quarta-feira, 27 de julho de 2016

Vasco ama Bud (e eu amo Vasco)

Não me lembro de muito, mas disto tenho a certeza: que tinha oito anos; que, numa tarde das minhas férias de verão, o meu pai me levou ao clube de vídeo do centro comercial Tropical, em Linda-a-Velha, onde a única coisa que de tropical havia era o papagaio desbotado que, do alto da sua gaiola, ia saudando a conta-gotas os raros inconscientes que arriscavam aventurar-se pela pastelaria da cave (um antro a tal ponto escuro que conheço quem nele tenha sido assaltado por duas vezes enquanto bebia uma bica); que, já no clube de vídeo – e depois de ter espreitado pelo canto do olho os títulos dos pornos que preenchiam as prateleiras mais elevadas –, descobri, entrincheirados na secção «Acção e Aventura», um batalhão de VHS’s, em cujas capas despontava, invariavelmente, um sujeito gordo de barbas negras, que parecia olhar para mim com um misto de bonomia e desprezo. O seu nome de baptismo – vim a sabê-lo muitos anos mais tarde – era Carlo Pedersoli; o seu nome de guerra, esse, era Bud Spencer (Bud por causa da cerveja Budweiser; Spencer por causa do Spencer Tracy: maravilhosa combinação). Não me recordo do título do filme que, nessa tarde, levei para casa comigo (seria O Xerife Quebra-Ossos? o Banana JoeO Inspector Martelada no Nilo?). Aquilo de que me recordo, sim, é que, daí em diante, foram muitas as tardes que passei com o Bud Spencer e o seu amigo Terence Hill (nascido Mario Girotti), seguindo com uma devoção quase religiosa as suas comédias, dominadas por números deslapstick que, reiteradamente, iam desafiando as leis da física.

terça-feira, 26 de julho de 2016

até quando durará esta sede?



Sentei-me ontem para rever "3 Godfathers" de John Ford (dele pouco me lembrava), e trazia comigo uma garrafa de água de litro e meio. Durante quase todo o filme tinha apontado à cara também uma coluna de ar condicionado. Aos poucos o conteúdo da garrafa esvaziou-se mas estranhamente a sede manteve-se. E o vento no rosto só adensava o calor. Terminei a suar e com a boca seca mesmo já depois de Wayne passar o promontório e entrar no bar e pedir: Mister, milk for the infant and a cold beer for me. Passaram-se já várias horas entretanto, um sono meio agitado pelo meio e a simbologia religiosa do filme assentou lentamente sobre mim. Talvez "3 Godfathers" contenha um excesso próprio dos crentes, um conjunto de homens em que se acredita mais como visões do que heróis. Contudo, isso posso-vos assegurar, a minha sede e o meu calor de ontem não passaram. A água e o vento não foram o antídoto para a brasa dos céus do Arizona e esse milagre da sede e do calor interminável habitaram-me (talvez para sempre). Talvez os elementos em causa que escolhi fossem uma traição? Depois da morte de William Kearney no meio do sal e da sede - a despedir-se de todos e a bendizer o mundo que agora deixava - Hightower baixou o seu chapéu que esculpia para o amigo a sombra como leito possível de uma morte serena. O sol voltou a inundar tudo num silêncio abrasador e a luz tomou Kearney. Esse gesto de abrigo, um dos famosos de Wayne, é aquilo que o espectador espera, em vão, após terminar "3 Godfathers". No meu caso, inconsciente, procurei-o na água e no ar domesticado. Quão enganado podia estar? Os espaços de abrigo que Ford nos mostra só nos servem ao desabrigo, ao calor interminável. E não sei até quando durará esta sede...

sábado, 23 de julho de 2016

Monument Valley


Quem vê os filmes de John Ford, ou o ouve falar no seu estilo truculento logo percebe o lugar comum que circula entre a sua arte e a sua personalidade: the good bad man. Um lugar comum de alguém que trata o comum com a irreverência de uma rocha. Depois há que perceber que se "Stagecoach" é hoje o cúmulo do western e do fordianismo ele é-o porque encena essa carruagem como útero e como palco de uma resistência à violência da civilização. Ela avança apesar das dificuldades, contendo os bons, os maus, os futuros redimidos, mesmo os sem esperança. Esta carruagem é a corporização do acto de fronteira que é vital em John Ford: a fronteira do bom-mau-homem ou do homem que resiste duramente à vastidão do mundo, mantendo o seu núcleo interior imaculado e puro; a fronteira vital, ou o que faz a obra de arte perdurar: no fundo, a capacidade desse núcleo individual (e longe do lugar-comum) da obra se universalizar e se expandir, tornando-se comum ao sentir do humano; finalmente, o tema da família cujas forças agregadoras (diremos, forças gravitacionais) mantém unida apesar das alturas, vales, flechas ou balas. Por isso, Monument Valley é a casa do "good bad man": um local afastado da civilização onde a família se pode manter unida e traçar constantemente esse vai vem controlado entre o regaço da mãe ou o charuto de uma conversa e a majestosa solidão do penhasco e do voo circular do abutre. É o espaço do trabalho emocional e do trabalho de facto, diário. Que digo? Trabalho emocional. Ponto.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Mulheres Nuas


A cada dia vou perdendo seguidores aqui no blog. Estou a ver que tenho de começar a recorrer ao infalível método das mulheres nuas.

terça-feira, 19 de julho de 2016

Devir número


Leio esta passagem em "Se Isto é um Homem" de Primo Levi:

É Null Achtzehn. Não tem outro nome, Zero Dezoito, os últimos três algarismos do seu número de matrícula: como se cada um se tivesse apercebido de que só um homem é digno de ter um nome, e de que Null Achtzehn já não é um homem.

