Os primeiros planos de UMA SEPARAÇÃO
(Jodaeiye Nader az Simin), de Asghar Farhadi - o «filme dos três ursos» como já
lhe chamam pois arrecadou os prémios para melhor filme, melhor actor e actriz
em Berlim este ano - não podiam ser mais clarom e higiénicom. Dois bilhetes de
identidade fotocopiados e uma hipótese de separação. Nesta fractura não está só
em causa um casal com uma relação prestes a terminar, mas sobretudo um horizonte
de separação política: é que a vida é melhor fora do Irão do que no interior dele.
A esposa Simin (Leila Hatami) quer levar a sua filha para fora para lhe poder
proporcionar um futuro melhor. Contudo há um problema. Ou melhor, há dois. É
que Nader (Peyman Moaadi), o marido, se opõe pois quer permanecer no Irão para
tratar do seu pai com Alzheimer. E a própria filha não tem vontade de ir porque
quer ficar com o pai.
Perante esta separação inconcretizada, a geográfica, Farhadi parte num
hábil processo de manufactura de uma outra separação, esta in locu, de criação
de espaços no atafulhado dos décors reais,
dos espaços juntíssimos da separada sociedade iraniana. É nesses espaços - escadas,
corrimãos, ombrais de portas, persianas, janelas – tudo câmara à mão, que Farhadi
nos revela o dissensual, o novo stress que chegou à sociedade iraniana, em
parte também pelas sucessivas investidas do charme ocidental.
Assim, parte uma mulher, sai de casa a esposa empreendedora, com ambições de
futuro, e entra outra, também ela casada, classe baixa, que precisa de fazer
pela vida. Por isso, aceita o emprego desgastante de cuidar do pai de Nader
durante o dia, enquanto este está a trabalhar. E há um pequeno conflito que se
agiganta, transformando a segunda metade de UMA SEPARAÇÃO num processo kafkiano de apuramento de culpas. Um
périplo que passa por hospitais, tribunais, escolas e onde essa culpa, em lugar
de pender para um dos lados, se dissolve docemente, dando lugar a uma outra
realidade. E é aqui que está a novidade do filme de Farhadi. É que ao invés das
personagens silenciosas (o pai de Nader) ou semi-silenciosas (a filha
adolescente do casal) serem soluções expectáveis para o conflito que vai opor a
sua família à família da mulher que eles contratam, são meros espelhos que
servem uma atitude de auto-confrontação, de confronto moral. Como se o silêncio
do outro nos permitisse observar de frente, com maior clareza, a nossa própria
inquietação.
Desta feita, UMA SEPARAÇÃO é uma
obra que vai expondo as pequenas grandes faltas, os pequenos grandes desesperos
de uma sociedade em transformação. Uma sociedade que sempre soube expelir do seu
interior o incómodo mas que cada vez menos convive com o trauma de uma culpabilidade interior. Sobre esta transformação UMA SEPARAÇÃO
exibe como as fendas jurídicas se mostram no tecido religioso: jurar ou não
sobre o Corão?; despir ou não um idoso senil?. E os extremos valores da honra e
do amor, que sempre habitaram a espinha dorsal de um modo de pensar e agir, e
porque não dizê-lo do próprio cinema iraniano, dão lugar a uma belíssima exaltação
de uma compaixão dos perpetradores pelos perpetradores. Um jogo afinal vicioso,
sem fim, e muito muito honesto.
A SEPARATION estreia amanhã, dia 15, em Portugal.
Vou fechar o ano com esse filme, para o qual parto com ELEVADÍSSIMAS expectativas. Abç,
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