quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Sigo direito

Sigo direito pela tarde barulhenta e de súbito uma palavra deixa-me cair uma pedra por ali nos arredores do peito. Agora ando pesado pela rua, angustiado, com as paredes de granito nas costelas, os muros cimentados à cabeça e o vozear dos românticos caloteiros colados às pernas. Havia um tempo em que os meus braços eram ramos de pereira de onde cagavam os passarinhos e os soprares das trombetas navais me fazia flutuar o queixo acima do ar. Cada ser-pessoa-tigre, com uma garganta em estado de funcionamento normal, oferece-me uma náusea de brocado; as tabacarias estão cheias de morte mas a morte rebenta de vida. Um pouco como o caroço dessa pera que pudesse tombar da árvore e que alguém tomasse por sobremesa. Não há pedra que agora pise que não tome o gosto de fronteira, tudo porta sem maçaneta ou janela sem postigo. Um arrepio de calor ajuda-me a passear a angústia, a fazer-lhe festas no pelo como gato de garras cravadas no exterior. Sempre no exterior, sem entrada USB onde conectar o lombo e as palavras certas. Talvez seja, talvez… uma questão de montar um jardim sem qualidades de estrutura, onde as plantas sejam indiferentes à luz do ouro e às pessoas daninhas a habitarem-no de cartolas e gabardina para suportar o peso deste meu empedrado peito. Desse jardim todas as pedras e as colmeias serão cirurgicamente removidas, com um bisturi de solidão e um estojo da canetas-tesouras-facas que escreveriam automaticamente “saída”, “entrada”, como se apunhalassem a tarde ou a realidade. Tudo o que há para ver: uma pintura-massacre, um duche de sangue, uma cascata dos justos, um punhado de pombos comilões junto a uma fonte de bronze. No Natal talvez fosse permitido um concerto de luzinhas amarelas e verdes, de tonalidade extremamente ridícula. Isto no caso de haver Natal, pois podia bem acontecer que de um compartimento secreto e submerso da fonte surgisse um ser que todos chamariam alienígena mas que seria apenas um vento escondido na água, cujos reflexos enganariam a humanidade por um par de olhos, um bigode e sobrancelhas nervosas. Esse vento-ser-alienígena teria tentado certamente uma conversa com a humanidade. E diria assim…

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Herzog sobre o futuro, Abrantes sobre pilas de bronze

Já há vários anos que Werner Herzog passou a ser uma das mais fascinantes personagens de toda a história do cinema. E não falo apenas do conteúdo dos seus filmes mas de todo o género de historietas que lhes subjazem e que, retratando um modo de fazer cinema, vão desde a célebre ingestão de sapatos, ao lançamento de si próprio para cactos gigantescoloração de ratos em água a ferver ou filmagens ilegais no meio da China rural. E não têm fim os divertimentos… Se essas anedotas farão certamente a delícia dos seus netinhos em noites de fogueira e acampamento, rapidamente este percebeu que a sua persona, imutável e frontal, rivalizava em popularidade com as suas obras. Por isso, nos últimos anos em que mudou de selva, do Perú para a selva da celebrity culture norte-americana, este tem sido “vendido” como o sábio louco alemão que tudo pode dizer, que as pessoas o ouvirão como se tratasse de um misto de espectáculo stand up e de lecture universitária.

