quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Restless - Gus Van Sant


Gus Van Sant fez um drama romântico. Não é algo propriamente novo, MALA NOCHE, DRUGSTORE COWBOY, também o eram à sua maneira. Mas não demos demasiada importância ao género em que se enquadra RESTLESS, uma vez que qualquer incursão de género irá oscilar numa falsa divisão mediática em que querem balizar o universo do cineasta: a sua vertente mais mainstream, e o seu finca pé cerra fileiras, iniciador de uma estética indie. Falamos desta como uma falsa oposição porque na verdade ela adianta pouco na carreira do cineasta. Enquanto em Soderbergh a versatilidade é um objectivo em si, Gus Van Sant marca-se na história do cinema contemporâneo com uma outra oscilação, bem mais subterrânea, bem mais profética dos tempos que correm. Essa oscilação faz-se entre uma sensibilidade queer de amores loucos, marginais, dignos na sua impossibilidade e, por outro lado, o retrato de uma juventude norte-americana post nine eleven. Com RESTLESS trata-se do segundo caso, em raccord evidente com ELEPHANT e PARANOID PARK e mesmo com LAST DAYS

Sobre esta adolescência «restless», ou idade adulta precoce, há três traços que nos parecem evidentes. Em primeiro lugar, um desejo de ruptura. Na nouvelle vague era toda uma geração que saltava para o ecrã, um mundo ainda inexplorado pelo cinema, na forma de percorrer os espaços, viver as relações amorosas, discutir os objectivos políticos da humanidade. Na juventude, da qual Gus Vant Sant se transformou o oficial relator, e da qual, na verdade, se apropriou para construir um discurso que faltava à sétima arte, há o mesmo desejo de ruptura. Foi essa ruptura política que obrigou Gus Vant Sant a criar uma estética também ela de ruptura apropriada a tal desbravamento. E neste sentido é perfeitamente legítimo ver em Enoch (Henry Hopper) um Léaud obscuro, traumatizado pelos tempos. Em segundo lugar, esta é uma juventude onde essa ruptura se sente no manuseamento do mundo, quer dizer, eles percorrem-no à deriva mas brincam com ele. Desta feita, Gus Van Sant é um genial director de actores porque sabe em que exacta medida os gestos das suas personagens inauguram uma nova relação com a realidade. Por isso, RESTLESS é uma obra-prima na gestão dos timings, como finos decisores de um olhar sobre essa realidade. Em terceiro lugar, e fazendo uma espécie de ponte com o segundo aspecto, diga-se que esta juventude em ressaca post-capitalista, filhos de uma opulência opressora, são já «velhos». Não fisicamente claro, mas velhos na capacidade que têm de gerir um conhecimento de vida que lhes adveio da experiência, outrora reservado aos anciãos. Por exemplo, estes jovens sabem já que a vida é breve e que convém aproveitá-la. 

Dessa forma, RESTLESS também é um filme exemplar na forma como o seu par de protagonistas sabe da ausência de sentido para a vida. Ou que o único sentido é a execução de pequenas acções sem sentido, que provocam sorrisos e um bem-estar interior. Como se eles já soubessem, como diz Enoch a dada altura, que a morte trará o nada, e que perante isso é melhor abolir um sentido para todos os gestos e atitudes. RESTLESS é isso, um drama romântico com pouco sentido. Quer dizer, há no namoro destes dois jovens (consultar sinopse aqui) a abertura de uma nova possibilidade pacífica para a forma de viver a realidade, já nem tudo é apenas negar ironicamente a vida, nem tudo é celebrar a dúvida. E neste sentido esta, mas também as anteriores obras sobre a adolescência norte-americana de Gus Van Sant, são tão etnográficas, quão performativas. Quer dizer, ele está a narrar um universo que culturalmente desponta nos cafés, liceus, cinema, cidades, mas que está a ser criada ao mesmo tempo que é descrita. Gus Van Sant é tão testemunha quão criador desta juventude nerd, paranóica e de extrema boa vontade.



A morte como tema sob o qual se ironiza mas que não deixa de se fazer sentir serve em RESTLESS para prosseguir essa apropriação do discurso oficial de uma geração adolescente. Se ELEPHANT levantou pistas sob as causas da origem dessa geração, ou melhor, dessa forma comum de sentir, e se PARANOID PARK era mais observador na forma de explicar o durante dessas vidas novas, há um elo que se fecha em RESTLESS. Este é um filme que já integrou causas e que agora explora os efeitos desse novo processo que leva a contemporaneidade a voltar a perder a inocência, inocência essa que… já se havia perdido antes. Como se estivéssemos sucessivamente a desbastar novos estados de inocência e essa fosse uma condição de contemporaneidade.

Gostávamos ainda de destacar outros dois elementos centrais do filme.

Primeiro, o constante jogo entre a convencionalidade e o tom intransigente e sério. Se há elementos do drama que querem puxar o espectador para uma confort zone, o xilofone final, a carta do fantasma, há também lugar à destruição desse conforto. Veja-se a cena em que Enoch exige ao médico que cure Annabel ou a encenação da morte desta.

E segundo, a forma enviesada usada pelo cineasta para lidar com a morte. É nesse sentido um drama abertamente darwiniano, em que a evolução das espécies permite pensar uma continuidade entre vida e morte que ganha contorno cinematográfico, não só com a personagem do fantasma do piloto kamikaze japonês da 2ª Guerra Mundial, mas também na forma como o fora de campo acaba por ser um espectro que, embora invisível, esteja presente, em espelho, pelas reacções de quem está vivo, é visível e está em campo. Como na magistral sequência em que o jovem casal de namorados fala com os pais dele, ambos mortos. Desta forma, a linearidade da vida convoca para campo, para in, os fantasmas e mortos e onde a morte é aqui apenas um passar para off não necessariamente invisível. Isto porque neste mundo a visibilidade e a invisibilidade deixaram de ser opostas.

Estes são apenas alguns dos aspectos a reter em mais uma obra magistral de Gus Van Sant que, ao poeticizar o lugar da vida por sobre o fértil terreno da morte e do macabro, não deixa pedra intacta, assim como intacta não fica a paisagem do cinema contemporâneo.

2 comentários:

  1. Quero tanto ver este filme. Fico contente por ler este texto. Percebo que devo esperar algo mais acessível, mas não menos pessoal do que aquilo que Van Sant tem feito. Parece-me bem :) Cumprimentos

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  2. O filme é de uma sensibilidade muito própria, vale a pena ir vê-lo sem dúvida. Obrigado pelo comentário. :)

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