sexta-feira, 28 de setembro de 2018

The Wrong Man


The Wrong Man era um daqueles Hitchcocks que tinha visto há muito e do qual conservava apenas uma boa, mas muito abstracta, impressão. Revisto agora continuo a achar que faz uma boa parelha com I Confess feito três anos antes. Quanto mais não seja pelos seus protagonistas, o padre Michael Logan e o músico Manny Balestrero, ambos apanhados nas teias hitchcokianas urdidas de um peso, de uma culpa, e ambos silenciosos, serenos, esperançosos por uma Justiça que chegue e reponha a ordem normal dos acontecimentos.  O Bénard, aliás, falava nessa questão da espera como algo que opunha a personagem de Vera Miles à de Henry Fonda. Enquanto, a primeira havia sido transtornada fatalmente pelos incidentes que levaram à incriminação por um conjunto de testemunhas do seu inocente marido, este não havia verdadeiramente mudado apesar de tudo que lhe havia sucedido. Ela havia dado entrada numa prisão definitiva, ele espera da prisão literal sair rapidamente. Um pouco como a inabalável fé de Abraão, como bem viu em "Terror e Tremor" Søren Kierkegaard. Em todo o seu calvário nós ficamos com a inabalável certeza de que o Bem - neste caso, o achamento do verdadeiro culpado - surgirá mais tarde ou mais cedo. 

Mas tudo é muito irónico. Creio que foi no livro das entrevistas ao Truffaut que Hitchcock confessa que, apesar do filme terminar com a informação no ecrã de que a mulher de Balestrero havia recuperado a sanidade mental e saído do sanatório onde a dada altura é internada, tudo tinha sido para forjar um final feliz. Esse Bem de que falava. "Se calhar ainda hoje lá está", referia Hitch. Ou seja, se no cinema a fé inabalável move montanhas e rolos de película, na realidade não é bem assim. Esse era aliás a "pasmaceira" maior deste filme, segundo Hitchocock, que, habituado a ser o operário-cineasta-demiurgo de um mundo de emoções, de montanhas russas de tensão, de crescendos milimétricos e orgásmicos clímaxes thrillescos, se via aqui a braços com a chatice de ter de ser fiel a um caso verídico de uma falso culpado, de um caso de identidades trocadas. E isso vê-se bem no filme, todos os procedimentos policiais levados a cabo em pormenor, as cenas/planos em que Fonda só tem de caminhar, olhar, deixar a impressão digital denunciam essa "rigidez" que é tudo menos o toque de uma velha e bela Hitchcockery. 

Termino com uma curiosidade. Colecciono avidamente, laboriosamente, os raccords entre os ditos factos verídicos e o mundo da ficção. Essa obsessão fez-me pensar que o "olhar honesto" de Fonda poderia ter algum tipo de vestígio correspondente na sua biografia. Fui ler e encontrei uma coisa completamente diferente, outra coincidência neste filme, creio que se pode dizer assim, de "tentativa neo-realista" de Hitchcock. Em 1950, portanto seis anos antes deste The Wrong Man, a mãe de Jane e Peter Fonda, Frances Seymour Brokwaw, casada com Henry, suicidara-se devido a um colapso nervoso, aquando da estadia no Hospital Psiquiátrico de Austen Riggs. Agora vão lá ver as cenas entre Fonda e Miles, em que esta enlouquece e é colocada em "some place", como se diz no Psycho, para perceber a força, a ironia, a tragédia disto tudo. Talvez nunca Hitchcock tenha estado tão próximo do real e isso deixou-o imóvel, confuso, sem saber o que fazer. O filme, esse, ainda hoje irradia o seu estranho poder.

quarta-feira, 26 de setembro de 2018


"The winking humor of "To Catch a Thief" spilled over to "The Trouble With Harry", and some of John Michael Haye's sexiest double entendres ever came from the mouth of the octogenarian. "Do you realize you'll be the first man to cross the threshold?" Sam (John Forsythe) teases the Captain (Edmund Gwenn) in their first scene together, referring to hus courtship of the spinster, Miss Gravelly. "It's not to late, you know. She's a well preserved woman" replies the Captain defensively. "I envy you", Sam says. "Very well-preserved", the Captain muses, "and preserves have to be opened one day."

