segunda-feira, 13 de março de 2017

Sanshō Dayū


«Sanshō Dayū» de Kenji Mizoguchi, passando-se no período Heian da história do Japão (794 - 1185), não deixa de ser um filme sobre o complexo de culpa nipónico em face das decorrências da Segunda Guerra Mundial. É também um filme sobre a instauração da democracia e do liberalismo no país.  E sobre o papel subalterno e sacrificial do sexo feminino numa sociedade machista e feudal. Sobre a instauração da lei por contraponto com os privilégios de sangue. Sobre o fim da escravatura, sobre a importância de se ser ser humano, isto é, um ser com piedade, ou como dizem os ensinamentos do pai ao filho, Zushio, «without mercy, man is like a beast. Even if you are hard on yourself, be merciful to others".

Mas dizer isto era não dizer nada sobre «Sanshō Dayū». «Sanshō Dayū» é um filme sobre cantar para se chamar os filhos, numa música que desaba pela planície e atravessa espaços e tempos. É um filme sobre ramos de árvores que apenas se partem a quatro mãos, sobre estatuetas e deuses da piedade, sobre as ondulações da água que lembram do sacrifício e do passado, sobre a impossibilidade de ver o rosto de um filho mas sabe-lo de cor. Mas mais. «Sanshō Dayū» é sobretudo um filme erguido sobre o cinema que ali está (para todos os que o quiserem ver) como um «ferro em brasas», como o que os escravos sentem na carne ao tentar escapar do campo de trabalho de Sansho the Bailiff. Um ferrete que marca para sempre os que tentam escapar, como marcado fica o olhar, a memória, a visão do mundo do espectador que, como eu, o vê pela primeira vez.  De «Sanshō Dayū» não há escapatória possível. E tão reconfortante é saber que ele aqui nos fica como uma prova, na pele e no olhar, do quão belo o cinema em tempos foi. 

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