terça-feira, 14 de dezembro de 2010

“Mas se houver acidente fatal, darás vida por vida, olho por olho, dente por dente”


Peter Strickland, 37 anos, admitiu nas conferências de imprensa de apresentação de KATALIN VARGA, co-produção inglesa, romena e húngara, pelo qual foi nomeado ao Urso de Ouro em Berlim no ano passado, que estava convencidíssimo que ia falhar, mas que se isso acontecesse mais valia fazê-lo “com estilo”. Percebe-se a angústia. Afinal não é todos os dias que um inglês, estreante na realização e sem formação em cinema, escreve uma história de vingança de uma mulher e depois decide ir filmá-la para a Transilvânia, com actores romenos e sem dominar a língua local.

Katalin Varga (Hilda Péter) vive com o seu marido e filho, Órban, até ao dia em que na vila se descobre o seu passado. O marido ao saber que esta em tempos foi violada, expulsa-a de casa, pelo que Katalin se mete à estrada com o filho, numa carroça, Cárpatos acima, com o intuito de procurar os seus violadores e obter a sua vingança.

O desconhecimento da língua local que falávamos, mas também desconhecimento do lugar, e este é, note-se, um filme de espaços, surge como central em KATALIN VARGA, o filme. Dota-o de uma condição de estrangeiro, por onde quer que se queira olhar para ele. Da preocupação social vinda da muita falada nova vaga romena nem vislumbre, dado a sua condição de parábola cristã que rumina os desígnios da vingança. Mas curiosamente fá-lo com um olhar “abismado”, numa paradoxalidade quase becketiana, que ora o ancoram num tempo que é todos os tempos, ora o situam próximos de nós, como indicam o uso do telemóvel, por exemplo.


Ao inverso, mantém-se o sentimento de não pertença: um filme britânico mas com personagens que poderiam ter surgido de uma mitologia ou folclore russo, e acima de tudo, que se deixam absorver pela atmosfera inquietante que o extraordinário trabalho de som, que mescla o sobrenatural electrónico e o naturalismo das paisagens, veicula. O filme foi mesmo galardoado com o Urso de Prata de Melhor Contribuição Artística pelo seu sound design em Berlim. A própria câmara de Strickland parece ter chegado a um impasse, com uma história com algumas semelhanças a JUNGFRUKÄLLAN (A FONTE DA VIRGEM), de Ingmar Bergman, mas cujos cordelinhos são puxados por uma direcção de actores que mostra a marcação, as pausas, em suma, o teatro no seu cinema, e que alterna entre procurar as pessoas nos seus planos aproximados e procurar os caminhos de terra, a floresta dos Cárpatos ou os interiores rurais sombrios.

Assim, deste dolente “goat road” movie transcendental, entre a parábola cristã sobre a vingança e a meditação atmosférica com clara proximidade ao cinema de Tarkovsky, arriscam-se poucos mais vaticínios para além da inclassificabilidade do olhar de Strickland, mas sobretudo do seu gesto na realização.

KATALIN VARGA estreia esta quinta-feira, 16 de Dezembro.


sábado, 11 de dezembro de 2010

I'm Still Here- Casey Affleck

Com estreia já na próxima semana em Portugal, o documentário que provocou um mini sismo na indústria americana de cinema, I’M STILL HERE, de Casey Affleck, permite pensar nalgumas questões que lhe servem de base.

A fabricação de uma controvérsia como estratégia de capitalização da entrada de um produto na sociedade de consumo está longe de ser algo inovador, e ainda mais longe de o ser exclusivo da sétima arte. Ainda há cerca de quatro anos, só para citar um exemplo que rima com I’M STILL HERE, BORAT e depois BRUNO, com Sacha Baron Cohen, chocavam as audiências mantendo-as na credulidade de uma comédia invasiva, com episódios grosseiros que “aconteceram” mesmo e provocavam o embaraço do e no espectador. Nestes casos, regra geral, o desvelamento do segredo feito pelos obras, que fazem terminar o ambiente de controvérsia e de misticismo romântico, raras vezes funcionam como clímax do processo criativo. Ou seja, são antes vistos com o sentimento de expectativa gorada, a montanha que pariu um rato porque a ersatz de uma expectativa em que assentam é melhor do que nenhuma expectativa.

Trocando por miúdos, em 2008, ficou famosa uma entrevista de Joaquin Phoenix ao célebre apresentador de televisão David Letterman, em que aquele apareceu ao grande público de barba enorme e óculos escuros e se recusou praticamente a falar, pelo menos no modo descontraído daquele tipo de programas, e lá se confirmou, pelas suas palavras, o rumor que já circulava: o de que Joaquin Phoenix pretendia uma mudança de carreira abrupta que passava por deixar a representação e dedicar-se ao hip hop. Foi aqui que o processo mediático de construção de uma falsa controvérsia, que visava abanar as fundações da relação loucura - normalidade no interior do sistema de Hollywood, estava no seu auge. Pensou-se então em tudo, nas causas de tal decisão, na estrutura emocional de uma figura pública, na crueldade do mainstream, no transtorno do indivíduo ou na admiração do mesmo.

Um ano e meio volvidos, surge I’M STILL HERE, o documentário de Casey Affleck sobre a dita transformação do cunhado, Joaquin Phoenix, e com ele a justificação do dito episódio de 2008. Com quase nenhuma intervenção de Casey, o documentário segue Joaquin na sua decisão de deixar a sua persona pública, porque está farto da prisão que implica ser Joaquin Phoenix, o actor, e acompanha o seu dia-a-dia de figura “privada”, designadamente com Anthony e Larry, seus assistentes, e a sua tentativa de penetrar no mundo da música. Algumas das sequências mais engraçadas são, aliás, com Sean “P. Diddy” Combs, que faz dele próprio, mas enquanto guru da música que gosta de Joaquin mas despreza os seus talentos musicais.