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Sentado, deitado ou de pé os filmes continuam a ter de ser vistos. Haja corpo para eles. A "sensação" sci-fi de 2018 é a segunda realização do argumentista de Saw (Saw-Enigma Mortal, 2004) e colega de escola de James Wan, Leigh Whannell. Falo de Upgrade (2018), ainda sem data de estreia por cá, um filme que actualiza tecnologicamente a lógica de RoboCop (Robocop - O polícia do futuro, 1987), adicionando (ainda) o ingrediente human enhancement (agora na fase da nanotecnologia) a uma história de vingança não muito distante de Death Wish (1974) e do vigilante Bronson. Mas enquanto no mundo imaginado por Verhoeven nos anos 80 havia uma candura deliciosa, o humano era uma fonte de mel e humanismo no meio de quilos de pesado metal, hoje, as lições de Cronenberg parecem ter sido apreendidas: o metal penetrou a carne, e, quando o corpo humano falha [o seu protagonista, Logan Marshall-Green, fica tetraplégico num assalto], chegam as metralhadoras incorporadas no tecido muscular (um novo significado para a palavra hand gun) e chega, sobretudo, um novo better brain.

O que mais interessa no filme de Whannell é precisamente a actualização do velhinho jogo de xadrez entre o homem e a tecnologia, na qual esta última começa a comer peças já no campo do adversário, isto é, desafiando a consciência humana, como a esse rei a quem se faz cheque-mate. Apetece citar Ágata:

"Podes ficar com as jóias, o carro e a casa / Mas não fiques com ele."

Na lógica de Upgrade, "as jóias, o carro e a casa" são isso mesmo, o material, ou melhor, a disponibilidade da materialidade de um corpo; e o "ele" seria esse último bastião de resistência, a consciência. É pena, contudo, que o filme se deixe fascinar pela observação do corpo "aumentado", os efeitos desse controlo de um corpo paralisado por um chip que o aumenta ao níveis de super ninja (como se diz, a dada altura) e tudo se perca um tanto na lógica do action movie, e dos twists e contra twists para achar um culpado da situação.

No entanto, essa inabilidade de um corpo fez-me regressar, com pezinhos (ainda funcionais) de lã, aos anos 70 e 60. O que fazíamos então com o nosso corpo quando esse passava do prazo de validade?

Escrevíamos, como Dalton Trumbo, sob um pseudónimo, quando o comunismo era "vírus mortal" que paralisava o corpo? Explico. Trumbo foi um notável argumentista norte-americano que escreveu parte importante da sua obra, sobretudo finais da década de 40 e década de 50, sob outros nomes. Falo de filmes tão notáveis como Gun Crazy  (Mortalmente Perigosa, 1949) de Joseph H. Lewis, The Prowler (O Cúmplice das Sombras, 1951) de Joseph Losey, ou Roman Holiday (Férias em Roma, 1953) de William Wyler, este último tendo-lhe valido um Óscar, reconhecido apenas após a sua morte em 92. A razão deste "corpo escondido" deveu-se, já devem ter adivinhado, a ter sido um dos "dez de Hollywood" que recusou testemunhar ante o HUAC- House Un-American Activities Committee nos anos quarenta na perseguição comunista que se conhece. O resultado foi a prisão, o exílio no México e toda uma parte da sua carreira sob velada identidade.

Upgrade remeteu-me para a única experiência na realização de Trumbo, Johnny Got His Gun (E Deram-lhe Uma Espingarda...1971), baseado num romance que havia publicado em 1938, inspirado num caso verídico de um ferido americano da 1ª Guerra Mundial cujo corpo estava em tal estado – sem braços, pernas, visão ou audição, mas com consciência – que havia sido internado num quarto secreto durante cerca de 15 anos sem que se soubesse o que fazer com ele. [Se ao menos nessa altura se falasse já em chips miraculosos, a história seria naturalmente outra...] Trumbo tentou que o seu romance passasse ao cinema mas sem sucesso devido a todas estas ocorrências. Só em meados da década de 60, o produtor de Luis Buñuel, Gustavo Alatriste, se dispôs a produzir o filme, e a intenção era que fosse o espanhol a assumir a realização. Buñuel, que chegou mesmo a colaborar no argumento (e quem vir o filme percebe logo o seu dedo no onirismo que vai fazendo a ponte entre o jovem soldado na cama do hospital e as sequências do seu passado/sonho), acabou por não dirigir Johnny Got His Gun e tudo se fez apenas em 71, com Trumbo a encarregar-se da realização.

