It’s catching like smallpox. And once you get it, it’s for life.”
Começar uma carreira, qualquer que ela seja, quando o nosso país está a ser ocupado por uma potência inimiga deixa marcas, que no caso de serem o nosso instrumento de trabalho - a impressão e o registo dessas marcas - isso fica à vista de todos. Depois de um início na escrita e de uma primeira obra, L'ASSASSIN HABITE... AU 21, para a produtora alemã pro-nazi Continental, o realizador Henri-Georges Clouzot embarca na realização de LE CORBEAU, sua primeira obra marcante, com argumento de Louis Chavance e colaboração do próprio Clouzot. Numa «pequena cidade aqui ou algures», os seus habitantes começam a receber cartas assinadas por um tal de «corbeau» denunciando todos os segredos dos seus habitantes. Com a matizada presença de Pierre Fresnay como Dr. Germain, protagonista e principal visado por estas cartas, Clouzot usa dinheiro alemão para falar sobre a desconfiança e a denúncia, temas naturalmente riscados, em plena segunda guerra mundial. O resultado é que esta teia de segredos e delatores de LE CORBEAU, este «whodunnit» vertido em «who wrote it», como diz um dos críticos à sua obra, teve o condão de ofender toda a gente: Governo de Vichy, colaboracionistas, nazis, liberais, conservadores, you name it. Que os franceses tenham ficado enervados por verem o seu sistema de educação parodiado na cena em que os habitantes da vila têm de fazer o ditado das dezenas de cartas anónimas do corvo para se apanhar o responsável através da sua letra, percebe-se. Que os alemães se chateassem com o filme, mais dificilmente se perceberá. Ainda assim, Clouzot foi ameaçado por causa deste filme por tudo e todos, inclusivé de condenação à morte e só quatro anos volvidos conseguiu retomar a realização.
Após vários filmes menores como MIQUETTE ET SA MÈRE (1953), ou outros menos menores como a adaptação de Prévost, MANON (1949) ou ainda QUAI DES ORFÈVRES (1947), Clouzot embarcaria na realização das suas duas grandes obras-primas: LE SALAIRE DE LA PEUR (1953) e dois anos depois, aquele que é considerado o precursor do thriller psicológico LES DIABOLIQUES (1955).
Sendo este um filme de acção homo-erótica sobre o destino dos heróis da vida real, os heróis precários, com doenças de pulmões ou encharcados em petróleo, ele é também um retrato de miséria terceiro mundista, em aberta crítica ao imperialismo capitalista norte-americano. Assim, o primeiro segmento do filme que começa com planos de sádica brincadeira de crianças com insectos (um plano depois «enxugado» e reutilizado por Peckinpah na abertura de THE WILD BUNCH) começa a abrir um retrato quase geracional de gente que olha para baixo, para as poças de água nas estradas e se abstém de olhar para cima. Relembre-se o papel vital das personagens infantis em LE CORBEAU, para perceber este gesto tão importante que começa nas crianças e se desenvolve. O próprio Clouzot aos quatro anos já dava recitais e escrevia pequenas peças de teatro. É nesse microcosmos, onde o bar é tão importante ou onde os homens não vêem o grande sacrifício das suas mulheres pelo amor - Mario (Yves Montand) subestima e muito Linda (Véra Clouzot) – que Clouzot começa a contextalizar o medo e o perigo. Na segunda metade de LE SALAIRE DE LA PEUR, o trajecto homérico dos quatros escolhidos para «ganhar a vida» consegue então contextualizar o exercício perfeitamente hitchcokiano sobre a tensão – em que obstáculo? em que pedra? em que desnível vai o camião, e por conseguinte o ecrã, rebentar? – numa dimensão de coragem e medo. Medo de não conseguir sobreviver, e medo de ficar para sempre aí, nesse bar de Las Piedras a tossir e a suspirar por Paris.
Este filme de Clouzot, a sua obra mais premiada, vencedora inédita até então dos dois galardões máximos em Cannes e Veneza, foi considerado à época pela revista Time, um dos filmes mais perigosos de sempre. Esse perigo, não está claramente tanto no ataque a projectos de vida e de império, mas sobretudo na angustiante remoção da subjectividade dos seus personagens, o que ainda hoje dá ao seu espectador um papel muito mais activo e consciente na procura das alegrias e dos dramas do cinema.
O Clouzot era fabuloso. Vi recentemente MANON e fiquei impressionado.
ResponderEliminarCumprimentos cinéfilos e apareça. Vou linkar o seu blog.
O Falcão Maltês
Muito culto o post.
ResponderEliminarme despertou o interesse nas obras!
António: só há pouco tempo passei no teu blog e gosto muito, vou linkar-te também. Abraço.
ResponderEliminarYasmine: Obrigado!
eu tb tenho um blog http;//yasminefarias.blogspot.com/
ResponderEliminarAgradeço o comentário no Cult Fiction, companheiro. Continue acompanhando o blog!
ResponderEliminarInteressante o seu espaço aqui. Gostei bastante e vou linkar ao meu.
Abraços!