domingo, 29 de novembro de 2020




 Num fim-de-semana em que uma vez mais nos vemos confinados, vem-me à lembrança aquela cena que deveio lugar comum no cinema clássico. Antes de um momento de perigo, a esposa/namorada/amante/amiga diz ao seu parceiro que quer ir com ele. Ao que este responde: "No, you stay here". E ele vai e ela fica. E em muitas ocasiões fecha-lhe mesmo a porta da casa à chave para que não possa vir com ele. Sob uma pretensa ideia de protecção, o cinema mostrou como as mulheres sabem, infelizmente, demasiado sobre confinamentos compulsivos e como o machismo é, ele próprio, um confinamento mental.


terça-feira, 17 de novembro de 2020

Autobiografia Charles Darwin

 


Darwin escreve sobre a sua própria vida. Não é surpreendente que o livro seja pouco apelativo. O próprio refere que pouco haveria para contar sobre ela, a não ser o seu trabalho científico, os seus livros. E que isso o ajudou a escudar-se das suas doenças. Além disso há essa mente bastante organizada, metódica, que tendo a lucidez de perceber que a falta de música e de poesia no seu quotidiano, o empobreceu emocionalmente, lhe fez perder algo da felicidade. Darwin exprime-se de forma clara e seca, pouco poética, objectiva. Mas é ao mesmo tempo um ser excepcional, à frente do seu tempo, equivalendo o inculcar na mente das crianças da crença na existência de um Deus ao medo instintivo que os macacos têm de cobras; mas também falando de si com humildade, destacando apenas a sua capacidade de observação e curiosidade; escrevendo ainda que a obtenção do amor dos que nos rodeiam é a maior felicidade que se pode ter na terra. E dizia-se, diante do elogio ou da crítica: “o meu maior conforto foi dizer centenas de vezes para comigo que trabalhei o mais e melhor do que pude, e ninguém pode fazer mais do que isto.”.

Pastoralia



Rogério Casanova diz no prefácio à colectânea de contos "Pastoralia" que o mundo de George Saunders é aquele em que "alguém é convidado a desempenhar um papel cuja única utilidade é evitar que outra pessoa desempenhe um papel cuja única utilidade é reagir ao papel inútil previamente desempenhado, etc., etc.," Este mise-en-abyme espelha bem esta espécie de canibalização distópica em que já não sabemos bem qual o espaço do altruísmo, mas também o do canalhice. O homem com peso na consciência é já um artefacto das cavernas. Ou nem tanto, pois Saunders carrega a sua escrita de um humor negro, de uma observação implacável da superficialidade, da decadência do quotidiano pelo marketing e pelo televisivo, mas, no final de contas, há uma resta de humanidade que sobra das personagens. Uma possibilidade de amor, um continuar a ajudar quem nos caga nas papas de aveia, uma hipótese de futuro além de mostrar a pila num buraco suburbano. E, ao contrário, o pensamento pode conter caminhos autónomos e ferozes que nos apartam da realidade. Como leitor senti-me sempre entre o sórdido e o puro, entre o riso irónico e a empatia que apenas temos para com as personagens que amamos. Aquelas que aceitam toda a merda com um sorriso nos lábios. Que antes de se desfazerem, procuram indicar a saída aos que cá ficam.