Muitas das cenas de I’M STILL HERE estão tão estrategicamente inseridas do ponto-de-vista dramático que restam poucas dúvidas da falsidade de todo este processo infernal, sendo que ao caso não interessa tanto se as imagens seriam reais, mas mais se o poderiam ter sido. O próprio Casey Affleck ora questiona o ataque à veracidade do filme e a suspeição de que se trata de um embuste (como na cena em que Joaquin censura o entrevistador da Entertainment Weekly sobre como pode duvidar da sua decisão), ora integra a falsidade como facto consumando, desvalorizando-o, como na cena em que Joaquin acusa o seu assistente por ter violado o acordo de confidencialidade que assinou no início.

Ultrapassada a estratégia de verdade / mentira como um outro mecanismo de engagement qualquer, ficam várias perguntas para fazer a I’M STILL HERE. Como sobrevive o filme para lá de esclarecida a auto-encenação da revolta edipiana, de Joaquin contra o sistema que o fez nascer? Qual o valor do famoso clip da entrevista a David Letterman, agora integrado como ex-libris do documentário? Como ler este statement de revolta, de mau estar mediático, ainda que ficcionado, de uma estrela que poderia estar cansada de o ser? Ainda, que efeitos psicológicos deixará em Phoenix a representação ante uma câmara, de um Phoenix sem filtro (ou com menos filtro)? Essa simulação de loucura, palavra que utilizamos por economia de espaço, faz-nos pensar na solução, ainda que liricamente, de SHOCK CORRIDOR, de Samuel Fuller.

Ao espectador pergunta-se, afinal, “do we fuckin care?” E se a resposta for não, não é verdadeira. É certo que se despreza a estratégia mesquinha da chamada de atenção, do sentimento “reality fiction” de I’M STILL HERE, mas ainda assim, e na verdade, a “brincar a brincar”, como se costuma dizer... E por muito que a Magnolia Pictures, distribuidora do filme (a par de TWO LOVERS, de James Gray, filme cuja promoção Joaquin boicota como estratégia de I’M STILL HERE), seja uma das grandes vencedoras desta capacidade de minar por dentro, de mexer no tecido emocional e mediático do sistema, o certo é que esse falso mal être de Joaquin não é invenção dos deuses, é algo que parte de qualquer coisa genuíno. Ainda que possa não estar naquele corpo em concreto. Ainda que o dito sistema o engula para propósitos seus. Nesse sentido, Joaquin, na mais pura tradição ficcional, é um corpo mensageiro, preso numa espécie de luta interior que necessita de purificação. Ainda que simbólica, como na cena Gus Van Sant do “baptismo” final, realizador aliás a quem Affleck agracede nos créditos do filme.


quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A caixa é uma caixa é uma caixa

Quase dez depois do ovni tornado cool que foi Donnie Darko, um filme absolutamente determinante na sua capacidade de abrir a ferros o imaginário adolescente para um existencialismo consequente, Richard Kelly procurou contrariar essa sua aura “etérea” com The Box. Um filme que à partida não podia ser mais material, mais fechado em factos que o cinema se acostumou a distribuir por thrillers sobrenaturais mais ou menos corriqueiros: um casal nos anos setenta, ele James Marsden, e ela, imagine-se, Cameron Diaz, e uma simples caixa deixada à porta de casa. Caixa que só tem uma chave e um botão e com ela uma escolha, carregar ou não nesse botão, receber ou não um milhão de dólares, ser ou não o responsável pela morte de um desconhecido. Deste set up minimal e desta incoerência consciente de cast, Kelly resolve metaforizar o conto fantástico de Richard Matheson (argumentista de vários episódios da série Twilight Zone) e reflectir sobre a tema da caixa, a caixa da casa, do carro, da tv, da sala de cinema. Mas o empolgante em The Box não é nada disto, não é sequer a ideia do livre arbítrio humano que também é trazido ao barulho. A sua grande arma é uma crença romântica no ser humano que faz as suas personagens vaguearem do incómodo surreal urbano de David Lynch até à embaraçante parafernália de rumores sobrenaturais de mais um episódio de X Files. Isto, Richard Kelly faz sem pejos, com uma incerteza abismal e um "diálogo" perfeitamente eloquente entre o boçal e o bestial. O coelho de Donnie Darko que foi uma espécie de símbolo absurdo do seu cinema verte-se aqui na casa dos coelhos da famosa cena de Inland Empire, num movimento de interiorização que tem tanto de narrativo como de arquitectural.


terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Period Film, Period Cinema


Longe vão os tempos em que um filme como The Last Station, de Michael Hoffman, podia mexer com os nervos de uma pessoa. Uma semi-biografia histórica dos últimos anos do escritor Lev Tolstoy (Christopher Plummer), com enfoque na criação do movimento tolstoiano, de cariz anarco-cristão, que proclamava de forma tão mística, quão contraditória, o amor livre e o bem como motor da actuação humana. A este visionarismo, que inspirou a sensibilidade europeia de Hoffman (The Emperor’s Club, Restoration), junta-se-lhe um conflito que opõe Vladimir Chertkov (Paul Giamatti), discípulo e impulsionador do movimento, e Sofya Tolstoy (Helen Mirren), mulher do escritor, pelos direitos de autor da obra de uma das mais brilhante mentes russas do século XIX. O descentramento dramático desta obra que tem tantas “coisas para tratar”, surge na figura de um novo secretário de Tolstoy, Bulgarov, que ora quer seguir à risca o movimento em que acredita, ora se quer libertar, numa relação amorosa com a liberal Masha. Como se pode perceber trata-se de um projecto muito ambicioso que tem, além do mais, que cumprir uma formulação romântica e leve como o atesta a utilização da banda sonora ou esse lateral par amoroso.