Parte das suas últimas intervenções públicas incluem o fascínio por um videoclipe do Kanye West, as declarações de que a “sua rede social é a sua mesa da cozinha”, ou que não tem telemóvel e que fez a primeira chamada aos 17 anos. Entretanto no cinema, Herzog é uma metamorfose ambulante que ora dá aulas sobre “guerrilla filmmaking” e a arte de abrir portas com uma gazua na sua Rogue Film School, ora faz pastelões no deserto com Nicole Kidman ao estilo mais anónimo, ora aparece ainda encarnando vilões ao lado de Tom Cruise. E de todos estes “confrontos” de cariz um tanto burlesco Herzog parece sair impassível, dando a sensação que mais rapidamente ele corrompe a cultura pop americana do que o seu inverso. Independentemente de qual das partes sai por cima toda a gente quer assistir as estes aparentes duelos.
Quando o alemão anunciou que ia fazer um documentário sobre a internet e o futuro da tecnologia digital o espectador cinéfilo, sorrindo, terá logo antecipado as tiradas ácidas e irónicas com que Herzog iria “destruir” os entusiastas desse “admirável mundo novo”. Contudo, engane-se quem pensar que Lo and Behold, Reveries of the Connected World (Eis o Admirável Mundo em Rede, 2016) se configura como um ataque à tecnologia. Estruturado em 10 capítulos, o filme afirma-se como uma espécie de manual de introdução ao estudo das tecnologias digitais por alguém cuja curiosidade é movida por um misto de fascínio e de receio. Muito poucos temas parecem ficar de fora: o surgimento da internet, a adição à mesma com visita a um centro de reabilitação, a invisibilidade das cyber wars, a aura mítica e a importância da cultura hacker, o advento da inteligência artificial, as questões de invasão de privacidade, a hipótese do colapso súbito das tecnologias digitais e com elas de declínio da civilização, é só escolher.
A abrir Lo and Behold Herzog filma o cientista Leonard Kleinrock, da Universidade da California, explicando, ao som da abertura da ópera “O Ouro do Reno” de Wagner, que a primeira palavra trocada entre computadores, em 1969, era suposto ser log (como em log in) mas porque um dos computadores parou, ficámos apenas com a palavrinha inicial da internet: lo, como na expressão “lo and behold”. O filme arranca assim sob o signo da surpresa e veneração ante o novo, para lentamente entrar num esquema de percurso guiado pela voz hipnotizadora de Herzog que, sempre em off, vai inquirindo os seus entrevistados e dando ao filme aquilo que ele necessita: uma massa que cimente estes pequenos ensaios, ligados apenas pela curiosidade meio patusca do cineasta.
Num dos capítulos finais discute-se uma evolução natural da “internet das coisas” no sentido de omnipresença da presença da internet e sua consequente invisibilização. O conceito para esta nova e emergente etapa, “internet of me”, confere um poder quase mágico ao utilizador de personalização da tecnologia, onde toda uma rede de máquinas e objectos à nossa volta obedecerá ao nosso comando através do toque e da voz,  potenciando assim uma radical transformação nas nossas noções de ego e de colaboração. Fazendo um paralelismo, pode dizer-se que em Lo and Behold, projecto produzido por uma empresa do ramo tecnológico, esse poder de controlo dos segmentos é guiado ou “activado” precisamente pela voz e curiosidades de Herzog. É com ela que vamos conhecendo robots futebolistas, monges que tweetam, carros que se guiam ou máquinas que nos vão buscar um copo de sumo. Talvez por isso, e apesar da muita informação que Lo contém, a curiosidade ante o futuro se encolha ante a perspectiva aliciante de continuar a acompanhar a saga de Herzog pelo mundo, seja caminhando sobre o gelo da Antárctica, a areia do deserto do Sahara, o fogo de um vulcão activo [vide o seu outro documentário deste ano, produzido para a Netflix, Into the Inferno (2016)], ou até por outros planetas onde, claro, haverá wi-fi.

Esta sessão é prefaciada por uma das curtas-metragens que o prolífico Gabriel Abrantes concluiu este ano. Realizado em colaboração com Francisco Cipriano, Uma Breve História da Princesa X(2016) é um filme e um comentário audio ao próprio filme (ao estilo extra de DVD) num só. O objecto da ironia do comentário off de Abrantes é a recriação da curiosa história da obra “Princess X”, do escultor romeno Constantin Brâncuși, que era suposto retratar a neta de Napoleão, Marie Bonaparte (Joana Barrios), pioneira na descoberta das causas da frigidez feminina, mas acabou por, ironicamente, resultar num “pénis de bronze”. A ironia, pode dizer-se herzoguiana, da curta-metragem permite juntar numa só sessão o pupilo ao mestre, depois de em Freud Und Friends(2015) a relação se ter tornado explícita por via da caricatura mordaz.

