Quem tiver seguido o trajecto cinematográfico do francês Jean-Pierre Jeunet sabe que a palavra “contenção” não é propriamente aquela que melhor define o seu talento. Após as suas primeiras curtas-metragens com Marc Caro, Delicatessen marcou o seu cartão de entrada no cinema francês, com uma paisagem cromática que não mais deixou de ambientar o seu conjunto de personagens vagamente clownescas e bizarras. O universo de Jeunet largou o seu lado mais dark e fantasista, que filmes como La Cité des Enfants Perdues e Alien: Ressurection veiculavam, e ganhou com o histerismo “pulp- fictioniano” de Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain (o maior sucesso da história comercial do cinema francês e espécie de carta-branca à sua carreira), um “bien être” do qual não mais se conseguiu desenvencilhar.
Cinco anos após Un long dimanche de fiançailles, Jeunet volta à carga com Micmacs- à Tire-Larigot, (expressão do calão francês que significa loucura sem limites) e desta feita aponta a sua arma, feita de lirismo sem rédea e boas intenções, à indústria do armamento. Bazil (Dany Boon, Bienvenue chez les Ch'tis), após perder o pai devido à explosão de uma mina durante uma operação de desarmamento no deserto de Marrocos, é apanhado por uma bala perdida que se aloja no seu cérebro durante um tiroteio à porta do clube de vídeo onde trabalha. Backstories despachadas numa penada - e basta ver as duas sequências iniciais de Micmac para atestar da desenvoltura de Jeunet nesse assunto – e Bazil quer vingança. O alvo da mesma são dois líderes da indústria de armamento responsáveis pela sua situação e os seus ajudantes na missão são um grupo de vagabundos, espécie de super-heróis sem poderes e sem casa, que usam como armas, lixo reciclado. O método usado pelos heróis é o de colocar os líderes um contra o outro.
Se o filme se coloca num universo de heist movie/ revenge tale (com Yojimbo de Kurosawa na memória) a sua ambição de construir uma metáfora supra nacional, que agrade à comunidade e que veicule ideias de guerra vs. paz, é feita da pior forma possível. A comédia burlesca, de pirotecnia física na representação e excesso rocambolesco de situações, permite que as personagens funcionem como meros arquétipos, figuras abstractas que, com mera consistência cartoonesca querem, mas não conseguem, atingir um problema real. No fundo, há bons e há maus e os bons querem dar uma lição nos maus. O resto são floreadinhos, que dependente da ideia, ficarão mais ou menos tempo na cabeça do espectador.
Numa Paris que ornamenta o charme da pobreza e as lixeiras como em Amélie se mostrava o encantamento do amor nas suas ruas e cafés, Micmacs é um filme de trickery ilusionista à la Méliès, (com imensos objectos de arte/armas, que se opõem às balas), de uma presença do slapstick de Chaplin/Tati (que aqui surge despojado de ideias de maior) que confere uma artyness despropositada a um filme que fundamentalmente falha no seu “corpo”. O último plano de Micmacs é, quer queiramos quer não, precisamente uma interessante auto-citação inconsciente desse mesmo problema no cinema de Jeunet. Umas roupas que dançam por efeito mecânico, sem corpo. É isto, por muito que nos custe admitir, que é hoje o cinema de Jeunet. Um cinema sem corpo. Com roupas bonitas, que dançam ao som da música, mas sem corpo.
O filme Micmacs à Tire-Larigot de Jean-Pierre Jeunet é exibido na sexta-feira, dia 15, no âmbito da 11ª Festa do Cinema Francês, às 22:00 na sala 1 do S. Jorge. A Lusomundo detém os seus direitos para distribuição nacional, não havendo ainda data de estreia prevista em sala.
Já o tenho p'ra'qui p'ra ver mas ainda não "calhou".
ResponderEliminar"É isto, por muito que nos custe admitir, que é hoje o cinema de Jeunet. Um cinema sem corpo. Com roupas bonitas, que dançam ao som da música, mas sem corpo."
ResponderEliminarO homem faz um filme menor e já faz cinema sem corpo?... eu ainda não vi este filme, com tanta porcaria que anda para aí já podia ter estreado cá, já que já estreou em todo o lado... a lusomundo prova mais uma vez que anda a dormi-las: quando estrear já toda a gente sacou da net... quanto ao filme, seria muito dificil que Jeunet mantivesse o nível dos seu últimos filmes, teria que ser um super-realizador para isso... prefiro encarar este (se for assim tão menor) como mais um "alien" na sua carreira..
Gambozino, os últimos filmes de Jeunet são bastante inferiores ao Delicatessen e ao La cité des enfants perdus. Eu ainda não vi este, mas se este for como o Alien: Resurrection então nem chega a ser filme menor, fica-se mesmo pela mediocridade.
ResponderEliminarPois, é um filme diferente de Alien mas ainda assim é uma fórmula já gasta. É a reprodução ad nauseum do efeito Amélie.
ResponderEliminarÉ, de facto, um filme leve mas imediatamente reconhecível como sendo de Jeunet.
ResponderEliminarJá agora — não encontrei referência no artigo —, opinião sobre Un Long Dimanche de Fiançailles?
Cumps cinéfilos.
Pois é passou-me esse mas a verdade é que também não o acho nada de especial. Ainda assim bastante melhor que este último.
ResponderEliminarAbraço.
Eu adorei-o... :)
ResponderEliminarNão posso deixar de o referir: patenteias um excelente trabalho neste blog.
Os meus sinceros parabéns e 'keep up the good work'!
Abraço.
Obrigado!
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