Torna-se assim fácil perceber que, a par da mensagem anti-militarista que acabou por ser premiada em Cannes nesse mesmo ano, Johnny é também um filme que, ainda que inadvertidamente, comenta parte da carreira do próprio realizador, de mãos e pés atados. Situação de que apenas se começou a libertar com o "auxílio" de Otto Preminger e Kirk Douglas quando estes insistiram que o seu verdadeiro nome aparecesse no genérico de Exodus (Éxodo, 1960) e Spartacus (1960).  Mas enquanto Upgrade é um filme sobre a desesperada e imediata superação da imobilidade, Johnny é um filme-meditação acerca da mobilidade como condição de comunicação com o exterior. O que não deixa de ser interessante, pois é possível imaginar um raccord entre os dois. O soldado Joe (Timothy Bottoms) tenta aperceber-se da sua condição, recorrendo, oniricamente, à fé e diálogo com Cristo (um excepcional e novíssimo Donald Sutherland), à conversa com o seu falecido pai (o não menos genial Jason Robards) e numa empatia possível com uma das enfermeiras. O calor do sol, a comunicação por código morse, o aperceber-se do tempo que passa, a mensagem da chegada no Natal, mesmo a hipótese de eutanásia, são tudo soluções que o filme de Trumbo trabalha para evitar o isolamento com o mundo. No final - spoiler - o jovem cujo corpo nunca vemos ao longo do filme (mesmo nas sequências de juventude, aquele aparece-nos nu, na penumbra) permanece encerrado, mas não morto, pedindo ajuda, SOS. Empatia e comunicação como superações da mobilidade.

Agora imaginemos este raccord, em que esse corpo sobrevive e que, chegando a 2018, recebe uma pílula tecnológica que o faz mover e matar e esmurrar como ninguém. A razão pela qual a Whannell não lhe interessa reflectir acerca da imobilidade mas sim adicionar-lhe acção e movimento é o mesmo motivo pelo qual a apresentadora da RTP, Sónia Araújo, sabe que, quando convida uma professora de yoga para o programa tem de ir comentando sempre a sua meditação em directo, escapando ao essencial silêncio, ao horror do vazio declarado pela "caixa que mudou o mundo". Mas essa recusa de Whannell tem também, e ainda, o mesmo motivo que fez os médicos que trataram o caso de Joe encerrá-lo num quarto. Pensar que o contrário da paralisação de um corpo é a injecção de movimento. Por isso, Johnny Got His Gun termina nesse implacável pause, nessa espera pela tecnologia. E Upgrade, quarenta e tal anos depois, parece vir dizer-nos que a espera foi, em parte, em vão. A mobilidade como uma forma de acrescento do cinético não se confunde com o movimento do cinema. Talvez nem fosse necessário recorrer às cenas a cores, do passado e dos sonhos do soldado Joe, para perceber que o filme de Trumbo se mexe muito mais. O cinema do filme de Trumbo mostra-nos, inequivocamente, que a mobilidade é sobretudo um affair de emoção, da capacidade de nos transportar de uma carne que é nossa, para outros espaços que se fazem, progressivamente, nossos. Falou-se da "ousadia" da hipótese da eutanásia ser avançada assim no cinema americano nos anos setenta, mas essa ousadia é menor quando comparada com este verdadeiro valor do movimento, do que fazer com um corpo que, fisicamente, não se mexe. E sim, estou a falar de Oliveira, e Dreyer, e os êxtases frenéticos da imobilidade física. Se acham que isto não é ousado o suficiente, recuemos ainda mais dez anos.