domingo, 27 de novembro de 2016


terça-feira, 22 de novembro de 2016

O estilo

Perdoem-me a corruptela. O estilo, essa obsoleta pluma, encontrei-o uma vez quando passeava num parque meditando sobre a profusão. Um animal distraído o deixara cair, certamente. Parei um instante. Detive-me considerando a extrema delicadeza das suas fibras. Teria de facto sido por distracção que o animal se separara daquela sua parte integrante? Então impôs-se-me a necessidade absoluta de averiguar essa questão. Era preciso saber se o animal de facto andava distraidamente perdendo a sua integridade ou não. Percorri o parque de uma ponta a outra procurando todo e qualquer indício. Procurei até chegar a noite. Quando a noite chegou compreendi.

Tisana 27 - Ana Hatherly

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Benning - 27 years later


domingo, 20 de novembro de 2016

Pós-Verdade

As desconfianças simulacrais de Platão, a cinematização do quotidiano, a falência do referente no digital, o espaço confortável da indistinção entre ficção e documentário, tudo a caminho da fashionable noção de pós-verdade. A verdade, nem vendida (quanto mais dada) no infotainmentsegue como parente pobre da verosimilhança, mas sobretudo agora esfrangalhada em virtude da aparência do genuíno. O genuíno não é o verdadeiro, ele é a ilusão do fora, da salvação que vem de longe. A invasão do "sistema" pelos valores do genuíno que este promete desmontar, não comunga necessariamente com a verdade. Por isso a salvação e o apocalipse confundem-se. Será uma grande utopia imaginar-nos numa realidade que não sabemos real? Ou num mundo em que todo o referente em relação ao qual se avaliavam factos, números, verdades, desapareceu? Eu crio os meus factos, as minhas notícias, as minhas ideias e assim sendo, a verdade é matéria unipessoal, sem valor de troca, ou atracção. A era de informação parece inaugurar assim a era da ficção total, aquela em que já se vai perdendo qualquer noção da própria diferença entre a retórica e a verdade. Isso implica apenas e tão só que o herói salvador já não tenha de parecer herói, basta parecer-se a si próprio. Genuinamente apocalíptico, por exemplo. É isso que um líder photoshop como Trump parece prometer ser. E o fim dos tempos soa hoje bem mais entertaining do que qualquer outra coisa.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Nocturnal Animals (2016) de Tom Ford


O segundo filme do estilista barra realizador Tom Ford, depois de A Single Man (Um Homem Simples, 2009), abre com umas senhoras nuas, muito gordas, a agitar as banhas em slow motion. Perante tal imagem-ilha de poder visual instala-se desde cedo a dúvida: show ou bizarria amestrada? Estas imagens correspondem narrativamente a uma das criações da protagonista, a artista contemporânea, Susan (Amy Adams, a ruiva principal num filme onde tudo tem a qualidade do vermelho glamour, mesmo o sangue é glamoroso), que recebe do ex-marido (Jake Gyllenhaal, escritor em modo sensível) um romance prestes a publicar com o título Nocturnal Animals(Animais Nocturnos, 2016). O livro esconde um thriller de violação no Texas (no qual Jake tem o seu segundo papel, o de homem desesperado) e fará a protagonista recordar e reavaliar o seu passado, nomeadamente a forma como trocou o ex-marido pelo actual engatatão.
Tal como acontecia com Colin Firth no filme de 2009, também aqui se revela o tema predilecto de Tom Ford: o do poder de sucção do passado, a incapacidade de sair dele. Mas gostava de voltar à questão das gordas por um motivo. Se ela tem uma justificação (ainda que frágil) no universo narrativo (é um índice do maravilhoso e horripilante mundo dos óculos de massa, bebidas extravagantes e poder, na actual high art novaiorquina), ainda mais o tem como prova de um gosto pela criação estilística, pela composição da imagem bela ou provocadora. Tal faz com que a adaptação do romance de Austin Wright, juntamente com o uso pesado da música de Abel Korzeniowski, submeta o filme a uma rigidez de pensamento: a literatura, e com ela o thriller, funciona como uma antecâmara, um eco distorcido do cinema, e com ele do drama. Tudo se submete, ditatorialmente (elipses, representação, montagem), a esta ideia de paralelismo, sob pena de cada mundo não ter a espessura suficiente além do que se quer provar. Dito isto, Michael Shannon, enquanto xerife do interior americano, canceroso [numa personagem dos já longínquos universos de Blood Simple (1984) dos irmãos Coen], ergue-se como única substância viva além do traço comparativo.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Nocturama (2016) de Bertrand Bonello