Ficamos obviamente com pena que o romance homónimo de Jay Parini que inspirou o filme, não tenha sido melhor aproveitado no sentido de explorar a contradição de um génio que acaba os seus dias, isolado, na estação de caminho de ferros de Astapovo, ou que a riqueza da cosmovisão de Tolstoy tenha sido abandonada a umas quantas referências en passant. Fica-nos no entanto a estranha alegria de ver a estrutura de um filme como The Last Station, com as suas missivas e orgulho historicista, que pontuou nos anos 90 em obras como Shadowlands ou The Remains of the Day, transformar-se numa espécie de artefacto histórico, uma forma de fazer cinema de época que já é, ele próprio, de época também.

Se é verdade que interessa menos o que as personagens de Tolstoy e a sua mulher Sofya dizem e mais a forma como o dizem, fale-se então dos actores, pois que é um dos objectivos desta co-produção Reino Unido, Alemanha, Rússia. O canadiano Christopher Plummer é um Tolstoy humano, dividido, mesmo bonacheirão, e depois a britânica Helen Mirren agarra na perfeição a chave da indefinição psíquica da personagem de Sofya, que ama o homem desde que integrado num projecto de família. Nesse sentido pensemos em como e para que lado devem correr as grandes ideias? Resta ainda dizer que este foi um dos pares vencidos da edição dos oscares de 2010, ele nomeado a actor secundário, ela, a actriz principal.

O filme The Last Station estreia amanhã nos cinema nacionais .


quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Cela 211

Na cela 211 de uma prisão espanhola um homem comete suicídio: corta as veias dos pulsos na vertical e esvai-se em sangue. Mais tarde vem a saber-se que o motivo são as dores insuportáveis devido a um tumor no cérebro do tamanho de um “kiwi”. Agora a cela está vazia e é nela que os guardas prisionais colocam provisoriamente Juan Oliver, jovem que na véspera de iniciar funções na prisão sofre um “acidente” numa primeira visita às instalações.

Entretanto, os prisioneiros amotinam-se e o protagonista tem de se infiltrar, fazendo-se passar por criminoso, para poder sobreviver à revolta. Este é o set up de Celda 211, de Daniel Monzón, nomeado a 16 (!) categorias da edição dos Goya deste ano e vencedor de metade, entre eles melhor filme, melhor argumento, melhor realização, melhor actor principal (Luis Tosar) e melhor actor revelação (Alberto Ammann).

E qual a chave deste êxito, perguntar-se-ia? Ao quarto de hora de filme, Juan Oliver (uma espécie de John Doe, John Smith espanhol) recupera consciência e livra-se imediatamente de todos os bens pessoais que o possam denunciar como futuro guarda, entre eles os atacadores dos sapatos, algo que previamente lhe tinham explicado ser um objecto interdito aos reclusos. A cena em causa possui uma música frenética, ritmada, que mostra a vontade de Celda 211 ser um filme de acção espanhol que se posiciona como aprendiz de um cinema mainstream norte-americano, ao caso, entre o thriller em ambiente prisional, no subgénero do motim, e a história de amizade entre homens de naturezas distintas, tendo como pano de fundo o tema do “infiltrado”. Juan tem como principal opositor/amigo o líder da revolta, Malamadre, uma espécie de inverso do herói.

Perante isto verifica-se que o êxito de Celda 211 nasce precisamente da pretensão ao uso de um mecanismo Prison Break, inédito na cinematografia espanhola, e o uso de uma linguagem cinematográfica semi-popular. Contudo, ao contrário da “manufactura” extremamente inventiva que um prisioneiro tem de dominar para sobreviver – adoptar objectos comuns a um uso ímpar na luta diária das prisões – o argumento de Mónzón e Jorge Guerricaechevarría, adaptado no romance de Francisco Pérez Gadul, padece precisamente dessa falta de manufactura, que trariam o drama para além da caricatura e com aquele o exponenciamento do investimento emocional do espectador. Dois exemplos. Um. Qual a função prática da personagem de Elena, mulher de Juan? Não é certamente por ela estar grávida que nos apiedamos mais de Juan. Dois. Porque é que os reféns são da ETA? Há alguma influência prática além do “bilhetepostalismo”, como o chamava Robert Bresson, que constitui essa característica? Que não se pense isto como perseguição ao detalhe realista. É antes a prova de um argumento que precisa apuramento.

Ficam-nos de Celda 211 dois aspectos. O primeiro, a presença de Luis Tosar que embarca na sua caricatura com força destemida. Depois, o momento, especialmente irónico, em que os prisioneiros amotinados se vêem na CNN, com um deles a traduzir o inglês. Se aí o filme se cumpre no seu “objectivo internacional”, é também quando, à semelhança do muito citado episódio da série Twilight Zone, Five Characters in Seach of an Exit, que aqueles e nós, nos apercebemos da sua pequenez.