Les dimanches de Ville d'Avray (Os domingos de Cybele, 1962) de Serge Bourguignon foi o candidato francês aos Óscares em 1963. Escândalo. Na "sombra" ficaram, nada mais nada menos do que: Jules and Jim (1962) e Vivre sa vie: Film en douze tableaux (Viver a Sua Vida, 1962). A indignação fazia algum sentido até porque se dizia que as grandes influências do realizador francês eram sobretudo as viagens e documentários que tinha feito pela Ásia e, quanto muito, uma certa veneração (um certo espelhismo, e aqui a palavra, como verão, é importante) face à dimensão narrativa do cinema norte-americano. Longe, portanto, dos experimentalismos da vaga. O filme, adaptado de uma obra de um romancista francês, Bernard Eschasseriaux, começa com imagens a negativo da guerra da Indochina, desencadeando no momento em que o soldado Pierre (o alemão Hardy Krüger) "devirá" pedra ao atingir mortalmente uma criança. O resto das imagens que Bourguignon filmou poderiam bem ser uma tentativa de resposta a essa pergunta que venho deixando nas entrelinhas: "o que farei eu com este corpo?".

Mas, ao contrário do filme de Dalton Trumbo, aqui não é bem o corpo que fica inutilizado. Aliás, trata-se um homem alto, louro e bem constituído, como descreve a dada altura a sua namorada Madeleine (Nicole Courcel), quando procura por ele. É antes o espírito que vagueia, sem identidade, amnésico, órfão de uma certa capacidade de integração mental, até sexual, no seu pós-guerra. Falta introduzir a terceira personagem, também ela órfã, uma menina abandonada pelo pai num convento de freiras e que começará a passar os domingos com Pierre. Como em Johnny Got His Gun os despojados de guerra procuram uma qualquer reparação, física e/ou emocional. Não por acaso, quer num quer noutro filme são as sequências no Natal as mais líricas e duras.

Pode dizer-se, e com uma dada razão, que Les dimanches de Ville d'Avray é um filme hiper-consciente da sua atmosfera de melancolia e abandono. Sobretudo nas cenas de passeio pelos bosques de Pierre – o amante que "deveria" ser pai –, com a sua Françoise si belle (Patricia Gozzi) – a amante platónica que "deveria" ser filha. Momentos de um onirismo fantasmático, retirado do mundo, em parte responsabilidade da luz maravilhosa de Henri Decaë e a fazer lembrar um pouco Hestnes e Inês de Medeiros em O Sangue (1989). Mas também se deve salientar que a mise-en-scène de Bourguignon trabalha, incansavelmente, sobre uma ideia de reflexo, sendo que os planos mais evidentes de tudo isto são: 1) um que apanha o andar na rua de Pierre através de um espelho lateral de um carro que faz tremer e tremer a sua imagem; 2) os passeios dos dois no bosque vistos, ou melhor, desenhados pelos reflexos das águas. E quando digo uma mise-en-scène incansavelmente reflexiva refiro-me ao facto de tudo se enrodilhar a dada altura em torno deste encontro de reflexos de pessoas despedaçadas, uma criança-adulto e um adulto-criança, que desfazem uma ideia de sexualidade proibida, que contorna – são os anos sessenta, lembrem-se – a questão da pedofilia. E depois, e aqui está talvez o facto deste ser um pouco um "filme órfão" de um realizador que pouco rasto deixou, tudo procura reflectir, icónica e narrativamente, esta ideia, como por exemplo podemos ver na metáfora das gaiolas que Pierre constrói com um amigo escultor. Ou como tudo parece antever, avisar-nos, para a tragédia, que, quando acontece, mais parece uma pedra que antes de cair, já estava no chão.