Nocturama (2016) de Bertrand Bonello
Um ano após os atentados terroristas no Bataclan e em outros locais em Paris, o filme de Bertand Bonello tem um cheirinho a redenção e sobretudo um consciente lado de comentário político. A tese é simples e vincada: e se atentados terroristas fossem praticados por jovens franceses com uma taxa de ennui muito elevada e um enorme grau de frustração motivado pelas facilidades e desigualdades do sistema capitalista? Se este “e se” é bastante aprisionante para o espectador, o mesmo se passa com as decisões formais de Bonello. A primeira metade do filme é um percurso labirintico por escadas de metro, corredores, portas de edifícios, um plano coreografado, revestido de heist movie ao qual nem falta a mostragem no ecrã das horas que vão passando a conta gotas. Já o pós-golpe, na segunda metade do filme, é um huis-clos dos jovens fechados numa loja de múltiplos andares, a esperar pela manhã (pela morte?) e por uma hipótese de fuga.
Aqui Bonello é tão claro como fora atrás: como se as personagens de El Ángel Exterminador (O Anjo Exterminador, 1962) de Buñuel não saíssem do seu “abrigo” entretidas a brincar com aquilo contra o qual querem agir. Armas, cognac, vestidos de noiva, carrinhos, playstations, telemóveis, manequins, sistemas de som, tudo serve a brincadeira aborrecida e indigente, tal como o filme é ele próprio um brinquedo para explicar as contradições dos discursos terroristas e a arbitrariedade da separação entre terroristas e os “inimigos do estado” (como são tratados estas “crianças revolucionárias” pelas autoridades). Splits screens, câmaras deambuladoras, sms, Godard revolucionário, estátuas a arder, ecrãs de computador, videoclipes integrais em playback, são algumas das brincadeiras ao dispor de uma realização, como no mundo dos seus personagens, em modo de dispendio de energia. E no final uma montra é uma jaula. Ou será o contrário? Não interessa. Pede-se ajuda. Quem a dá?
Carlos Natálio

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Little Men (2016) de Ira Sachs


O penúltimo filme de Ira Sachs, Love is Strange (O Amor é uma Coisa Estranha, 2014) estreado em Portugal este ano (dois anos depois, portanto), acompanhava a história de dois homossexuais (Alfred Molina e John Lithgow) que, após quarenta anos de vida em comum decidiam oficializar o seu casamento. Contudo, o despedimento de um implicava que tivessem de abandonar a morada de família, até poderem pagar novamente uma casa para ambos. Ora, Little Men, que inverte o título do romance de Louisa May Alcott (Little Women), parece querer continuar o universo do filme anterior. Neste, Lithgow ia para casa do sobrinho, separando-se do seu amor, e acabava como “avô” de serviço, a pintar para passar o tempo e a perturbar as rotinas familiares do seu novo lar. Estabelecia uma relação entre a figura sábio e o empecilho com o filho do seu sobrinho e um amigo, personagens que entretanto se tornaram os protagonistas deste “Homenzinhos”.
E o tema mantém-se: em Love is Strange a crise económica afectava o amor; em Little Men a amizade é também perturbada pelas questões imobiliárias e do dinheiro. Jake morre-lhe o avô (não custa imaginar este início em raccord com o fim do filme anterior) e muda-se para uma casa deixada por este. Junto à casa trabalha, numa loja que era também pertença do falecido avô, uma senhora latina e o seu filho, Tony. Os dois rapazes vão tornar-se melhores amigos, os pais vão desentender-se. O mais incrível deste comovente filme é a maneira como a forma espelha o seu conteúdo. A amizade dos dois é livre, são os travellings contínuos em que andam de skate pelas ruas, em que vão para a escola. O travão dessa amizade são as casas, espaços de imobilidade, mas também de uma transformação social. As casas mudam o preço, mudam os inquilinos e ameaçam terminar o movimento que se faz lá fora, além paredes, entre desiguais. Entre o que prende e o que liberta está o espaço intermédio do crescimento, parece dizer-nos Ira Sachs. Mas o espectador, esse, liberta-se, emociona-se, desde os primeiros momentos.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Certain Women (2016) de Kelly Reichardt

