sábado, 19 de novembro de 2011

O que é que vale a pena?


Não espanta que o ministro Miguel Relvas tenha estabelecido um grupo de trabalho (GT) para a definição do serviço público de comunicação social, no âmbito da «missão» do Governo de limpar o país da «salganhada socialista» e aplainar mais um terreno para uma política liberalista, contida, e de correção dos mal-comportados. Nesta área quer-se aparentar esta iniciativa a um murro na mesa num já longo folhetim que envolve a RTP e o seu buraco financeiro. Contudo, aquilo de que o executivo não se apercebe é que este suposto acto final de uma verdadeira comédia lusitana não é fim coisa nenhuma, mas sim mais um episódio que ameaça perpetuar uma discussão para português ouvir, enquanto as decisões giram naturalmente à direita ou à esquerda consoante as eleições. Além disso, basta ler as principais conlusões deste GT para perceber que esta é apenas uma forma, nem sequer muito original diga-se, de besuntar de fundamento pseudo-científico uma decisão política que mesmo antes das eleições já parecia ser um facto: extinguir um canal do serviço público e readaptar a sua lógica ao contexto económico sobejamente conhecido. No entanto, para não se ver o óbvio - que esta é manobra burocrática consumidora de tempo e recursos - elaborou-se a ideia de que os membros deste GT trabalhariam pro bono. Embora se tenha visto e com alguma razão que para tapar uma ponta se levantou outra: trabalhar sem receber fica sempre bem, mas implica uma afirmação da desvalorização do trabalho.

Este jogo de atenções, da ciência a cobrir os rastos da política, não espanta assim tanto. O que surpreende é que ainda haja pessoas que comentam as conclusões do GT como algo relevante e sério para decidir o futuro do serviço público nacional, e mais, que adoptem o seguinte raciocínio. São 300 milhões por ano, é muito dinheiro e talvez não valha a pena (dado o passado histórico ruinoso da RTP e a sua manifesta falta de qualidade) prosseguir em tentantivas de recuperar o conceito de serviço público adaptado a uma televisão nacional (Vasco Pulido Valente- Público 19/11/11) . Ou que se tente colocar as coisas em regime de tragédia shaskespereana: é isto ou é o «cerelac para as crianças» e por tanto larguemos a RTP de uma vez porque não temos condições para tal (João Miguel Tavares- Governo Sombra - TSF 18/11/11). Em surdina, ouvimos o longínquo balbuciar do argumento da inutilidade da cultura, subsídio-depente, habitada por inúteis incompreensíveis, com incomodativo poder de agitação mediática.

Mas separemos as águas. A RTP não tem qualidade de serviço público (não, não é um conceito assim tão nebuloso quanto alguns dos seus detractores querem fazer querer) e contém um gigantesco buraco financeiro. Isto é incontornável. Agora, esse buraco é um buraco feito pelas pessoas que o geriram ao longo dos anos em lógica corporativista, aproveitando-se do saco sem fundo que algumas pessoas colaram indevidamente ao conceito «serviço público» para se safar. Esta lógica não permite esburacar, devido à incompetência das pessoas, o próprio conceito. Porque essa lógica, por maioria de razão, teria de ser aplicada a muitas outras áreas inclusivé à da manutenção do Estado. Se o Estado gera buracos financeiros, talvez não valha a pena ele existir. Se nenhum aluno tira positiva nos testes da escola, talvez não valha a pena termos avaliações, e por aí fora. Este é um argumento absurdo porque não só nos desresponsabiliza de detectarmos e eliminarmos os erros cometidos (a gestão da RTP não é o conceito serviço público) como mancha a visão que temos do mundo e seus princípios, de respostas fáceis, que apenas têm uma obsessão: a) corrigir a matemática, para b) acalmar as águas das políticas, para  c) que no futuro se continue a ter fundos para gerir organizações sem sentido público, para gerir futuros buracos. Ora a possibilidade da gestão de futuros buracos é o telos no horizonte da política nacional neste momento. E com isso não podemos conviver. 

De toda esta situação, o conceito de serviço público está arredado. Este só se preocupa com o seguinte: assim como o dinheiro dos impostos dos contribuintes serve para manter a saúde, a justiça dos seus, também deve assegurar um nível de educação e cultura. Nem iremos pelo atalho do dito popular que «a educação e cultura não têm preço». Agora o que não há é um correspondente directo entre o nível de cultura e educação e o dinheiro despendido com um canal de televisão. Essa fuga à lógica economicista enerva muita gente. Aliás, foi a a necessidade de entrar nesse esquema economicista que levou a RTP a entrar nos circuitos de mercado que pagam a peso de ouro programas ignóbeis que traem o espírito do verdadeiro serviço público.

Desta forma, corre-se o risco de ter vista curta, de se assistir à desfiguração dos valores para propósitos político-económicos. É desse «déficit», o «déficit de valores», que, ao contrário de outros, nos parece impossível recuperar.  

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