E termino este mês com um posfácio-twist – também tenho direito – revelando-vos a verdade. Ou como tive a ideia inicial para esta crónica. Vendo o magnífico programa Nanette da comediante Hannah Gadsby. Sendo originária da Tasmânia, e lésbica, a sua adolescência e início da vida adulta não foi nada fácil na pequena ilha australiana. O seu trabalho permitiu-lhe fazer uma espécie de sublimação cómica do seu passado, como forma de lidar com anos de traumas, discriminações e violências. E tudo porque o seu corpo, como o dos protagonistas destes três filmes, era visto como necessitando "reparação", upgrade. O mérito de Nanette está numa certa imbricação corpo-alma, forma-conteúdo. Na sua forma, ele percorre todo o espectro: faz-nos rir, faz-nos emocionar, faz-nos ficar angustiados, tensos, enervados, revoltados. E nessas transições não somos mais do que um io-iô nas suas mãos. Uma das frases que mais cravadas ficam é aquela em que Gadsby, ao nível de uma definição de identidade de género, se identifica sobretudo como "cansada". Cansada de ter de afirmar a sua identidade, de a usar como um estandarte (fazer dela comédia de efeito político), de suportar que, tal como os soldados que tratam Joe, o melhor é mantê-la num quarto escuro à espera de "solução".

Durante o espectáculo, nesse espectro que vai do humor ao desgosto, da auto-crítica à raiva e ao ressentimento, há momentos complicados, há frases com as quais nada concordo. Nomeadamente, a ideia de que a tomada de consciência de que a nossa História é patriarcal e cheia de abusos sobre as mulheres, deve ser expandida ao ponto de uma certa reescrita daquela. Como um gigantesco lápis azul que extirpasse/desvalorizasse/criticasse tudo o que tivesse tido origem por via desta desigualdade e abuso de um género sobre tudo o que o rodeou. Pergunto-me que História sobraria se fôssemos de facto consequentes, se essa ideia fosse mais do que perigosa retórica de natureza censória? O que não quer dizer que não possamos alterar a história a partir de agora. Mas em tudo o mais Nanette é brilhante e deixa-nos sobretudo a resposta, quando Gadsby deixar de "cantar e dançar" sob o seu trauma, à pergunta: "que farei eu com este corpo?". Com este corpo talvez possamos contribuir para que ele seja aceite tal qual é, para que mais do que se reponha uma igualdade de géneros e se combatam os abusos de uns sobre os outros, se tenha o poder de destruir a própria balança que faz o humano pender mais para a direita ou mais para a esquerda. É isso que talvez possamos fazer com este corpo e com este "chip" chamado consciência.

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Parecem cagalhões... Tudo podre, caralho... A minha sanita depois de eu cagar é mais limpa do que isto!" Foi com esta retórica inspiradora - uma montagem de excertos poéticos da primeira edição - que começou a nova temporada de Pesadelo na Cozinha (TVI), versão nacional da franchise Kitchen Nightmares, um dos pontos altos dessa heroica vaga de programas televisivos do início do século, baseados na criativa destruição psicológica de pessoas sem qualquer jeito para fazer aquilo que desejavam fazer - um riquíssimo filão que nos legou relíquias culturais como Gordon Ramsay, Simon Cowell, Moura dos Santos e o futuro Presidente dos Estados Unidos. O formato em apreço é de uma elegante simplicidade: um restaurante em dificuldades pede ajuda a um reputado chefe de cozinha, que aparece no estabelecimento, renova o equipamento e insulta filantropicamente todo o pessoal, num esforço generoso para protelar a inevitável falência durante seis meses, enquanto várias câmaras trémulas o filmam a arremessar frigideiras pela janela ou a pronunciar aos gritos o nome de vários legumes.

Skim reading is the new normal



(...)

terça-feira, 18 de setembro de 2018

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Que farei eu com este corpo?


Imaginem-me lá esta coisa. Este mês na crónica para a pala lembrei-me de uma coisa e comecei por escrever sobre essa coisa. Só que essa coisa tornou-se noutra coisa, uma vez que a primeira coisa de que me tinha lembrado me fez lembrar de uma segunda coisa. Escrevi essa segunda coisa. E ainda estava a meio de escrever a segunda coisa, quando me lembrei de uma terceira. Consequentemente, no final da segunda coisa escrevi a terceira coisa. Mas depois, quando achei que não haviam mais coisas para escrever, não é que me apercebi não só que ainda tinha uma quarta coisa para escrever, como essa coisa é que me tinha despertado a memória da primeira, segunda e terceira coisas? Ele há coisas…

