sábado, 15 de outubro de 2016

Fuocoammare (2016) de Gianfranco Rosi

Leio por aí que o novo documentário do italiano Gianfranco Rosi, embora seja sobre a ilha de Lampedusa (local de entrada na Europa de milhares de emigrantes clandestinos vindos do Norte de África e Médio Oriente), embora tenha sensibilizado a presidente do júri do Festival de Berlim, Meryl Streep, que lhe deu o Urso de Ouro pelo seu tema “urgente”, e que embora tenha convencido o primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, a levar 27 cópias do filme para os membros do Conselho Europeu, que, apesar de tudo isto não seria um filme que tomasse partido. Diga-se já que creio que nenhum espectador ao de cimo da terra duvidará do “partido” (no sentido político do termo) do realizador depois de ver Fuocoammare (Fogo na Água, 2016). E isso não é necessariamente mau.

É certo que Rosi, depois de ter vencido Veneza com o seu documentário anterior (sobre a Grande Raccordo Anulare, a estrada que circunda Roma) talvez tenha aprendido e extirpado um pouco o excesso humanista de Sacro Gra (2013) que procurava ver na observação mosaico dos habitantes dos arredores da capital um símbolo da decadência italiana. Mas este extirpar significa apenas que não há comentários em voz off e que na maioria dos casos o realizador se limita a filmar paralelamente, e com planos longos, dois universos que quase não se tocam. Temos então de um lado, a chegada e inspecção dos emigrantes em barcos sobre-lotados após dura luta pela sobrevivência, e do outro, o quotidiano de uma família de Lampedusa onde sobressai o jovem Samuele que ora vai com o tio pescador ao mar, ora cresce entre fisgas, destruição de cactos à faca (no filme anterior, Rosi filmava um cirurgião de árvores “para compensar”), e uma vida de ligeiros percalços.
Talvez a história da família surja assim como um contraponto, um filme activista que procura disfarçar o seu activismo. Ou então lançar o espectador na tarefa de traçar semelhanças entre os dois mundos. O da família de pescadores, que deseja ir para o mar, e os refugiados que “sabem que o mar não é uma estrada” (como canta, de improviso, um dos sobreviventes num dos momentos mais intensos do filme) e por isso dele querem escapar. Ou entre o olho preguiçoso de Samuele (o médico tapa-lhe o olho bom, para fazer o outro ver melhor) e o olho magoado de um dos refugiados, que, num daqueles planos arrasadores que destrói tudo em redor, chora uma lágrima de sangue.
O olho que pouco vê (o de Samuele, mas também o olhar ocidental que Rosi quer fazer vermelhor) não consegue enxergar o olho que chora. Uma lágrima salgada misturada com o sangue da sobrevivência, tal como o fogo invadiu o mar nessa velha canção siciliana que dá título ao filme e que um dos animadores da rádio local passa. Esta narra um episódio de bombardeamento de um barco italiano durante a segunda guerra mundial. Agora o fogo permanece no mar com esses corpos exaustos, desidratados, uns vivos outros mortos, que chegam aos montes e que ou são protegidos do frio em cobertores prateados ou, já mortos, são ensacados.
Refira-se ainda um outro plano, já perto do final em que Rosi filma o convés de um barco de refugiados, cheio de lixo, cobertores, garrafas de água vazias e pessoas amontoadas. Um quadro de natureza morta que é de facto composta de seres humanos mortos. Subsiste aqui a dúvida: qual partido toma Rosi? O da composição do plano ou a presença da sua câmara (apenas com o próprio Rosi à câmara e outra pessoa no som) naquele cenário flutuante de inferno? Pela prosa de uma tentativa de redenção pelas suas imagens e pelo cinema, ou uma poética assente na miséria humana? Estas oposições não podem deixar de pôr-se na carreira de um cineasta cujo tema predilecto tem sido a margem e seus habitantes, margens essas que progressivamente agora lhe conquistam um lugar no centro do cinema contemporâneo de prestígio.
Sobre essa dualidade, olhe-se para o Urso de Ouro deste ano, pesando os pratos da balança: se é verdade que há qualquer coisa de carnívoro em premiar o que quer que seja depois de vermos estas imagens, também é certo que esta promoção de Rosi talvez seja um preço justo a pagar pela realidade para que, de facto, mais consciências despertem o olhar para a tragédia que Fuocoammare quer dar a ver.

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