No passado dia 22 de Novembro estreou na Culturgest o espectáculo de
performance «Não se Vê Que Sou Eu mas É
Um Retrato…», de Rita Natálio. Uns dias depois o jornal Público publicou a sua apreciação
crítica sob o título «O Teatro, matéria de
intervenção política». Embora goste de me confrontar com opiniões
divergentes, e sem me arrogar o título de especialista na área, parece-me uma
saudável e imprescindível tarefa de cidadania ressalvar aqui a pobreza dos
argumentos apresentados pelo autor deste texto para justificar aos leitores do
jornal uma suposta mediocridade da peça. É quanto ao respeito que mereço enquanto
leitor do jornal, que por ele pagou coisa de um euro, que entendo haver a
devida atenção e reparação, em função dos textos que ali são divulgados. Como
tal, enquanto não me devolverem o euro, vejamos:
Começa o autor deste texto por admitir que vivemos em período conturbado,
«considerando os tempos que correm», diz. E assim sendo o autor admite que o
teatro / dança / performance seja hoje extraordinariamente político. Quer dizer,
ele já é político. Mas hoje ainda é mais. Faz sentido. Contudo, há para este
autor um pecado. É ser-se consciente que, não sei porque carga de água, os
espectáculos não devem ser lidos como «entidades finitas ou deterministas». Ou
seja, pontapé na carola da arte de intervenção. Logo ali, segundo parágrafo. Ou
seja, é para o autor deste texto uma sacrosanta virtude da arte que ela consiga
bastar-se, e cito, se «libertar de um trabalho de reflexão maior do que a sua
própria produção». Por outras palavras, falar sobre a pequena história, o
ficcional, para ser o espectador a atingir o «big picture», se é que ele lá está.
E nesse processo, o autor (DEVE, não é?), coibir-se de usar o teatro como
matéria directa de intervenção política. Não iremos perder tempo a discutir que
a intervenção política in your face
não pode ser considerado um critério para apreciar ou depreciar uma obra de
arte, porque pelo menos na peça que me motivou a escrever este texto ela, quer
dizer, não existe. Há uma reflexão teórica sobre o social e o político que
invade o espaço performativo. O que não é nada activista, pelo contrário. Se o
autor do texto se refere à alternativa final da peça, ela apenas mostra que a
mensagem da arte moderna já lá vai, que já não basta exibir a dúvida, o
cepticismo como peça de porcelana, expor o orgulhoso vazio. Mostra que já
morreu, de causa natural até, o pudor pela afirmação das coisas. Muitas coisas.
Pertinentes ou não. Aliás como se vê pelo próprio texto publicado no Público.
Iremos sim concentrar mais atenção nesta bela oposição que está subjacente
à espinha dorsal do raciocínio do autor deste texto: a ideia de que a dispersão
é o contrário da capacidade de se ser incisivo. Ora, não é. Se há coisa que «os
tempos que correm» nos mostram é que a dispersão já não é uma fatalidade das
artes, mas uma inevitabilidade que muitas vezes se nos impõe do presente. Pode
ser a dispersão que nos permita precisamente chegar à posição incisiva, isto
porque essa realidade que vivemos, pensamos, actuamos, é já em fragmentos. O
que é difícil de compreender ao autor deste texto é que a dispersão pode ser
hoje a forma de se ser mais coerente. Olhemos por exemplo a última criação de
Olga Roriz. PETS. Não é ela dispersa? Não é ela extraordinariamente incisiva?
Ou é porque não há tantas palavras e se torna mais fácil perceber que essa é
uma falsa oposição? Mas inversamente, também obras há que pela sua obsessão
pela métrica, pelo concentrado, pelo fechamento da dramaturgia, não podiam
divergir mais da ideia de arte incisiva.
Neste sentido como qualificar a ideia de que as imagens da peça «Não se Vê
Que Sou Eu mas É Um Retrato…» não «rimam» com o texto, que os retratos individuais
se confundem em função de um discurso sobre a comunidade? É que é mesmo isso.