sábado, 15 de setembro de 2018

moaning bull



“As his gaze ranged over the room full of his wild work, he struck his head and uttered a great cry; he fell down, a wreck amid the wrecks of the slaughtered sheep, and there he sat, with clenched nails tightly clutching his hair. At first, and for a long while, he sat dumb; then he threatened me with those dreadful threats if I did not describe all that had happened, and he asked in what a strange plight he stood. I told him all that had happened, friends, so far as I surely knew it. He straightaway broke into bitter lamentations, such as I had never heard from him before, for he had always asserted that such wailing was for craven and lowhearted man. No cry of shrill complain would pass his lips, only a deep sound, as of a moaning bull.”

 in "Ajax", Sophocles

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Revenge (Vendeta, 2018) de Coralie Fargeat


Tal como recorrente no subgénero rape and revenge, a primeira longa de Coralie Fargeat não foge à bipartição entre um primeiro momento em que a vítima é violentada e a segunda metade na qual, após inesperada sobrevivência, a mesma leva a cabo ferozes actos de vingança, reunindo em si forças que não sabia sequer possuir. Um pouco como o golo-estocada que o mensageiro-Éder cozinhou a partir das suas entranhas, atingindo fatalmente o "inimigo". Exemplos, uns mais outros menos, puxados à área do terror pelo extremo da vingança: Day of the Woman (Mulher Violada, 1978) de Meir Zarchi, The Last House on the Left (1972) de Wes Craven [aqui, uma das personagens vingava-se do seu agressor arrancando-lhe a pila à dentada], Straw Dogs (Cães de Palha,1971) de Sam Peckinpah ou mais recentemente Kill Bill (2003-2004) de Quentin Tarantino, ou Oldeuboi (Oldboy - Velho Amigo, 2003) de Chan-wook Park. A lista, percebem, é interminável.

Mas então o que haverá de interessante por aqui, nesta revisitação, no qual um bonzão (Kevin Janssens) leva a sua amante boazona (Matilda Anna Ingrid Lutz) para uns dias de um suposto fim-de-semana com os amigos, para uma caçada no meio do deserto? Bom, duas ou três coisas se podem apontar. Em primeiro lugar, que se trate de um dos primeiros revenge flicks, ainda para mais com uma mulher ao leme, feitos após os movimentos #MeToo e toda a vaga de escândalos de agressão sexual. Embora Coralie não nos queira esfregar isso na cara, o espectador não pode deixar de pensar nessa inevitável contaminação cultural, neste Revenge (Vendeta, 2018) como um certo espaço de empoderamento feminino. Sobretudo penso nisso na cena final, um verdadeiro merry-go-round no interior de um impecável apartamento, uma literal caça ao homem (nu), carrossel pintado de sangue.

Outro pormenor interessante tem precisamente a ver com os interiores (que ocupam sobretudo a primeira parte do filme e esta última): tudo é impecável, a televisão a debitar publicidades, o sofá de pele, o quadro da parede, a mobília do quarto. Onde quero chegar é que o filme de Coralie Fargeat creio que pretende fazer essa oposição entre um mundo materialmente "perfeito" e um mundo espiritualmente defeituoso (ela é a amante, o violador não sabe lidar com a rejeição, o terceiro é sempre um espectador sem coragem, etc). Em terceiro lugar, há espaço para um certo humor, sobretudo quando a pobre deixada para morrer se converte numa espécie de Amazona-Tomb Raider que vai dar uma de Rambo, retirando com facas e alucinogénos um pedaço de madeira da sua barriguinha. Finalmente, são os detalhes: o slow motion do gordo a comer o chocolate, as pingas de sangue a cair como bombas junto das formigas no deserto, as cores pop — o vermelho sangue, claro, mas também o azul do céu, o rosa do batom e da roupa de Matilda — em oposição com o mundo Mad Max, apocalíptico, da poeira e da areia. Por tudo isto, Revenge dispõe bem, apesar disso ser um contra-senso. Mas quem não aprecia um bom sorriso sádico, desde que no conforto de seu lar? Atire a primeira pedra, vá.

