segunda-feira, 6 de março de 2017

Personal Shopper (2016) de Olivier Assayas

Segundo reza a história, em 2015, Assayas estava nos Estados Unidos a preparar uma produção americana que caiu por terra mas não foi por isso que ficou parado. Mantendo a sua impressionante média de um filme a cada dois anos, escreveu, num ápice, uma espécie de volátil declinação de Clouds of Sils Maria (As Nuvens de Sils Maria, 2014), o seu filme anterior. Se neste explorava sobretudo a relação da grande actriz francesa (Juliette Binoche) com uma sua assistente (Kristen Stewart), agora resolve manter apenas Stewart, na mesma como assistente de uma mulher de elevado estatuto, ao caso uma modelo muito famosa para quem serve de “personal shopper”.

É pois no meio de jóias da Cartier e de vestidos de milhares de euros das mais luxuosas lojas de Paris e Londres que vamos encontrar Maureen Cartwright, (a personagem de Stewart) e o seu dilema espiritual: o irmão medium morreu subitamente mas prometeu que do além vida lhe daria um sinal. Pois que tudo se trata então de perceber que a sua carreira na pintura está em pausa até que o bendito irmão lhe parta um copo ou lhe abra uma torneira na sua antiga casa. Até isso acontecer, Stewart ganha a vidinha agarrada ao expoente do materialismo, maldizendo a sua sorte.

Personal Shopper (2016) é então uma história de fantasmas muito cosmopolita e ao mesmo tempo um coming of age de uma jovem à procura de um rumo para a sua vida. Mas é mais, Assayas quer reflectir sobre o omnipresença das redes sociais como uma nova espiritualidade. Através do telemóvel de Stewart, os fantasmas devém um thriller sobretudo a partir do momento em que começa a receber mensagens de um desconhecido colocando-nos num dilema ghost in the machine, pondo-se a dúvida se o suspeito é de carne e osso ou é apenas uma claridade marota, desejosa de prolongar o seu amor fraternal.
Na sua crítica ao filme anterior, o João Lameira falava da importância do subtexto de Clouds. A mesma coisa parece acontecer aqui. O caminho do terror sobrenatural, assim como o do thriller (que apesar de tudo é bem mais interessante com as cenas em que Kristen experimenta os vestidos da sua patroa a lembrarem a duplicidade de Vertigo ou o papel das mensagens de telemóvel não lidas em tempo real a desabarem no presente como a iminência de um crime a qualquer segundo) não são bem resolvidos por Assayas uma vez que desde início nos são apresentados como cosidos um ao outro.

Já o subtexto, ou o espírito para lá do texto, resulta melhor. Os olhos (não amargos) mas de olhar cansado de Stewart denunciam o “excesso de real” que reconhecemos, os cafés, os cigarros, a presença constante do telefone, as compras, as viagens irrequietas, os táxis, etc. Então é sobre este cansaço que opera esta procura de uma espiritualidade, espaço esse do qual as outras personagens surgem arredadas. Se sugiro que Personal Shopper possa ter ficado apenas com o espírito do filme anterior de Assayas é porque parece que todas as suas personagens aqui se evaporaram. A personagem da patroa de Stewart é semelhante, mas passa-se de uma Binoche presente a uma Nora von Waldstätten praticamente ausente, sempre inacessível ou no fundo dos enquandramentos. O mesmo se pode dizer que as presenças masculinas que rodeiam Maureen, todas elas fantasmáticas: já se referiu o irmão morto, mas o mesmo acontece com o namorado distante, intermediado (enclausurado) pelo janela do skype, ou com o namorado de Kyra que é uma figura intermitente.

Por estas razões, o thriller e o terror são corpos demasiado pesados para a leveza desta ideia de Personal Shopper: a virtualidade das relações humanas capaz de configurar as pessoas em espectros do quotidiano. Mas depois ficamos com o corpo de Kristen Stewart – temeroso, agitado, desejante – à volta do qual a câmara gira. É esse corpo, como lutador incansável contra a invisibilidade, que contradiz afinal tudo o que acabámos de ver. E ainda bem que assim é. Afinal parte do fetichismo da cinefilia começa aqui: Stewart veste as roupas de uma estrela, um realizador filma até à exaustão a “sua” estrela. Essa cinefilia parece também fazer parte do sentido do prémio de realização que o francês venceu em Cannes no ano passado por este filme.

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