Videoclip é um lugar de passagem de imagens, ele próprio constituído um lugar
de passagem na relação de heterodoxia da lógica vídeo por referência ao
cinema. Mas mais do que saber se o videoclipe pode «sujar» o cinema,
concentremos-nos em como pode remediá-lo (re-mediar). Câmara Lenta, imagem em
freeze, deformação cromática e óptica, dependência da música, chromas, etc.,
isto são pontos objectivos que podemos agarrar quando falamos da estética
videoclipe. A questão é que quando o cinema recebe essa estética tem a
tendência a depreciá-la por referência ao concentrado de ideias formais (que
implicam um concentrado de ideias de conteúdo, é certo) que fazem esquecer a
nobreza narrativa ou, por sua vez, pós-narrativa da sétima arte. Contudo, estes
elementos quando integrados numa lógica cinematográfica têm meios, eles
próprios, de fazer esquecer a lógica decorativa que preside à comunicação com o
público-alvo adolescente dos videoclipes, e mostrar a articulação destes
elementos numa outra lógica de expressão, que pode e deve influenciar o cinema.
Ou seja, há uma nobreza de expressão na linguagem de videoclipe que convém não
ser obnubilada.
É com estas relações em mente que partimos para DRIVE, de Nicolas Refn, vencedor do prémio de melhor realizador na
edição deste ano do Festival de Cannes. Apesar de não ter escrito o argumento - baseia-se numa obra neo-noir de
James Sallis – Refn continua, sobretudo após PUSHER e BRONSON, numa
via tortuosa e perigosa de afrontação dos dilemas ora patetas ora reais da
masculinidade, através da explicitação da violência, que, num sistema de
referências cool, só permitiu nos últimos
anos considerar Tarantino, e mais transversalmente Kitano. E pelo caminho
muitas fraudes, Gaspar Noés e companhia, muitos «génios» de profissão que vivem
de manipular masturbatoriamente o vazio.
Ora DRIVE, não é masturbação
visual, nem é obra de um aluno que copia e copia mal. DRIVE é um filme que não tem pudor, quer dizer, «arma-se em bom»,
desde logo erguendo esse valor do que é explícito, deixa pouco por ver, dá
tudo, quer na lógica do que poderemos qualificar como videoclipe, já lá iremos,
quer no seu sistema de referências. Ryan Gosling, o protagonista de DRIVE, é um stunt man em filmes de Hollywood, além de trabalhar numa garagem de
um amigo. Apaixona-se, ou quer proteger, a vizinha do lado e na tentativa de
ajudar o seu marido, ex-presidiário, vê-se no meio de uma armadilha. Esta
sinopse, que podia ser a de um filme de acção straight to vídeo dos anos 90, é a plataforma de uma esquizofrenia
saudável de elementos que vão desde os chase
films dos anos 70, com Ryan Gosling, no seu scorpio jacket, a fazer a ponte entre Steve Macqueen e a parolice
musculada de Vin Diesel, o ambiente tensional e atmosférico da banda sonora à
anos 80. Depois há ainda a mecânica cirúrgica das sequências de acção como em
Tarantino, a imobilidade melvilliana de Gosling, a fotografia de Newton Sigel,
as caricaturas para cinéfilo ver de Ron Perlman e Albert Brooks, e por
aí fora, numa rede interminável de referências.
Então, qual é o drama? O drama é que há pouco drama. O mundo de DRIVE é um espaço de imobilidade no que
toca ao conflito emocional, à redenção operativa, à obsessão platónica pelo content above form. As personagens de DRIVE são assim e não evoluem, embatem
umas nas outras como num entusiasmante ou entediante jogo de pinball, mas daí não saem. E é aqui que
cabe referir que a suposta lógica «videoclipeira», «adolescente», de concentrado
de estereótipos, em DRIVE encontra uma expressão digna que não deixa esconder
uma vontade de ser cool, mas que constrói
um universo de ritmo sonoro e visual que se sustém por si só. Dessa forma,
esgravatar conteúdo dramatúrgico em DRIVE
é procurar falsas pérolas, é infantilizar a dimensão performativa que a
estética videoclipe pode aportar à permeabilidade (Gosling não é o imóvel? O
que pouco fala e muito vê?) do cinema. E é esse embate cinema / formalidade sem
conteúdo que permite a Nicolas Refn precisamente descolar da pura lógica do
videoclipe. É que essa recriação de universos já trilhados (Coen, Mann,
Tarantino…), com mais ou menos formalismo, também pode criar real, ou seja,
conteúdo. Aquilo que «faltaria» a DRIVE.
Se bem que faltando o engenho narrativo da maioria dos universos citados
com que DRIVE quer comunicar - e que contaminam a grelha de análise do
espectador - convém que se diga que o filme de Nicolas Refn é, a espaços, um
verdadeiro festim para os olhos, e sobretudo para os ouvidos. E é, seguramente,
um dos melhores filmes de 2011.
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