sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Manto da literatura

Uma das recordações mais nítidas que tenho da minha infância envolve mantas pesadas e escuridão. Era de noite e toda a gente devia dormir. Haveria algo importante no dia seguinte? Pouco importa. Tinham-me mandado apagar a luz e eu estava a meio de um livro, não me recordo qual, provavelmente um daqueles infanto-juvenis de aventuras policiais, mistérios de trazer por casa. Pouco importa também. De que me lembro é do prazer, praticamente pré-sexual, de infringir a regra e de, depois de tudo às escuras, ligar uma pequenina luz, espécie de mini lanterna, e continuar a ler até que o sono, o cansaço, me apagassem definitivamente. Sentia que estava numa espécie de casulo, a sós com a fonte do meu prazer, satisfazendo a minha curiosidade de seguir aquela aventura, e de o fazer na escuridão, sem distracção, sem nada que me proibisse ou desviasse. Como se alguém me entregasse, a mim e só a mim, um segredo. 

Desde essas noites de frenesim pela leitura proibida devem ter passado trinta anos. Ou quase. Contudo, creio que desde aí nada se alterou substancialmente na forma como me relaciono com os livros. Continuam a ser o meu espaço debaixo das mantas, o meu esconderijo, no qual me sussurram  - ao abrigo da tagarelice dos dias e das frases de verniz e de circunstância do quotidiano  - coisas acerca do segredo da vida. A literatura, pelo menos para mim, é, sempre foi, esse manto. Esse espaço meio escondido - da biblioteca, da solidão, do silêncio - onde dou por mim a chorar o mais alto, a rir o mais elevado, a conversar com os reverentes, os mendigos, os animais, as plantas, as ruas, o meu pai, a minha mãe, todos nesse espaço abrigados, convocados, sem tempo ou espaço pré-destinados. Uma reunião de grinaldas, de pedras, mafarricos, duendes e paixões. A literatura é, pelo menos para mim, uma toca de coelho, um para lá do espelho, um espaço secreto, um esconderijo onde se vai discutir o eu, a multidão, o todo e o único. Uma senha secreta para aquele engodo, aquela ficção que nos penetra, a que chamamos real. Quando a claridade se suspende, quando as paredes da biblioteca apertam, a dança na escuridão, a conversa muda começa...

3 comentários:

  1. isto, tão belo, que partilhaste, também eu poderia partilhar (e sei que muitos mais, de idêntica memória :)

    talqualmente (e, sim, isto diz-se :))

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  2. Reconheço em mim esse mesmo amor aos livros mas hoje com uma diferença para pior, já não consigo suspender o tempo das outras coisas para deixar com que esse tempo ganhe, ou seja, é um amor que sai muitas vezes a perder. Espero que, zangado, não me abandone.
    ~CC~

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  3. Pois eu agora nos últimos tempos procurei suspender o tempo para voltar a deixar entrar a literatura. Mas é um esforço sim, numa sociedade que nos põe a mão no ombro, minuto a minuto.

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