quinta-feira, 10 de novembro de 2016

"Elle" de Paul Verhoeven

Raccord perfeito para a “pós-carreira” de Verhoeven uma vez feita a aclamação do cineasta enquanto autor: primeiro filme em França, produção do franco-tunisino Saïd Ben Saïd (responsável pelos últimas obras de Philippe Garrell, Kléber Mendonça Filho, Cronenberg) e estrela francesa, Isabelle Huppert. Adaptando o romance “Oh…” de Philippe Djian, o cineasta holandês prossegue com a sua investigação da real natureza da sexualidade, tendo como veículo mais uma das suas destemidas guerreiras. Isabelle é uma mulher de negócios de sucesso (tem uma empresa de criação de videojogos) que, numa ocasião após ser violada por um desconhecido, acaba por procurar saber mais informação sobre o seu “forçado amante”. Ofenderia certamente os defensores dos direitos das mulheres dizer que Elle (Ela, 2016) é um thriller erótico em torno da violação; inversamente, seria ir longe demais achar que estamos aqui no puro drama da mulher ofendida. Em todo o caso, o que interessa a Verhoeven é filmar a sexualidade como algo que está longe de ser drama e que não se basta (embora não prescinda dele) no frisson da violência e da submissão. Assim, mais do que os corpos de Sharon Stone e Michael Douglas a balançar entre o amor e o sexo de Basic Instinct (Instinto Fatal (1992) ou o o sexo desabrido e natural de Turks Fruit (Delícias Turcas, 1973), sua primeira longa-metragem feita na Holanda, Elle parece a expansão de uma cena do menos conhecido Flesh+Blood (Amor e Sangue, 1985), filme de época passado na transição da Idade Média à Renascença. Nesta cena, Rutger Hauer viola Jennifer Jason Leigh, quando descobre, para muito espanto seu, que afinal é o contrário: ela viola-o a ele.
O rosto de Huppert é uma fortaleza. Ele fecha todas as emoções e depois são os encenadores, realizadores, que se divertem a abrir a caixa de pandora. Já tinha acontecido, por exemplo, quando no teatro fez “4.48 Psychosis” de Sarah Kane, ou quando se mutilava em La Pianiste (A Pianista, 2001) de Michael Haneke. Aqui, quando toda a gente está interessada na “jogabilidade” do sexo (o ex-marido, o amante oficial, a mãe e o seu puppet sexual, e um dos empregados da empresa), Huppert apenas se preocupa com a verosimilhança da convulsão orgásmica. Para tal não há domesticação/consentimento possível para o prazer, numa rede onde todos os homens têm a sua pulsão (e daí o renoirismo do filme, desde logo assumido pelo autor) e onde Huppert os dispõe num imaginário eventualmente romântico que vai desde o ideal ao fatal [e daqui a influência de  (Fellini 8 ½, 1963)], também declarada. Mas esqueçam tudo isto porque afinal Elle é filha de um psicopata (de dois, um sem aspas e outro com, o pai da personagem e o autor): como se Huppert encarnasse Janet Leigh e tivesse sobrevivido ao chuveiro com Anthony Perkins, ou à violação, dois anos antes, em Touch of Evil (A Sede do Mal, 1958). Depois disto, e para uma sobrevivente, já só o prazer vale.

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