O filme tem estreia agendada no nosso país a 1 de Dezembro.



domingo, 7 de novembro de 2010

Sono

The sleep of reason produces monsters. (Goya)

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A obra de arte que temos cá dentro é que é a nossa pátria

A frase que chamamos ao título é de Fernando Lemos, nome maior do surrealismo português, retratado em Luz Teimosa, documentário integrado este ano na competição nacional do Doclisboa. Para além da ressonância poética da expressão, este parece ser um bom ponto de partida para uma leitura do filme de Luís Alves de Matos. Lemos é um homem de quase 90 anos, a viver em S. Paulo, em quem, quer a arte, quer a vida, ambas verso e reverso da mesma rebeldia “avisada”, deixou marcas. Há um falso apaziguamento nas suas palavras, uma noção de revolta, contida pela sabedoria da idade. Se o artista fala da pertença a uma pátria como uma noção de menor importância subjugada à grande casa que é a sua arte, quem acredita? O preto e branco com que Alves de Matos filma o regresso do artista a Portugal, quase sessenta anos depois da sua fuga ao regime salazarista (em oposto às sequências solares e brincalhonas em S. Paulo), juntamente com a fotografia que Lemos faz desse local deixado para trás onde se definiu artisticamente numa geração surrealista composta de nomes como Fernando de Azevedo e Vespeira, mostram que a questão da pertença é ainda uma ferida que este insiste em fechar.

Nos últimos anos o documentarismo português tem mostrado particular atenção aos seus artistas fundadores de uma ideia de arte forte, significativa, como atestam, só para citar alguns exemplos, filmes como Pintura Habitada de Joana Ascensão, sobre Helena Almeida; Autografia, o olhar de Miguel Gonçalves Mendes sobre Mario Cesariny; ou jotta: a minha maladresse é uma forma de délicatesse, de Salomé Lamas e Francisco Moreira, sobre a artista plástica Ana Jotta. Em todos estes, assim como em Luz Teimosa, há uma preocupação de limpidez cinematográfica que deixa em primeiro plano os artistas retratados a sós com a sua obra e personalidade. As consequências dessa opção fazem pensar os filmes como dependentes da pessoa que retratam. Ora, o fotógrafo, artista plástico, poeta, pintor, Fernando Lemos está, nas suas próprias palavras, num processo de “curar-se por dentro para que a morte não seja velhaca”, para que a morte o encontre de forma digna e não o esqueça.

Essa soturnidade do artista faz de Luz Teimosa um filme complexo na forma como articula essa serenidade última com palavras de rebeldia, pertencentes a um passado em que o surrealismo tinha o dever estético e moral de acrescentar coisas ao real. Nesse sentido, trata-se de uma obra que apanha para si esse princípio, fazendo uso de uma linguagem surpreendente clara, mercê também da experiência do seu realizador (Fernanda Fragateiro – Lugares Perfeito; Ana Hatherly – A Mão Inteligente; João Penalva – Personagem e Intérprete) que coloca todas as ideias de realização no lugar certo. Trata-se de um olhar linear e onde pontuam ideias um tanto ou quanto rigidificadoras do resultado final: a oposição de que falámos preto e branco / cor; o regresso de Lemos a Portugal e encontro com Maria dos Anjos, uma criança, agora senhora, que Lemos fotografou em 1951; os planos estáticos de ambos; ou mesmo as sequências da leitura de poemas ou apresentação das suas fotografias. Dir-se-ia que há uma disciplina de métier sobre o artista que se definiu como “indisciplina em movimento”. Desta forma, veja-se Luz Teimosa como filme dialéctico onde quiçá a luz das portas, das janelas, do ar que entra, seja mesmo o que de mais indomável possui.

O filme passa dia 15 de Outubro, às 19:00, no Grande Auditório da Culturgest, com repetição dia 19, às 20:45, no Pequeno Auditório. A Real Ficção, produtora do filme, tem agendado para o mês de Novembro o lançamento em sala.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Jeunet em modo "make love not war"

Quem tiver seguido o trajecto cinematográfico do francês Jean-Pierre Jeunet sabe que a palavra “contenção” não é propriamente aquela que melhor define o seu talento. Após as suas primeiras curtas-metragens com Marc Caro, Delicatessen marcou o seu cartão de entrada no cinema francês, com uma paisagem cromática que não mais deixou de ambientar o seu conjunto de personagens vagamente clownescas e bizarras. O universo de Jeunet largou o seu lado mais dark e fantasista, que filmes como La Cité des Enfants Perdues e Alien: Ressurection veiculavam, e ganhou com o histerismo “pulp- fictioniano” de Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain (o maior sucesso da história comercial do cinema francês e espécie de carta-branca à sua carreira), um “bien être” do qual não mais se conseguiu desenvencilhar.

Cinco anos após Un long dimanche de fiançailles, Jeunet volta à carga com Micmacs- à Tire-Larigot, (expressão do calão francês que significa loucura sem limites) e desta feita aponta a sua arma, feita de lirismo sem rédea e boas intenções, à indústria do armamento. Bazil (Dany Boon, Bienvenue chez les Ch'tis), após perder o pai devido à explosão de uma mina durante uma operação de desarmamento no deserto de Marrocos, é apanhado por uma bala perdida que se aloja no seu cérebro durante um tiroteio à porta do clube de vídeo onde trabalha. Backstories despachadas numa penada - e basta ver as duas sequências iniciais de Micmac para atestar da desenvoltura de Jeunet nesse assunto – e Bazil quer vingança. O alvo da mesma são dois líderes da indústria de armamento responsáveis pela sua situação e os seus ajudantes na missão são um grupo de vagabundos, espécie de super-heróis sem poderes e sem casa, que usam como armas, lixo reciclado. O método usado pelos heróis é o de colocar os líderes um contra o outro.