Há dois traços comuns no cinema de Reichardt: 1) o sentimento de uma certa melancolia associada a um relação especial das seus personagens com a natureza (a maior parte das vezes filmadas em longos e suaves planos pelas paisagens naturais do Estado de Oregon); 2) a importância dada aos pequenos grandes momentos do quotidiano, sem heróis aguerridos ou acções estridentes. Nos seus últimos dois filmes, Meek’s Cutoff (O Atalho, 2010) e Night Moves (2013), unidos entre outras coisas pelo tema da água (num convertido em busca física e metafísica, no outro o espaço que “aprisiona” a água, a barragem, é o que tem de ser derrubado), Kelly tenta o western e o ligeiro thriller ambiental como casas possíveis e agregadoras para estas suas preocupações.

Mas a suavidade da cineasta deixa-se conter mal por espartilhos. Assim, Certain Women, retoma, num total sentido de liberdade e comunhão com o espaço, as deambulações de Wendy and Lucy(Wendy & Lucy, 2008) e de Will Oldham e Daniel Londan em Old Joy (2006). Essa liberdade implica que as personagens principais das três histórias que Kelly filma se cruzem mas sem que se sublinhe a necessidade da rima própria de uma “poética do acaso”. Não. Esse encontro faz parte de uma mesma cadência da vida que se recusa a hierarquizar acontecimentos. Não por acaso os carros desempenham papel de ligação entre as personagens, como se toda a realidade não pudesse deixar de ser ela própria um road movie onde as coisas se encontram, sem acidentes aparatosos. Estas “algumas mulheres”  são como esses contos de Maile Meloy, a partir do qual a realizadora escreveu o argumento: um acidente de trabalho que dá azo a um acto de desespero; um monumento ao quotidiano que se constrói de pedra; ou um acidente em plena planície (onde não há contra o que chocar) e uma hipótese de amor por concretizar. Tudo a fazer sentido num 16 mm granulado e apaziguador, num cinema instalado no tempo que passa, sem sobressalto. Uma “vida sem drama” onde apenas flui o drama da própria vida. Soberbo.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