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

A Ciambra (2017) de Jonas Carpignano


No início de 2016 estreou em Portugal Mediterranea (2015), a primeira longa de Jonas Carpignano, italo-americano nascido no Bronx. O pai tinha sido um dos seus produtores, professor de sociologia que dava aulas entre Nova Iorque e Roma, e já naquele existia um impulso realista em direcção dos problemas da emigração, das minorias, e em concreto a forma como os italianos "acolhem" a questão. Mas é preciso recuar ainda mais, concretamente a 2012, para compreender as raízes deste A Ciambra (2017). Carpignano tinha então rodado A Chjàna (2012), prémio de melhor curta-metragem em Veneza, acerca de Ayiva, um emigrante africano que procurava encontrar-se com um amigo durante uma série de conflitos raciais em Itália. Conta-se que, durante a rodagem, muito material técnico havia sido furtado e que a equipa seguiu o rasto do material até a esta Ciambra, comunidade cigana de Calabria, para tentar reaver algumas das coisas. Aí conheceu a família Amato, em especial o rosto a chispar fogo, o duro magnetismo do menino Pio Amato. Quer Pio, quer Ayiva (aliás, o seu nome é Koudous Seihon) foram sendo o centro dos filmes seguintes e em A Ciambra, o retrato da comunidade a que a família de Pio pertence é também "desembrulhado" através da relação entre estes dois, um africano e outro cigano e já agora, uma amizade que não nos é mostrada mas que também não era preciso, entre estes dois e Carpignano.

Se contei tudo isto é porque eu creio que não se consegue arriscar o olhar em A Ciambra sem perceber este trabalho de fraternidade e amizade que sensibilizou Scorsese ao ponto de produzir o filme. O retrato é dardenianno, a câmara à mão não vai largar em especial Pio, que Carpignano quer ver crescer, quer ver passar para o lado dos homens (deixando o grupo das crianças e a guarda das mulheres). O filme é como uma grande ave que sacode as suas penas após banhar-se nas águas da política, e que só começa a voar quando se desembaraça (nem sempre com sucesso, diga-se) dos seus ímpetos de porta-estandarte do retrato justiceiro das minorias e dos oprimidos. Mas quando o consegue, A Ciambra emociona-nos pelo seu comprometimento: pelas moedinhas que o Pio "semi-emancipado" dá aos meninos mais pequenos; os cigarros na boca das crianças como os olvidados de Buñuel; o aninhar-se no colo da mãe depois de uma noite de crime; ouvir o nome do pai, Rocco, e lembrarmo-nos da obra-prima de Visconti que também aterra na miséria e no amor fraternal; os códigos de honra dos ciganos, a desconfiança dos africanos; o querer apenas fazer qualquer coisa como o irmão mais velho; o funeral do avô. Quando se cresce tudo arde, e a Carpignano, também ele um jovem, se pode desculpar alguma simplicidade narrativa de processos, os atalhos para chegar às profundezas de uma comunidade, seja ela composta por ciganos ou por cinéfilos.

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Walter Benjamin bookworm

"For what else is this collection but a disorder to which habit has accommodated itself to such an extent that it can appear as order? You have all heard of people whom the loss of their books has turned into invalids, or of those who in order to acquire them became criminals. These are the very areas in which any order is a balancing act of extreme precariousness (...) the phenomenon of collecting loses its meaning as it loses its personal owner. Even though public collections may be less objectionable socially and more useful academically than private collections, the objects get their due only in the latter. I do know that time is running out for the type that I am discussing here and have been representing before you a bit ex officio. But, as Hegel put it, only when it is dark does the owl of Minerva begin its flight. Only in extinction is the collector comprehended. (...)  Of no one has less been expected, and no one has had a greater sense of well-being than the man who has been able to carry on his disreputable existence in the mask of Spitzweg,'s "Bookworm." For inside him there are spirits, or at least little genii, which have seen to it that for a collector - and I mean a real collector, a collector as he ought to be - ownersliip is the most intimate relationship that one can have to objects. Not that they come alive in him; it is he who lives in them. "

in Walter Benjamin: "Unpacking my Library: A Talk about Book Collecting,"