Acertou em cheio, na mouche, na
picareta, o autor daquele texto. Esta é uma reflexão sobre essa diluição,
indivíduo, comunidade, e dramaturgicamente essa diluição parece evidente. Não
calha a propósito da tal grelha do fechadinho e coerente, do individual que
depois mais tarde quiçá o espectador vê que é global, etc? Olha, azar. Que
fique claro que opor dispersão à consistência de uma obra de arte é
profundamente clássico e equivale a espartilhar a arte num caminho que ela pode
não querer percorrer. Aliás, há lá coisa mais de cariz intervencionista,
político bafiento mesmo, na história na análise artística do que esse
modelozinho da coerência, do fechadinho, do bem – estar interior que gera
mal-estar exterior? Trata-se no fundo de mais uma grelha de análise que só faz
o crítico sentir-se seguro, a gusto.
Noto ainda uma preocupação com o espaço interventivo do teatro poder
preencher o aberto do espectador. Azar, outra vez. Na verdade trata-se de uma
luta de interesses, onde às vezes há «mortos» e torna-se necessário violentar
as crenças e sentimentos daqueles que vão assistir à obra. Quando escrevemos «a
perigosa dimensão demagógica de um teatro de intervenção» lá para o fim do
texto, estamos, desculpe-me o autor deste texto, a ser ingénuos. Qualquer obra
tem um cariz demagógico na medida em que não rebenta tripas, nem manda
políticos para a prisão. Isso não quer dizer que não possa usar dos seus
mecanismos para ter uma visão sobre o mundo. Visão clara, em discurso directo,
que vergue uma ideia de dramaturgia. Viva a demagogia artística, diria eu.
Alertar para o seu perigo, isso sim, parece-me perigoso.
E outras coisas maravilhosas haveria a referir sobre «O Teatro, matéria de
intervenção política», texto tão rico. Mas terminando, reafirmo que o objectivo
desta breve missiva não é, como é óbvio, endeusar a peça em causa. Trata-se
apenas de uma chamada de atenção para o respeito que eu, enquanto leitor de um
jornal mereço, quando se me impõem a mim, e a milhares, um discurso pobre e
pré-formatado sobre as artes, que neste caso desvirtua a obra da arte em causa
e que contribui para obliquar, não sei com que propósitos, a relação entre a
arte e os seus destinatários, passado pela dispensabilidade de uma filtragem
«especialista». Filtragem essa que na arte condena a dispersão, a perda na
«construção de jogos de palavras», jogos esses já permitidos ao crítico (aliás,
vive deles) como a inenarrável diferença entre «ser político e ser-se
político». É quase a mesma diferença entre ser «expert» e ser-se esperto.
* Por motivos óbvios, apesar de ter
visto o espectáculo com curiosidade, não me passou pela cabeça
fazer publicidade, escrever mal ou bem, porque criticar ou elogiar uma pessoa
da família causa o mesmo embaraço que arrotar numa igreja. Contudo esta
saudável distância foi perturbada pela minha leitura do referido texto que podeis
ler abaixo.
Boa tarde,
ResponderEliminarTendo lido o texto de Tiago Bartolomeu Costa, nada nele me parece polémico ou questionável.
"...a intervenção política in your face não pode ser considerado um critério para apreciar ou depreciar uma obra de arte ...". Claro que não. Mas não é isso que Tiago Bartolomeu Costa faz, nem me parece que formule ou repita uma grelha teórica clara para a avaliação de obras de arte.
A peça de Rita Natálio é classificada come mediócre porque, como tudo o que vi desta autora, o é. Uma manta de retalhos de texto não é automáticamente "uma reflexão teórica sobre o social e o político que invade o espaço performativo".
Não é suficiente defender que "a dispersão pode ser hoje a forma de se ser mais coerente" para fazer esquecer que a falta de focagem, a incapacidade de criar sentido e a inabilidade sistemática de colocar um texto em cena são, mesmo hoje, sinónimos de falta de qualidade.
Todo o texto de Carlos Natálio tenta transformar fraquezas em forças utilizando mecanismos de relativização e ataque e atribuindo um raciocínio teórico ao crítico do Público que simplesmente não existe no texto original. É bonito defender os amigos e a família, mas este texto de Carlos Natálio tenta fazê-lo eriçando-se sistemáticamente contra quaisquer critérios qualitativos que possam levar á depreciação da peça da sua parente. Fosse outro o artigo e os argumentos de Carlos Natálio seriam, pareçe-me, outros, mas com conclusões semelhantes.
Uma estrela e meia é, talvez, mais do que justo, generoso.
Hugo Brito