domingo, 6 de novembro de 2016

O Ornitólogo: olhar para cima/olhar para baixo

Creio que o cinema de João Pedro Rodrigues sempre esteve interessado em explorar as potencialidades do erotismo, mas também do amor, como formas de levar o corpo ao ponto da sua transformação. Não só a mudança física mas também, e sobretudo, na forma como essa transformação abala a noção mais vasta de identidade e leva a refazer um olhar sobre a realidade. Em O Ornitólogo esse interesse ganha expressão na possibilidade de um corpo e de uma alma se puderem observar mutuamente, num movimento de um ascetismo que não dispensa a indagação da sua carne e vicerversa.

Lembrei-me de dois momentos anteriores no seu cinema: os planos finais de A Última Vez Que Vi Macau, designadamente o contrapicado das águias que já rondavam uma Macau que tinha abandonado uma hipótese de pseudo-ficção; e ainda os planos finais, picados, de Manhã de Santo António nos quais o santo observava os zombies lisboetas a regressar a casa depois de uma noite de excessos. Estes dois planos continham em gérmen esta hipótese de um ornitólogo que tem de olhar o céu (as aves) para atingir a santidade (como o espectador ainda olha a tela do cinema), ao mesmo tempo que essas aves lhe devolvem o olhar, quiçá em semelhante demanda. O alto e o baixo em com-posição.
Como entender esta composição? Creio que aqui está o presente que nos dá O Ornitólogo. O filme compreende que filmar um homem perdido na natureza, a caminho do despojamento, mimando alguns episódios da vida de Santo António, é, por si só e enquanto refém de um simbolismo religioso, um dispositivo cinematográfico terreno. Por isso, ele não serve só por si, está, digamos, incompleto. Se o filme fosse apenas uma tese sobre a ascese religiosa, o simbolismo bastar-se-ia, quer dizer, ele prenderia o filme à terra, a uma redenção que escolheria o caminho pasoliniano, deixando para trás possibilidades outras, bem conhecidas da transcendência do cinema. Contudo, volto a frisar a importância dos planos picados que em si vão progredindo no sentido de “despir” o actor para encontrar o autor. Esses planos são, em meu entender, um índice de que o despojamento religioso não é uma tarefa que possa apenas ser alcançada com o esquecimento da carne, isto é, olhando para cima, para o céu, para as aves e a natureza, esquecendo o terreno.
Há portanto que rebolar na terra, que levar com o mijo, que dar as mãos ao som de (Santo) António Variações. Esta opção desconcerta o espectador que já havia escolhido o caminho da imersão do homem na natureza para se descartar a ele próprio de tudo o que fizesse olhar de cima para baixo, tão concentrado estava na tarefa inversa. Esta opção, arriscada creio, recusa então extirpar o banal (até o kitsch, correndo o risco de já estarmos a fazer juízos de valor) do caminho do sagrado, compondo uma via sacra, oh deus!, afinal tão profana.

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