Ana, mon amour


Talvez seja justo dizer, pelo menos baseando-nos neste Ana, mon amour (Ana, Meu Amor, 2017) e no anterior Pozitia copilului (Mãe e Filho, 2013 ), que o romeno Cãlin Peter Netzer, tal como uma das suas personagens, está fixado numa crónica das relações familiares obsessivas. Antes era a mãe em relação ao seu filho, agora um jovem face a uma neurótica e depressiva namorada.  A obsessão de Cãlin Peter Netzer é faca de dois gumes. O bom é que a sua escrita se ramifica, desenvolve, pormenoriza, cola-se como stalker ao detalhe no diálogo entre o obcecado e o objecto da sua obsessão, tudo se arrasta, interminavelmente, como numa minuciosa paranóia. O mau é que o universo do cineasta romeno é de tal forma trancado nessa relação familiar obsessiva que depois esquematiza em demasia as suas histórias, transforma os seus filmes em longas e dolorosas teses. Aqui, com este Ana, mon amour rapidamente percebemos a inversão que se vai operar ao nível das paranóias, e ainda mais cedo sabemos que o jovem universitário apaixonado (o excelente Mircea Postelnicu) vai cair e cair e cair. E isso é aborrecido, pois é traçar-nos um desenho nos primeiros minutos e depois vir o realizador com a câmara e desenhar os contornos grossos desse mesmo desenho. Entretanto tudo se vai modelando, mesmo o realismo do estilo, a esses contornos, a essa tese. A cena inicial onde Cãlin Peter Netzer opõe o gemido sexual à conversa filosófica sobre Nietzsche é disso um bom exemplo. Tudo se opõe ou inverte excessivamente como num gráfico, não tanto como no real.

domingo, 9 de setembro de 2018

10 anos de M2TM

Cresci no boom dos videoclubes e duas coisas me davam prazer. 1) "Varrer" prateleiras à medida que ia vendo coisas que nem sabia o que eram e descobrir assim que o cinema era uma prateleira (não "essa prateleira") infinita, descoberta perpétua; 2) As conversas intermináveis com as pessoas que lá trabalhavam que sabiam muito de cinema, que tinham visto tudo, que já conseguiam prever o meu gosto, que me diziam: "isto é para si". O Francisco Rocha é um dos maiores passeurs de cinema em Portugal, ele tem por missão dizer-nos "isto é para si", construir, qual hábil carpinteiro, a prateleira digital das nossas descobertas do cinema. Quem, por cá, pelo país do digital, pode dizer que ama o cinema e que nada deve desse amor ao Chico? Poucas, estou seguro. O seu videoclube é um trabalho de amor que já conta uma dezena de anos. Saibamos homenagear os nossos guias, aqueles que nos tornam a descoberta empolgante. Parabéns, Chico.

domingo, 2 de setembro de 2018

Escrever sobre cinema

Sempre invejei um pouco aquelas pessoas que desde muito cedo souberam do que gostam e do que não gostam. Porque para mim sempre foi tudo muito nebuloso, affaire para luta interna, momentos de dúvida e procuras incessantes. Ainda hoje, sei mais que "não sei se...", do que sei que "qualquer coisa". Anyway, sendo eu assim deste barro feito, quando encontro algo de que gosto mesmo de fazer é uma epifania.

E o que eu gosto mesmo... mesmo... de fazer é escrever sobre cinema. Ou melhor escrever com o cinema. Perguntar aos filmes o que sabem eles de mim e o que desconfio eu deles. E não me considero um cinéfilo certinho, ou talvez a palavra seja certeiro. Não sou um cinéfilo certeiro, dos que procuram na história das pessoas que fizeram os filmes indícios para compreender os filmes. Na verdade, é isso que se deve fazer. Mas eu sempre preferi insistir no erro, na procura de um mundo qualquer impossível, que muitas vezes nem razão de ser tem, nem factos a suportá-lo. Um autismo cinéfilo, que me descobre, me dá prazer. São os filmes que me picam a ponta dos dedos, que me escorraçam a modorra do cérebro, que me põem a pensar. E é por isso que o que eu gosto mesmo... mesmo... de fazer é escrever sobre cinema. Ou com o cinema, que é como dizer, comigo.