"Elle" de Paul Verhoeven

Raccord perfeito para a “pós-carreira” de Verhoeven uma vez feita a aclamação do cineasta enquanto autor: primeiro filme em França, produção do franco-tunisino Saïd Ben Saïd (responsável pelos últimas obras de Philippe Garrell, Kléber Mendonça Filho, Cronenberg) e estrela francesa, Isabelle Huppert. Adaptando o romance “Oh…” de Philippe Djian, o cineasta holandês prossegue com a sua investigação da real natureza da sexualidade, tendo como veículo mais uma das suas destemidas guerreiras. Isabelle é uma mulher de negócios de sucesso (tem uma empresa de criação de videojogos) que, numa ocasião após ser violada por um desconhecido, acaba por procurar saber mais informação sobre o seu “forçado amante”. Ofenderia certamente os defensores dos direitos das mulheres dizer que Elle (Ela, 2016) é um thriller erótico em torno da violação; inversamente, seria ir longe demais achar que estamos aqui no puro drama da mulher ofendida. Em todo o caso, o que interessa a Verhoeven é filmar a sexualidade como algo que está longe de ser drama e que não se basta (embora não prescinda dele) no frisson da violência e da submissão. Assim, mais do que os corpos de Sharon Stone e Michael Douglas a balançar entre o amor e o sexo de Basic Instinct (Instinto Fatal (1992) ou o o sexo desabrido e natural de Turks Fruit (Delícias Turcas, 1973), sua primeira longa-metragem feita na Holanda, Elle parece a expansão de uma cena do menos conhecido Flesh+Blood (Amor e Sangue, 1985), filme de época passado na transição da Idade Média à Renascença. Nesta cena, Rutger Hauer viola Jennifer Jason Leigh, quando descobre, para muito espanto seu, que afinal é o contrário: ela viola-o a ele.
O rosto de Huppert é uma fortaleza. Ele fecha todas as emoções e depois são os encenadores, realizadores, que se divertem a abrir a caixa de pandora. Já tinha acontecido, por exemplo, quando no teatro fez “4.48 Psychosis” de Sarah Kane, ou quando se mutilava em La Pianiste (A Pianista, 2001) de Michael Haneke. Aqui, quando toda a gente está interessada na “jogabilidade” do sexo (o ex-marido, o amante oficial, a mãe e o seu puppet sexual, e um dos empregados da empresa), Huppert apenas se preocupa com a verosimilhança da convulsão orgásmica. Para tal não há domesticação/consentimento possível para o prazer, numa rede onde todos os homens têm a sua pulsão (e daí o renoirismo do filme, desde logo assumido pelo autor) e onde Huppert os dispõe num imaginário eventualmente romântico que vai desde o ideal ao fatal [e daqui a influência de  (Fellini 8 ½, 1963)], também declarada. Mas esqueçam tudo isto porque afinal Elle é filha de um psicopata (de dois, um sem aspas e outro com, o pai da personagem e o autor): como se Huppert encarnasse Janet Leigh e tivesse sobrevivido ao chuveiro com Anthony Perkins, ou à violação, dois anos antes, em Touch of Evil (A Sede do Mal, 1958). Depois disto, e para uma sobrevivente, já só o prazer vale.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Frango à moda de Lynch


O que fazer quando estás na casa dos 20 e te dão 10.000 dólares para dar corpo à imagem da cabeça de um homem a cair ao chão e a ser apanhada por um menino que a leva a uma fábrica de lápis? Fácil. Realizas Eraserhead (No Céu Tudo É Perfeito, 1977), um delírio que puxa Gogol e Kafka da literatura, Cocteau e Bunuel do próprio cinema, e deixas toda a gente a pensar até que ponto não passarão a ver a tua imagem de marca (raccord de cabelo incluído entre o metteur en scène e o protagonista Jack Nance) como uma cabeça-borracha, que lentamente apaga o real para lhe reescrever o surreal. Mas o franguinho… foi o que me trouxe. Não há como esquecer esta cena. Bill vai jantar a casa da mãe do seu futuro filho (um ser viscoso e chorão meio ET sem perninhas, meio ténia solitária) e os frangos, “little damn things, smaller than fists”, é o há para papar. O chefe de família que tinha pincelado os ditos bichos na cozinha, enquanto a avó catatónica mexia a salada, tem um problema no braço e não pode cortar a carne. Cabe então ao nosso herói trinchar os bichinhos. Mal espeta o garfo a um, as patinhas começam a dar a dar, do seu interior sai um fio de sangue. A mãe tem um ataque que mais parece um orgasmo (o movimento das patas do frango tem algo sexual, como terá mais tarde o retirar de uma mala debaixo da cama no quarto de Bill) e Lynch filma o interior do frango, como um buraco de uma fechadura, esvaindo-se em líquido. Se não há como não perder o apetite depois disto, a cena antecipa o trinchar que aqui não chega a acontecer e só virá perto do final quando o pai “abre” o próprio filho. De olho aberto ficamos nós com a chegada de Lynch ao cinema, num momento tão poderoso como o famoso rasgar da retina bunueliano.