Se o filme se coloca num universo de heist movie/ revenge tale (com Yojimbo de Kurosawa na memória) a sua ambição de construir uma metáfora supra nacional, que agrade à comunidade e que veicule ideias de guerra vs. paz, é feita da pior forma possível. A comédia burlesca, de pirotecnia física na representação e excesso rocambolesco de situações, permite que as personagens funcionem como meros arquétipos, figuras abstractas que, com mera consistência cartoonesca querem, mas não conseguem, atingir um problema real. No fundo, há bons e há maus e os bons querem dar uma lição nos maus. O resto são floreadinhos, que dependente da ideia, ficarão mais ou menos tempo na cabeça do espectador.

Numa Paris que ornamenta o charme da pobreza e as lixeiras como em Amélie se mostrava o encantamento do amor nas suas ruas e cafés, Micmacs é um filme de trickery ilusionista à la Méliès, (com imensos objectos de arte/armas, que se opõem às balas), de uma presença do slapstick de Chaplin/Tati (que aqui surge despojado de ideias de maior) que confere uma artyness despropositada a um filme que fundamentalmente falha no seu “corpo”. O último plano de Micmacs é, quer queiramos quer não, precisamente uma interessante auto-citação inconsciente desse mesmo problema no cinema de Jeunet. Umas roupas que dançam por efeito mecânico, sem corpo. É isto, por muito que nos custe admitir, que é hoje o cinema de Jeunet. Um cinema sem corpo. Com roupas bonitas, que dançam ao som da música, mas sem corpo.

O filme Micmacs à Tire-Larigot de Jean-Pierre Jeunet é exibido na sexta-feira, dia 15, no âmbito da 11ª Festa do Cinema Francês, às 22:00 na sala 1 do S. Jorge. A Lusomundo detém os seus direitos para distribuição nacional, não havendo ainda data de estreia prevista em sala.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Yuki & Nina hoje à noite na Festa do Cinema Francês

O dia de hoje da 11ª Festa do Cinema Francês tem como prato forte a sessão de Yuki & Nina, de Nobuhiro Suwa e Hippolyte Girardot, com a presença deste último (às 22:00 na sala 1 do S. Jorge). O filme narra a desagregação de um casal através do olhar da filha, Yuki, e sua melhor amiga Nina. O filme esteve presente no Festival de Berlim, Cannes e San Sebastien. Agora é a vez de podermos vê-lo por cá, sendo que o filme já foi comprado pelas MIDAS Filmes.

Na mesma sala, às 19:30, o surpreendente documentário do ano em França, Benda Bilili!, de Florent de la Tullaye e Renaud Barret sobre um grupo de músicos paraplégicos, que vive nas ruas de Kinshasa no Congo e cria música a partir de instrumentos reciclados. Os realizadores estarão presentes nesta sessão que promete ser das mais alegres e ritmadas do festival.

Destaques do dia ainda para Sans Toit, Ni Loi da homenageada da Festa do ano passado Agnès Varda. O filme, a sexta aparição de Sandrine Bonnaire no grande ecrã, é uma espécie de road movie a pé, no qual Mona (Bonnaire) percorre as estradas de França sem rumo aparente. Trata-se de uma exploração das convenções da sociedade inseridas na busca do ser humano por um caminho (sala 3, 21:30, S. Jorge).

Prossegue hoje a retrospectiva de André Téchiné com o sub programa Carta Branca, onde o autor francês vai exibir algum dos seus filmes favoritos. Hoje às 21:30 na Cinemateca é a vez do Prima Della Rivoluzione, de Bernardo Bertolucci, clássico italiano que dispensa apresentações.

domingo, 10 de outubro de 2010

Amor de Pai

Esta semana apontamos a estreia em Portugal da segunda longa-metragem de Mia Hansen-Løve, Le Père de mes Enfants, vencedora do prémio especial do júri da secção Un Certain Regard, no festival de Cannes do ano transacto. Se em 2007, a esposa de Olivier Assayas e jornalista dos Cahiers, teve o que se diria uma entrada segura com Tout est Pardonné, sobre uma filha que estava a braços com o problema de toxicodependência do seu pai, agora, com 29 anos, prossegue na exploração das suas father figures, desta vez inspirado na vida e morte por suicídio daquele que teria sido o produtor de Tout est Pardonné, Humbert Balsam.

Entrecortado por um certo cinema francês, e sobretudo parisiense, de charme e melancolia urbana, não apenas pelos seus planos de genérico inicial e final, mas também pela sua estrutura narrativa cadenciada, Le Père de mes Enfants oscila entre um retrato do interior da indústria cinematográfica francesa e a dor familiar provocada por uma perda inexplicável.

Grégoire Canvel (Louis-Do de Lencquesaing) é um produtor de sucesso, com já vários filmes no currículo, e que está a braços com uma dívida da sua produtora que ascende a milhões. Entre encontros com credores e funcionários de bancos, o homem que apesar de “ser uma pessoa difícil, gosta de bom cinema”, tenta levar a bom porto a produção de “Saturno”, um filme a ser rodado na Suécia, constantemente adiado devido a problemas financeiros e à personalidade difícil do seu realizador “genial” (a alusão a Von Trier, de quem Humbert produziu Manderlay, é clara).