 Talvez tenha sido o horror do Holocausto, que foi "ontem", a etapa intermédia da tão falada automatização integral da sociedade. A crise dos projectos do iluminismo, dos ideais do progresso e das ciências humanas, o avanço da técnica na disponibilização do homem, o triunfo da lógica e da matemática aplicado a todos os domínios da existência. Fala-se muito da condição animal a que os nazis degradaram os judeus mas talvez aquele matrícula no braço e seus números identificadores de um homem tornado "carrinho de mão com braços" fossem já um sinal de todo este processo. 

Antes do devir-máquina, o devir número.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Le Locataire


Recordo-me que há uns anos ter visto "Le Locataire", logo após "Rosemary's Baby", e de me ter desiludido. Estaria demasiado focado na espera de uma surpresa final e a circularidade kafkiana deste novo apartamento de Polanski (cujo desfecho se sabe ou intui  poucos minutos depois de começar) arrastou todo o meu olhar com ele para a inútil esfera da previsibilidade. Há uns dias, agora que já tinha "deitado a história fora" (isto é, que tinha percebido o corpo do cinema a mutar-se entre a masculinidade do drama e a subtil feminilidade de uma presença) vi outro filme. A circularidade é, desconfio, outra: a das alturas. Poucas horas antes de vomitar e antes da sua "doença" se manifestar, Trelkovsky, embriagado, deitado na cama com Stella e já incapaz de cumprir um desejo em relação ao sexo oposto, fala da identidade que sobe pelo corpo acima até à cabeça. Ela é o limite o partir do qual já deixamos de falar "eu" e uma qualquer parte do corpo. A identidade resiste assim aos safanões, num movimento de baixo para cima, dos pés para a cabeça, em que esta é um último bastião de sanidade. Nessa ascensão, Trelkovsky, filho de Norman Bates, pinta os lábios, coloca uma peruca de mulher, parte os dentes da frente à espera que estes ainda digam algo de quem ele foi. Quanto o cume é atingido, o homem devém mulher e resta o movimento inverso: o mergulho das alturas para a dureza do chão, cá em baixo. Mas não uma vez, várias. Até o suicídio, ou a possibilidade de morte, entram na ordem da circularidade (que é como quem diz do espectáculo, da repetição do show do teatro ou do cinema; quão geniais são essas panorâmicas em que os vizinhos se transmutam em espectadores de uma actuação e as janelas em camarotes de sala de espectáculo?). O mergulho para a morte repetindo-se na exacta medida em que o avalia o olhar do exterior, do Outro-Vizinho-Desconhecido. Amparam-no ou empurram-no sempre, nessa "subida" até à perda da identidade e nessa "descida" até à perda da vida. O corpo, a mente, o outro: os três pilares desta incrível metamorfose que é "Le Locataire". E nessa circularidade é duvidoso que o tempo passe, seja o olhar de dentro para fora ou de fora para dentro, nesse egípcio sarcófago que é, no fundo, a expressão de todo e qualquer o voyeurismo social.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

A ideia é simples: uma cineasta, um crítico. Ambos montam um ensaio audiovisual sobre o mesmo tema: o gesto. Que diferenças haverá entre as duas obras, entre a intencionalidade de cada…gesto? Precisamente. Mas há um terceiro elemento nesta história toda. Uma crítica de cinema que escreve um ensaio (desta feita em papel) sobre as pontes, as diferenças entre os dois trabalhos. De que vértice deste triângulo se aproximará mais uma suposta essência do ensaio audiovisual? Como comentar criticamente as suas fronteiras?

Os dois ensaios audiovisuais são "Gestos do Realismo" de Margarida Leitão e "East Wood" de Ricardo Vieira Lisboa e o texto de relação entre os dois, "Confluências do Gesto", é da autoria de Inês Lourenço.

Agradeço muito a cada um dos vértices deste nosso "triângulo" que compõe a experiência de Laboratório da Interact: Revista Online de Arte, Cultura e Tecnologia dedicado ao tema «Cinema, Crítica Digital e Ensaio Audiovisual». Obrigado também ao Jorge Martins Rosa por nos convidar a editar esta edição e, finalment ao Luís Mendonça, meu colega de edição.

E agora vão ver e ler estes preciosos objectos:

segunda-feira, 11 de julho de 2016

passear numa rua feita de noite e assobio
trazer nas mãos os confetis emocionais de uma multidão,
um banho de cores e acertar o passo ao sorriso desconhecido;
a história são esses caminhos percorridos pelo anonimato.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Provérbio Sueco

Teme menos, confia mais; come menos,
mastiga mais; chora menos, respira mais;
fala menos, diz mais; ama mais 
e todas as coisas boas serão tuas.

Parece simples não? À cautela vou reduzir de 2 para 1 o nº. de hamburgers. 

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Os super tugas vão a Paris


quarta-feira, 6 de julho de 2016

A palavra cinema (a)parece-me hoje tão vazia agora que já não temos Abbas Kiarostami. Talvez só agora possamos sentir, com a mesma intensidade, a angústia da criança, de pão na mão e uma rua tão comprida para atravessar... Tão comprida me parece ser essa rua hoje, de facto.



terça-feira, 5 de julho de 2016

há dias em que acordar parece um capítulo perdido da eternidade
e outros há em que rosas nos transtornam ao ponto do instante
escrevo mesmo sabendo que alimento o demónio do esquecimento
mas que outras formas haverá de repousar o lugar da lembrança?

sexta-feira, 1 de julho de 2016