terça-feira, 8 de novembro de 2016


segunda-feira, 7 de novembro de 2016

"A Toca do Lobo" de Catarina Mourão

Quem por estes dias visitar a toca [do Lobo] pode por lá encontrar três tesouros:
1. O arquivo emocional
Talvez o mais justo que se possa dizer sobre a última longa-metragem documental da realizadora é que se trata de um filme sobre uma neta que precisa de saber mais sobre o seu avô. Avô que nunca conheceu mas que, como um sonho recorrente, lhe apareceu desde pequena e do qual sempre ouviu falar. Ele gostava do nome Catarina… Ele era escritor mas ela não leu ainda todos os seus livros…  Ele tem várias ruas, sempre traseiras e marginais, com o seu nome… Mas quem era afinal aquele invulgar homem ao qual uns chamavam bizarro, outros visionário? Aquele homem que viu a sua lucidez presa num manicómio para não ser preso de facto? Quem era o escritor e o homem que morria de saudade pela filha (mãe de Catarina), mas que esta lamenta a distância e frieza? Como era a sua casa, entretanto vertida em museu, espaço agora inacessível à realizadora e “aprisionado” por uma tia que não fala com a irmã há trinta anos?
As fotografias dos álbuns de família, que ora mentem ora confirmam sentimentos e estados de alma, os preciosos vídeos caseiros e uma entrevista dada por Tomás de Figueiredo à RTP nos anos 60 são as pistas de arquivo que Catarina Mourão tem para responder a estas questões. Desta forma, a dimensão pessoal e autobiográfica de A Toca do Lobo é-nos filtrada através de um whodunnit que em rigor é antes um whowasit. Catarina procura na toca do lobo. Como ferramenta um arquivo que serve uma investigação emocional e nos convoca os sentimentos de ternura familiar, ao mesmo tempo que nos aguça o mistério e nos traça o ambiente de uma vida sob a égide da ditadura portuguesa.

2. O arquivo performativo
Contudo, não só Catarina nunca conheceu Tomás, como ninguém parece tê-lo feito. Esposa, filha, vizinhas, ninguém nunca percebeu o notário que escrevia e muito mais podia ter escrito, o homem que se levantava tarde e fumava e escrevia sonetos e coleccionava saquinhas de cachimbos à espera das netas que haviam de vir um dia. Por tudo isto, talvez se possa dizer que A Toca do Lobo não usa o arquivo em busca de um retrato, de uma resposta para o mistério. A dada altura o espectador percebe que esse mistério,o “mistério” da criação artística (do avô e da neta) não se resolve, não é “crime” que se deslinde. Assim, resta pegar nesse material do passado para construir, performativamente, uma visão do presente que o receba; transformar uma falta numa presença possível. A resolução do mistério da arte só podia ser a arte, neste caso, um filme. E neste cintila o que de mais precioso um filme pode ter: um mistério intacto e irresolúvel.
3. O arquivo aberto
Na já referida entrevista de Tomás de Figueiredo há duas pérolas que são parte deste tesouro. O primeiro é a forma como o escritor fala dos meios imperfeitos da televisão por comparação às imagens mentais, a forma como aquela, a preto e branco, não pode revelar por exemplo as cores e as texturas das saquinhas de cachimbo que coleccionava. O segundo quando Tomás confessa que espera que um dia as suas netas usem as suas saquinhas para lá colocarem conchas da praia, ou outras brincadeiras, em vez dos ratos as comerem, como triste desfecho do passar do tempo. Quando Catarina usa estas imagens ela sabe que o arquivo que as mostra, aberto, comunicou consigo, com o  presente. Que aquelas imagens não só lhe “deram o nome” que hoje tem, como a vontade de “brincar” com esses objectos que faziam parte da colecção de memórias do seu avó. Podemos dizer hoje que o cinema também é (ou continua a ser) imperfeito por relação às ditas imagens mentais. Contudo, já revela as cores e as texturas das ditas saquinhas. Esse acto de revelação que, mais do que tudo, nos revela enquanto espectadores, é, diga-se, o grande tributo que Catarina Mourão prestou a um sonho que não conheceu, o seu avô. Mas quem pode afinal conhecer um sonho?