Nos intervalos familiares, entre chamadas de telemóvel, Grégoire assiste ao teatrinho em que as suas filhas mais novas o parodiam, ou parte de férias com a sua família para Itália num dos seus momentos mais solares do filme. E sem que se estrague esta proposta de perda que é Le Pére de Mes Enfants, diga-se que subitamente Grégoire deixa a sua mulher, Sylvia, viúva, e as suas filhas, órfãs, dando um tiro na cabeça. Essa morte empresta ao cinema de Mia Hansen-Løve uma arquitectura sentimental em desagregação, o trajecto de uma perda, mas sobretudo uma necessidade de reflectir o legado de um homem, enquanto pai e também enquanto produtor. Estas “heranças” conjugadas com a habilidade com que a cineasta demonstra a filmar o universo infantil, mostram aquilo que o filme tem de melhor para oferecer, a sua ausência de hubris, a sua maturidade sentimental.

Embora a crítica em Cannes se tenha provavelmente revisto numa série de procedimentos que implicam a manufactura do cinema, a parte menos conseguida de Le Père de mes Enfants surge precisamente no stress ou burocracia desses momentos, isto porque é “contaminado” por uma tensão silenciosa e quase imperceptível, que conduz à morte do seu protagonista e sobretudo à ideia de que o produtor é melhor pai do que produtor. Dessa forma, é o drama familiar, antes e depois da perda, que foge às reacções inexactas das lágrimas, a grande preocupação de Mia Hansen-Løve. Se é inegável que há na cineasta uma visão do cinema, que pelos olhos de Grégoire, é filtrada pela ideia de pai e mentor artístico, não é menos verdade que essa sua visão, se alarga à perspectiva de uma jovem cineasta a começar uma carreira, aqui com eco na personagem secundária do jovem realizador que, como Mia, experienciou lateralmente a morte do “seu” produtor.

E neste sentido, Le Père de mes Enfants é menos um filme sobre o cinema e mais sobre uma relação parental, sendo que essa homenagem ao “pai” de Mia, se materializa de forma muito própria, pelos seus “filhos”. Até agora são dois, os seus dois filmes.


Ozon e Pialat hoje na Festa

O quarto dia da Festa do Cinema Francês vai ficar marcado pela estreia em Portugal de Le Refuge, de François Ozon (8 Femmes). O filme, que é exibido às 19:30 na sala 1 do S. Jorge, narra a história de Mouse (Isabelle Carré) que sobrevive a uma overdose, embora o namorado (Melvil Poupaud) não tenha tido a mesma sorte. Trata-se de um drama singular sobre a vontade de recuperar e superar ausências, familiares e tóxicas.

Na mesma sala, às 22:00, o thriller de Rachid Bouchareb, Hors La loi, que tem arrastado um lastro de polémica um pouco por onde tem passado, designadamente pela edição de Cannes do ano transacto. Através de 3 irmãos em conflito, Rachid mostra-nos um período quente da história argelina, o massacre de Setif em 1945.

Não esquecer ainda, às 21:30 na sala 3 do S. Jorge A Nos Amours (1983), um dos mais famosos filmes de Maurice Pialat, com Sandrine Bonnaire como protagonista. A jovem actriz, que à data contava apenas 16 anos, encarna Suzanne uma adolescente em busca de liberdade e prazer. A Nos Amours foi nomeado para o Urso de Ouro em Berlim e Bonnaire venceria o César do mesmo ano para melhor actriz revelação.

sábado, 9 de outubro de 2010

Le Père de mes Enfants amanhã na Festa do Cinema Francês

A 11ª Festa do Cinema Francês apresenta amanhã três dos seus nomeados a prémio do público. Este, como diz o nome, será atribuído pelos espectadores, consistindo em 2500 euros atribuídos à produção vencedora. O primeiro filme a ser apresentado, que já passou na sessão de abertura, é Le Concert de Radu Mihaileanu (Sala 1 do S. Jorge às 17:00).

Às 19:30, na mesma sala, é a vez de Le Père de Mes Enfants, de Mia Hansen-Love, vencedor do prémio especial do júri da secção Un Certain Regard no festival de Cannes do ano transacto. Trata-se de um drama que se baseia na história verídica do produtor de cinema francês Humbert Balsan que se suicidou aos 51 anos, devido a problemas de depressão. A sessão contará com a presença do seu actor principal, Louis-Do de Lencquesaing. O último dos filmes nomeados para o prémio do público a ser mostrado amanhã será L’Arnacouer, de Pascal Chaumeil, que estará também presente na sessão. Trata-se de uma divertida comédia romântica com Romain Duris e Vanessa Paradis sobre um negócio para acabar relações amorosas (sala 1, 22:00).


Lembramos que a homenagem a Sandrine Bonnaire prossegue na sala 3 do S. Jorge, amanhã às 21:30, com a exibição do seu único filme como realizadora, Elle S’Appele Sabine, fantástico documentário que a actriz fez sobre Sabine Bonnaire, sua irmã autista.


quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Sandrine Bonnaire abre hoje à noite a Festa do Cinema Francês

A 11º edição da Festa de Cinema Francês, com um dos melhores cartazes de sempre, arranca já hoje à noite no S. Jorge às 21:00 (sala 1) com a apresentação do filme Le Concert, do realizador romeno Radu Mihaileanu. Na sessão inaugural estarão presentes a actriz francesa Sandrine Bonnaire, madrinha do evento, e o actor principal do filme Alexeï Guskov.

Le Concert, vencedor do Prémio César do Cinema Francês para melhor música e melhor som, narra a história de Andreï Filipov, maestro da célebre Orquestra Bolshoi durante o período de Brejnev. O filme repete depois no dia 9, às 17:00 na mesma sala 1 do S. Jorge.

