Não espanta que o
ministro Miguel Relvas tenha estabelecido um grupo de trabalho (GT) para a
definição do serviço público de comunicação social, no âmbito da «missão» do
Governo de limpar o país da «salganhada socialista» e aplainar mais um
terreno para uma política liberalista, contida, e de correção dos
mal-comportados. Nesta área quer-se aparentar esta iniciativa a um murro na
mesa num já longo folhetim que envolve a RTP e o seu buraco financeiro.
Contudo, aquilo de que o executivo não se apercebe é que este suposto acto final de uma
verdadeira comédia lusitana não é fim coisa nenhuma, mas sim mais um episódio
que ameaça perpetuar uma discussão para português ouvir, enquanto as decisões
giram naturalmente à direita ou à esquerda consoante as eleições. Além disso,
basta ler as principais conlusões deste GT para perceber que esta é apenas uma
forma, nem sequer muito original diga-se, de besuntar de fundamento pseudo-científico
uma decisão política que mesmo antes das eleições já parecia ser um facto:
extinguir um canal do serviço público e readaptar a sua lógica ao contexto
económico sobejamente conhecido. No entanto, para não se ver o óbvio - que esta
é manobra burocrática consumidora de tempo e recursos - elaborou-se a ideia de
que os membros deste GT trabalhariam pro bono. Embora se tenha visto e
com alguma razão que para tapar uma ponta se levantou outra: trabalhar sem receber fica sempre bem, mas implica uma afirmação da
desvalorização do trabalho.
Este jogo de atenções, da
ciência a cobrir os rastos da política, não espanta assim tanto. O que
surpreende é que ainda haja pessoas que comentam as conclusões do GT como algo
relevante e sério para decidir o futuro do serviço público nacional, e mais,
que adoptem o seguinte raciocínio. São 300 milhões por ano, é muito dinheiro e
talvez não valha a pena (dado o passado histórico ruinoso da RTP e a sua
manifesta falta de qualidade) prosseguir em tentantivas de recuperar o conceito
de serviço público adaptado a uma televisão nacional (Vasco Pulido Valente-
Público 19/11/11) . Ou que se tente colocar as coisas em regime de tragédia
shaskespereana: é isto ou é o «cerelac para as crianças» e por tanto larguemos
a RTP de uma vez porque não temos condições para tal (João Miguel Tavares- Governo
Sombra - TSF 18/11/11). Em surdina, ouvimos o longínquo balbuciar do
argumento da inutilidade da cultura, subsídio-depente, habitada por inúteis
incompreensíveis, com incomodativo poder de agitação mediática.
Mas separemos as águas. A
RTP não tem qualidade de serviço público (não, não é um conceito assim tão
nebuloso quanto alguns dos seus detractores querem fazer querer) e contém um
gigantesco buraco financeiro. Isto é incontornável. Agora, esse buraco é um
buraco feito pelas pessoas que o geriram ao longo dos anos em lógica corporativista,
aproveitando-se do saco sem fundo que algumas pessoas colaram indevidamente ao
conceito «serviço público» para se safar. Esta lógica não permite esburacar,
devido à incompetência das pessoas, o próprio conceito. Porque essa lógica, por
maioria de razão, teria de ser aplicada a muitas outras áreas inclusivé à da
manutenção do Estado. Se o Estado gera buracos financeiros, talvez não valha a
pena ele existir. Se nenhum aluno tira positiva nos testes da escola, talvez não
valha a pena termos avaliações, e por aí fora. Este é um argumento absurdo
porque não só nos desresponsabiliza de detectarmos e eliminarmos os erros
cometidos (a gestão da RTP não é o conceito serviço público) como mancha a
visão que temos do mundo e seus princípios, de respostas fáceis, que apenas têm
uma obsessão: a) corrigir a
matemática, para b) acalmar as águas
das políticas, para c) que no futuro
se continue a ter fundos para gerir organizações sem sentido público, para
gerir futuros buracos. Ora a possibilidade da gestão de futuros buracos é o telos no horizonte da política nacional neste momento. E com isso não
podemos conviver.
De toda esta situação, o conceito de serviço público está
arredado. Este só se preocupa com o seguinte: assim como o dinheiro dos
impostos dos contribuintes serve para manter a saúde, a justiça dos seus, também
deve assegurar um nível de educação e cultura. Nem iremos pelo atalho do dito
popular que «a educação e cultura não têm preço». Agora o que não há é um
correspondente directo entre o nível de cultura e educação e o dinheiro
despendido com um canal de televisão. Essa fuga à lógica economicista enerva
muita gente. Aliás, foi a a necessidade de entrar nesse esquema economicista
que levou a RTP a entrar nos circuitos de mercado que pagam a peso de ouro
programas ignóbeis que traem o espírito do verdadeiro serviço público.
Desta forma, corre-se o
risco de ter vista curta, de se assistir à desfiguração dos valores para
propósitos político-económicos. É desse «déficit», o «déficit de valores», que,
ao contrário de outros, nos parece impossível recuperar.
Sem comentários:
Enviar um comentário