domingo, 6 de novembro de 2016

O Ornitólogo: olhar para cima/olhar para baixo

Creio que o cinema de João Pedro Rodrigues sempre esteve interessado em explorar as potencialidades do erotismo, mas também do amor, como formas de levar o corpo ao ponto da sua transformação. Não só a mudança física mas também, e sobretudo, na forma como essa transformação abala a noção mais vasta de identidade e leva a refazer um olhar sobre a realidade. Em O Ornitólogo esse interesse ganha expressão na possibilidade de um corpo e de uma alma se puderem observar mutuamente, num movimento de um ascetismo que não dispensa a indagação da sua carne e vicerversa.

Lembrei-me de dois momentos anteriores no seu cinema: os planos finais de A Última Vez Que Vi Macau, designadamente o contrapicado das águias que já rondavam uma Macau que tinha abandonado uma hipótese de pseudo-ficção; e ainda os planos finais, picados, de Manhã de Santo António nos quais o santo observava os zombies lisboetas a regressar a casa depois de uma noite de excessos. Estes dois planos continham em gérmen esta hipótese de um ornitólogo que tem de olhar o céu (as aves) para atingir a santidade (como o espectador ainda olha a tela do cinema), ao mesmo tempo que essas aves lhe devolvem o olhar, quiçá em semelhante demanda. O alto e o baixo em com-posição.
Como entender esta composição? Creio que aqui está o presente que nos dá O Ornitólogo. O filme compreende que filmar um homem perdido na natureza, a caminho do despojamento, mimando alguns episódios da vida de Santo António, é, por si só e enquanto refém de um simbolismo religioso, um dispositivo cinematográfico terreno. Por isso, ele não serve só por si, está, digamos, incompleto. Se o filme fosse apenas uma tese sobre a ascese religiosa, o simbolismo bastar-se-ia, quer dizer, ele prenderia o filme à terra, a uma redenção que escolheria o caminho pasoliniano, deixando para trás possibilidades outras, bem conhecidas da transcendência do cinema. Contudo, volto a frisar a importância dos planos picados que em si vão progredindo no sentido de “despir” o actor para encontrar o autor. Esses planos são, em meu entender, um índice de que o despojamento religioso não é uma tarefa que possa apenas ser alcançada com o esquecimento da carne, isto é, olhando para cima, para o céu, para as aves e a natureza, esquecendo o terreno.
Há portanto que rebolar na terra, que levar com o mijo, que dar as mãos ao som de (Santo) António Variações. Esta opção desconcerta o espectador que já havia escolhido o caminho da imersão do homem na natureza para se descartar a ele próprio de tudo o que fizesse olhar de cima para baixo, tão concentrado estava na tarefa inversa. Esta opção, arriscada creio, recusa então extirpar o banal (até o kitsch, correndo o risco de já estarmos a fazer juízos de valor) do caminho do sagrado, compondo uma via sacra, oh deus!, afinal tão profana.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

O objectivo: é triste… É triste dizer. Dizer que anda tudo enganado na ordem da respiração, no voar e no andar, no cimo e no baixo, no forte e no fraco. Anda tudo convencido que sim, só que não. E porque não? Porque sim: as ruas estão agitadas e o outro é uma grade de ferro ou de aço, ou de algo muito forte e rijo. E ninguém lá entra a não ser que começe a andar à roda como as sereias, a mostrar as mamas como as sereias, a cantar como as ninfas, com uma alga a fazer de cabeleireira esbelta.