No dia de amanhã os foques de interesse são muitos. Às 19:30, sala 1 do S. Jorge, Sandrine Bonnaire irá apadrinhar o início da secção “Uma madrinha excepcional, uma secção especial”, onde será exibido Joueuse, de Caroline Bottaro, que também estará presente. Logo a seguir, às 22:00, na mesma sala 1, Jane Birkin estará presente na sessão de 36 Vue Du Pic Saint Loup, o novo filme de Jacques Rivette. Na Cinemateca Portuguesa, às 21:30, o realizador actor Pierre Etaix irá inaugurar um ciclo sobre a sua obra. Os filmes a serem exibidos são Le Soupirant (1963) e En Pleine Forme (2010).

Destaque ainda para a primeira apresentação dos dois programas sobre as melhores curtas do prestigiado festival Clermont-Ferrand na sua edição transacta. Às 21:00 e 23:00 na sala 3 do. S. Jorge

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Ainda o MOTELx - as decepções

Triangle - Christopher Smith (UK/Australia, 2009)

Christopher Smith (Creep; Severance) é um entertainer. Esteve em Portugal para apresentar o seu mais recente filme Triangle e, por entre explicações, disse que adorava Portugal exceptuando Cristiano Ronaldo e que havia mesmo uma cena no filme inspirada num caso amoroso que teve há uns anos no nosso país aquando da sua presença no Fantasporto. Essa necessidade de cativar está presente nesta história de um grupo de amigos que vai fazer uma viagem de iate e após uma tempestade e naufrágio se vêm encurralados num misterioso cruzeiro. Se o set up peca por alguma originalidade, o cerne do filme, a sua narrativa circular e em loop, é justificada por uma colecção de elementos mais ou menos batidos que envolvem a dimensão espácio-temporal do triângulo das bermudas e o mito de Sísifo. A caracterização das personagens é bastante esquemática, as surpresas do plot um quanto previsíveis e quando Triangle se aproxima do fim, Smith lança mão de uma dimensão enternecedora que liga a protagonista Jess (Melissa Groove) ao seu filho e a um plano insistente de um gaivota. Provavelmente será lançado em Portugal, correspondendo a uma dimensão mais inóqua e mainstream do terror contemporâneo. Kill it again, Sam.








Corridor - Johan Lundberg e Johan Storm (Suécia, 2009)

Corridor é um filme que disfarça bem, até certo ponto, a sua simplicidade. Um solitário estudante de medicina vê-se, em vésperas de exames, envolvido com a sua vizinha de cima e respectivo namorado violento. Ambientado sobretudo no condómino de apartamentos onde vivem estas personagens, o filme de Johan Lundberg e Johan Storm vale pela construção de um universo claustrofóbico ambientado entre paredes opressivas e doses maciças de café e também pela paranóia de um estudante de medicina que não consegue fazer a ponte entre o que vai no seu interior e os corpos que o rodeiam (e que em última análise constituirão a sua profissão). No fundo, o dilema de Frank é mesmo esse, quando reivindica uma nota mais alta num exame ao professor dizendo-lhe que respondeu numa das perguntas com todos os sintomas que estavam no livro, este responde-lhe que se tratava de uma pergunta de desenvolvimento, que ele tinha de desenvolver. Levemente a fazer lembrar Rear Window, Corridor possui momentos de humor negro que envolvem tareia à terceira idade e vasculhar no caixote do lixo às tantas da manhã.








Survival of the Dead - George Romero (EUA, 2009)

George Romero cavou para si, sem saber, um nicho de filmes e uma temática própria que o colocam como cineasta autor do género zombie. Todos os filmes até hoje, este Survival of the Dead é o sexto, concebem uma metáfora da sociedade que coloca o zombie, o morto-vivo, como ameaça, mas também como fonte de discriminação. Zombie is the new black, por assim dizer. Paralelamente ao lado sério, o lado cómico implica formas hilariantes dos humanos se livrarem destes zombies, conferindo à metáfora uma dimensão gore. Neste último filme, a premissa é homenagear o western clássico, com filmes de Wyler e Hawks na cabeça, além da banda desenhada de Chuck Jones. Romero expande a história de uma personagem secundária de Diary of the Dead (2007), um soldado que, na luta pela sobrevivência, parte para uma ilha perto de Delaware. Nessa ilha, onde duas famílias poderosas irlandesas dominam os zombies, conseguiu-se criar uma situação estável. Contudo, quando humanos começam a morrer, a família O’Flynn quer destruir todos os zombies, enquanto os Muldoons acreditam que os zombies devem ser mantidos vivos para encontrar uma cura. A decepção deste Survival consiste no facto de a historieta que envolve estes clãs inimigos ser tratada com ligeireza em detrimento de alguns clichets do género e da necessidade de colocar zombies a trabalhar no campo, sejam eles cortadores de lenha, carteiros ou mulheres que estendem a roupa ao ar livre.


terça-feira, 5 de outubro de 2010

Ainda o MOTELx - as surpresas

The Loved Ones – Sean Byrne (Australia, 2009)

Não é frequente para um filme de “torture porn” conseguir entreter, conseguir ter outros focos de atenção para além das formas sádicas de infligir dor. Não é ainda frequente que uma premissa original como a de The Loved Ones, de Sean Byrne - uma jovem que, perante a recusa de um colega de liceu de a acompanhar ao baile de finalistas, resolve pedir ao pai que o rapte para que possam fazer um baile privado – não seja refém de um complexo de preguiça que implique isolar esta ideia original, “mostrá-la”, e não a trabalhar devidamente. Ao invés, Sean Byrne é hábil o suficiente para fazer a transição entre uma comédia dramática sobre experiências adolescentes, para uma clínica de experimentação tão kitch quanto sádica, tão estúpida quanto perversa, sobre o desejo sexual feminino reprimido, numa resposta interessante ao uso do corpo da mulher como objecto de prazer. A art direction de Robert Webb (Wolf Creek; Rogue), a representação silenciosa de Xavier Samuel e a fotografia de Simon Chapman fazem o resto.







