Recentemente
num café lisboeta uma adolescente, prestes a pagar a conta ao balcão, recebe
uma chamada e diz: ”O meu avô está hospitalizado. Tem um cancro num pulmão e em
princípio é mortal.” Entretanto prossegue a chamada com algumas banalidades e
ao fim de pouco tempo desliga. Paga a conta e sai do café. À partida, a
brutalidade desta informação surpreende
pela aparente contradição subjacente à relação entre o conteúdo da
mensagem e a sua forma (a entoação era inafectada, banal, com um volume
suficientemente alto para que quem estivesse a uns poucos metros de distância
ouvisse e soubesse daquela doença e provável morte iminente). Não cairemos na patetice de julgar o
sofrimento de um desconhecido pela entoação de uma frase.
A
questão tem de pôr-se é no campo da compreensão dialéctica entre a esfera
pública e privada. Já pelo menos desde os anos 30, e depois com Adorno e
Horkheimer, que se percebia que a esfera privada tinha sido colocada no alvo
dos interesses de um sistema público. A introdução de locuções como a “reserva
da intimidade da vida privada,” “questões do foro íntimo e privado”, ou a
expressão, “por motivos pessoais”, só
davam a compreender o óbvio: que essa reserva era admitida sob um olhar
estritamente político, quer dizer, público e invasivo.
Desta
feita, abrem-se dois cenários. Um mais provável é o de que a constante
penetração de elementos que pertencem à nossa relação com aquilo que nos afecta
(expresso ao nível dos sentimentos) pela
carga de um funcionalismo que nos ultrapassa (que pertence a uma comunidade), a
um centro social que nos reclama, implica o repensar destas duas esferas. Por
isso, não espanta que, como aquela adolescente, hoje, usemos como pharmakon, a exposição do que é só
nosso, ou pensamos ser só nosso. É esse prolongamento do interior no exterior,
da intimidade na devassa pública, da partilha de um evento pessoal ou de um
desgosto no palco público (precisamente o local onde todas as dores privadas se
desvanecem para dar lugar a uma dor abstracta), que permite ao indivíduo
apaziguar o que ainda sente. Neste caso apazigua, mas outros casos conhecemos,
em que o social é antes uma certificação do próprio sentir. E aqui entramos na
segunda hipótese. É que a indignidade de espalhar aos quatros ventos que temos
um avô que está prestes a morrer permite pensar o que faz esta contaminação do
privado pelo público na reorganização emocional da nossa esfera emotiva interior.
É que parece que a contraposição moderna entre o desgosto e a forma de entoar o
desgosto, deu lugar a uma introdução indistinta, pos-ideológica, das frases e
suas cargas emotivas numa máquina indistinta de sentenças que se esvaziam, que
valem como puro entertainment, quer
dos que as ouvem, quer dos que as proferem. Ora a falência dos espaços de intimidade
está precisamente em jogo quando é o sistema, ou sistemas, quem certifica que
tens uma vida interior e que ela merece ser vivida, apenas e estritamente, dentro dos limites do espectacular.
No
livro quente, de ressaca do 11 de Setembro, BEM VINDOS AO DESERTO DO REAL, Slavoj Zizek fala-nos, após vários
malabarismos à esquerda e à direita, de uma lição a retirar dos romances de Marguerite Duras.
A lição é a de que o único meio para um casal viver uma vida verdadeiramente
pessoal não consiste em ficar a olhar um para o outro, esquecendo o mundo à sua
volta, mas em olhar juntos, de mãos dadas para o exterior, para um terceiro
ponto. E prossegue com a ideia de que o resultado de uma subjectivação
globalizada, ou seja uma uniformização do íntimo e pessoal, não provoca o
desaparecimento da “realidade objectiva” mas sim da própria subjectividade. A
subjectividade passa a ser uma fantasia fútil, enquanto a realidade social
segue o seu caminho.
Ou
seja, vai morrer-nos um avô, mais tarde ou mais cedo. Nessa morte, a nossa
reacção a ela, não depende tanto de nós, mas sobretudo de uma formatação interior, de um
ritual do sentimento uniformizado que serve todos os avôs e todos os netos.
Nesse contexto só se verterão lágrimas sociais e os espaços de intimidade
confundir-se-ão com os palcos.
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