registo dessas marcas - isso fica à vista de todos. Depois de um início na escrita e de uma primeira obra, L'ASSASSIN HABITE... AU 21, para a produtora alemã pro-nazi Continental, o realizador Henri-Georges Clouzot embarca na realização de LE CORBEAU, sua primeira obra marcante, com argumento de Louis Chavance e colaboração do próprio Clouzot. Numa «pequena cidade aqui ou algures», os seus habitantes começam a receber cartas assinadas por um tal de «corbeau» denunciando todos os segredos dos seus habitantes. Com a matizada presença de Pierre Fresnay como Dr. Germain, protagonista e principal visado por estas cartas, Clouzot usa dinheiro alemão para falar sobre a desconfiança e a denúncia, temas naturalmente riscados, em plena segunda guerra mundial. O resultado é que esta teia de segredos e delatores de LE CORBEAU, este «whodunnit» vertido em «who wrote it», como diz um dos críticos à sua obra, teve o condão de ofender toda a gente: Governo de Vichy, colaboracionistas, nazis, liberais, conservadores, you name it. Que os franceses tenham ficado enervados por verem o seu sistema de educação parodiado na cena em que os habitantes da vila têm de fazer o ditado das dezenas de cartas anónimas do corvo para se apanhar o responsável através da sua letra, percebe-se. Que os alemães se chateassem com o filme, mais dificilmente se perceberá. Ainda assim, Clouzot foi ameaçado por causa deste filme por tudo e todos, inclusivé de condenação à morte e só quatro anos volvidos conseguiu retomar a realização.


Após vários filmes menores como MIQUETTE ET SA MÈRE (1953), ou outros menos menores como a adaptação de Prévost, MANON (1949) ou ainda QUAI DES ORFÈVRES (1947), Clouzot embarcaria na realização das suas duas grandes obras-primas: LE SALAIRE DE LA PEUR (1953) e dois anos depois, aquele que é considerado o precursor do thriller psicológico LES DIABOLIQUES (1955).

Se provavelmente um filme como LES DIABOLIQUES, ou mesmo LE CORBEAU, pelos seus respectivos ambientes de gato e do rato, cerebrais, contribuíram muito mais para apelidar Clouzot como o Hitchcock francês, LE SALAIRE DE LA PEUR, que até é um filme de acção, tem na sua génese uma ligação mais forte com o mestre do suspense. Isto porque Hitchcock queria comprar os direitos do romance de Georges Arnaud, que deu nome ao filme, mas o escritor preferia que a sua obra fosse adaptada por um realizador francês. Essa primeira desfeita, que voltaria a repetir-se com os direitos literários do romance de base de LES DIABOLIQUES, seria complementada pelo facto de LE SALAIRE DE LA PEUR completar-se a si próprio por via do tratamento do medo e da tensão, um e outro contaminando-se de forma invulgar. Rodado na América Latina, o filme conta a história de uns vagabundos, hoje desempregados (?), na pequena vila de Las Piedras que, sem perspectiva de trabalho, aceitam a perigosíssima tarefa, oferecida por uma companhia petrolífera norte-americana, de transportar dois camiões de nitroglicerina ao longo de centenas de quilómetros para poder conter um incêndio numa das suas explorações.

Sendo este um filme de acção homo-erótica sobre o destino dos heróis da vida real, os heróis precários, com doenças de pulmões ou encharcados em petróleo, ele é também um retrato de miséria terceiro mundista, em aberta crítica ao imperialismo capitalista norte-americano. Assim, o primeiro segmento do filme que começa com planos de sádica brincadeira de crianças com insectos (um plano depois «enxugado» e reutilizado por Peckinpah na abertura de THE WILD BUNCH) começa a abrir um retrato quase geracional de gente que olha para baixo, para as poças de água nas estradas e se abstém de olhar para cima. Relembre-se o papel vital das personagens infantis em LE CORBEAU, para perceber este gesto tão importante que começa nas crianças e se desenvolve. O próprio Clouzot aos quatro anos já dava recitais e escrevia pequenas peças de teatro. É nesse microcosmos, onde o bar é tão importante ou onde os homens não vêem o grande sacrifício das suas mulheres pelo amor - Mario (Yves Montand) subestima e muito Linda (Véra Clouzot) – que Clouzot começa a contextalizar o medo e o perigo. Na segunda metade de LE SALAIRE DE LA PEUR, o trajecto homérico dos quatros escolhidos para «ganhar a vida» consegue então contextualizar o exercício perfeitamente hitchcokiano sobre a tensão – em que obstáculo? em que pedra? em que desnível vai o camião, e por conseguinte o ecrã, rebentar? – numa dimensão de coragem e medo. Medo de não conseguir sobreviver, e medo de ficar para sempre aí, nesse bar de Las Piedras a tossir e a suspirar por Paris.

Este filme de Clouzot, a sua obra mais premiada, vencedora inédita até então dos dois galardões máximos em Cannes e Veneza, foi considerado à época pela revista Time, um dos filmes mais perigosos de sempre. Esse perigo, não está claramente tanto no ataque a projectos de vida e de império, mas sobretudo na angustiante remoção da subjectividade dos seus personagens, o que ainda hoje dá ao seu espectador um papel muito mais activo e consciente na procura das alegrias e dos dramas do cinema.



5 comentários:

  1. O Clouzot era fabuloso. Vi recentemente MANON e fiquei impressionado.
    Cumprimentos cinéfilos e apareça. Vou linkar o seu blog.

    O Falcão Maltês

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  2. Muito culto o post.

    me despertou o interesse nas obras!

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  3. António: só há pouco tempo passei no teu blog e gosto muito, vou linkar-te também. Abraço.

    Yasmine: Obrigado!

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  4. eu tb tenho um blog http;//yasminefarias.blogspot.com/

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  5. Agradeço o comentário no Cult Fiction, companheiro. Continue acompanhando o blog!
    Interessante o seu espaço aqui. Gostei bastante e vou linkar ao meu.
    Abraços!

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