Red, White & Blue – Simon Rumley (EUA, 2009)

O último plano deste Red White & Blue é de uma fotografia a arder numa fogueira. Momento que espelha com simplicidade o imaginário algo retro desta história de vingança, de uma honestidade assinalável e uma dupla de actores notável, Amanda Fuller e Noah Taylor. Erica é uma jovem que vive num quarto à custa de fazer a limpeza para a dona da casa. À noite percorre os bares locais em busca de parceiros sexuais ocasionais, sem que se deixe apanhar em algo mais do que sexo. Nate, um ex-veterano da guerra do Iraque, aspecto decadente e sinistro, começa a interessar-se por ela mas esta prefere manter apenas uma relação de amizade. Aqui, reside o núcleo do filme, na exposição rendilhada das suas personagens, nas decisões erradas na vida de cada um, na falta de esperança dia após dia. O olhar de Rumley é estrangeiro e sombrio e não se poupa a slow motions fora de moda, ou montagens desusadas, para construir o lado cinzento que quer explorar. Quando um ex-amante de Amanda irrompe na vida dela, há uma tragédia iminente, que cai com um peso brutal ou Red White & Blue não fosse pura e somente um drama. A violência do filme de Rumley é um grito que está contido há muitos anos, uma raiva que personagens como Carrie ou Rambo nos mostraram. Converte-se o drama no terror realista e converte-se Red White & Blue naquilo que menos se esperava de um filme de terror independente, rodado com poucos meios em Austin, Texas. Um filme largo de vistas que assume uma postura reflexiva sobre as escolhas na vida.







The Revenant – D. Kerry Prior (EUA, 2009)

Este filme foi apresentado com a seguinte premissa: o que fariam se o vosso melhor amigo começasse a apodrecer? The Revenent é uma comédia de terror, extremamente bem escrita, com admirável sentido de gag, sobre o valor da amizade. Bart morre na guerra e o seu melhor amigo Joey, a namorada Janet e a amiga desta, Wicca, assistem ao funeral. Depois de uma noite de paixão “enlutada” entre Janet e Joey, Bart sai do caixão e bate à porta do melhor amigo. Com ecos em filmes como Shaun of the Dead, Undead ou Zombieland, o mais curioso é que The Revenant rapidamente se quer qualificar não como um filme de vampiros ou zombies, mas sim como um buddie movie onde o protagonista apesar de se ver na condição de ter de beber sangue para não apodrecer, continua a ser o mesmo, a mesma boa pessoa. Uma vez resolvido o problema da subsistência, com a morte de assaltantes e outros dejectos da sociedade (lembrem-se de The Little Shop of Horrors, de Roger Corman), a história foca-se sobretudo no lado bom de Bart e, sem revelar muito mais, os amigos passam a ser uma espécie de super-heróis, já então no domínio do universo BD. Mas se Prior consegue ser hilariante no gozo aos estereótipos raciais na América, nos tiques do terror convencional (há uma cena impagável de diálogo com uma cabeça cortada), e se consegue ainda dar com dignidade o lado mais sério de The Revenent, vê-se depois refém narrativo de um dilema típico da banda desenhada. Como resolver, e pior, explicar o dilema da imortalidade das suas personagens. Prior quebra o feitiço do que de mais charmoso há no filme, a dimensão ilógica dos seus acontecimentos, e descobre que a solução é… a convenção. Mas aí já nos fez perder a atenção.


segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Vem aí o cinema francês

A Festa do Cinema Francês, na sua 11º edição, arranca já esta quinta feira, dia 7, em Lisboa, prolongando-se até 16 de Outubro. Depois a Festa continua viajando para Almada, Porto, Guimarães, Faro e Coimbra. Este ano, o certame, apadrinhado pela actriz francesa Sandrine Bonnaire apresenta em antestreia uma vintena de longas-metragens das quais merecem destaque o novo filme de Jacques Rivette, 36 Vues Du Pic Saint-loup, o novo Ozon, Le Refuge, o novo Jeunet, Micmacs à Tire-Larigot, o grande prémio do júri de Cannes deste ano, Des hommes et des dieux de Xavier Beauvois, e o vencedor sensação de Un Certain Regard do mesmo festival, Le père de mes enfants de Mia Hansen-Love. A merecer um olhar especial ainda a tresloucada comédia road movie com Gérard Depardieu Mammuth, Yuki & Nina de Nobuhiro Suwa e Hippolyte Girardot e a biopic Gainsbourg (Vie héroïque), de Joann Sfar sobre o popular cantor francês.

A Festa do Cinema Francês que no ano passado teve mais de 30 mil visitantes, contará ainda com a presença de André Techiné, um dos nomes mais reconhecidos do cinema francês, para acompanhar um ciclo integral sobre a sua obra na Cinemateca Portuguesa. Nesta haverá ainda espaço para uma outra retrospectiva integral, a de Pierre Étaix, realizador e actor, nome pouco conhecido do cinema francês com ligações fortes ao universo de Jacques Tati e Buster Keaton.

Podem consultar o resto da programação aqui.