sábado, 3 de dezembro de 2011

A diferença entre ser «expert» e ser-se esperto

No passado dia 22 de Novembro estreou na Culturgest o espectáculo de performance «Não se Vê Que Sou Eu mas É Um Retrato…», de Rita Natálio. Uns dias depois o jornal Público publicou a sua apreciação crítica sob o título «O Teatro, matéria de intervenção política». Embora goste de me confrontar com opiniões divergentes, e sem me arrogar o título de especialista na área, parece-me uma saudável e imprescindível tarefa de cidadania ressalvar aqui a pobreza dos argumentos apresentados pelo autor deste texto para justificar aos leitores do jornal uma suposta mediocridade da peça. É quanto ao respeito que mereço enquanto leitor do jornal, que por ele pagou coisa de um euro, que entendo haver a devida atenção e reparação, em função dos textos que ali são divulgados. Como tal, enquanto não me devolverem o euro, vejamos:


Começa o autor deste texto por admitir que vivemos em período conturbado, «considerando os tempos que correm», diz. E assim sendo o autor admite que o teatro / dança / performance seja hoje extraordinariamente político. Quer dizer, ele já é político. Mas hoje ainda é mais. Faz sentido. Contudo, há para este autor um pecado. É ser-se consciente que, não sei porque carga de água, os espectáculos não devem ser lidos como «entidades finitas ou deterministas». Ou seja, pontapé na carola da arte de intervenção. Logo ali, segundo parágrafo. Ou seja, é para o autor deste texto uma sacrosanta virtude da arte que ela consiga bastar-se, e cito, se «libertar de um trabalho de reflexão maior do que a sua própria produção». Por outras palavras, falar sobre a pequena história, o ficcional, para ser o espectador a atingir o «big picture», se é que ele lá está. 

E nesse processo, o autor (DEVE, não é?), coibir-se de usar o teatro como matéria directa de intervenção política. Não iremos perder tempo a discutir que a intervenção política in your face não pode ser considerado um critério para apreciar ou depreciar uma obra de arte, porque pelo menos na peça que me motivou a escrever este texto ela, quer dizer, não existe. Há uma reflexão teórica sobre o social e o político que invade o espaço performativo. O que não é nada activista, pelo contrário. Se o autor do texto se refere à alternativa final da peça, ela apenas mostra que a mensagem da arte moderna já lá vai, que já não basta exibir a dúvida, o cepticismo como peça de porcelana, expor o orgulhoso vazio. Mostra que já morreu, de causa natural até, o pudor pela afirmação das coisas. Muitas coisas. Pertinentes ou não. Aliás como se vê pelo próprio texto publicado no Público.

Iremos sim concentrar mais atenção nesta bela oposição que está subjacente à espinha dorsal do raciocínio do autor deste texto: a ideia de que a dispersão é o contrário da capacidade de se ser incisivo. Ora, não é. Se há coisa que «os tempos que correm» nos mostram é que a dispersão já não é uma fatalidade das artes, mas uma inevitabilidade que muitas vezes se nos impõe do presente. Pode ser a dispersão que nos permita precisamente chegar à posição incisiva, isto porque essa realidade que vivemos, pensamos, actuamos, é já em fragmentos. O que é difícil de compreender ao autor deste texto é que a dispersão pode ser hoje a forma de se ser mais coerente. Olhemos por exemplo a última criação de Olga Roriz. PETS. Não é ela dispersa? Não é ela extraordinariamente incisiva? Ou é porque não há tantas palavras e se torna mais fácil perceber que essa é uma falsa oposição? Mas inversamente, também obras há que pela sua obsessão pela métrica, pelo concentrado, pelo fechamento da dramaturgia, não podiam divergir mais da ideia de arte incisiva.

Neste sentido como qualificar a ideia de que as imagens da peça «Não se Vê Que Sou Eu mas É Um Retrato…» não «rimam» com o texto, que os retratos individuais se confundem em função de um discurso sobre a comunidade? É que é mesmo isso. Acertou em cheio, na mouche, na picareta, o autor daquele texto. Esta é uma reflexão sobre essa diluição, indivíduo, comunidade, e dramaturgicamente essa diluição parece evidente. Não calha a propósito da tal grelha do fechadinho e coerente, do individual que depois mais tarde quiçá o espectador vê que é global, etc? Olha, azar. Que fique claro que opor dispersão à consistência de uma obra de arte é profundamente clássico e equivale a espartilhar a arte num caminho que ela pode não querer percorrer. Aliás, há lá coisa mais de cariz intervencionista, político bafiento mesmo, na história na análise artística do que esse modelozinho da coerência, do fechadinho, do bem – estar interior que gera mal-estar exterior? Trata-se no fundo de mais uma grelha de análise que só faz o crítico sentir-se seguro, a gusto.

Noto ainda uma preocupação com o espaço interventivo do teatro poder preencher o aberto do espectador. Azar, outra vez. Na verdade trata-se de uma luta de interesses, onde às vezes há «mortos» e torna-se necessário violentar as crenças e sentimentos daqueles que vão assistir à obra. Quando escrevemos «a perigosa dimensão demagógica de um teatro de intervenção» lá para o fim do texto, estamos, desculpe-me o autor deste texto, a ser ingénuos. Qualquer obra tem um cariz demagógico na medida em que não rebenta tripas, nem manda políticos para a prisão. Isso não quer dizer que não possa usar dos seus mecanismos para ter uma visão sobre o mundo. Visão clara, em discurso directo, que vergue uma ideia de dramaturgia. Viva a demagogia artística, diria eu. Alertar para o seu perigo, isso sim, parece-me perigoso.  

E outras coisas maravilhosas haveria a referir sobre «O Teatro, matéria de intervenção política», texto tão rico. Mas terminando, reafirmo que o objectivo desta breve missiva não é, como é óbvio, endeusar a peça em causa. Trata-se apenas de uma chamada de atenção para o respeito que eu, enquanto leitor de um jornal mereço, quando se me impõem a mim, e a milhares, um discurso pobre e pré-formatado sobre as artes, que neste caso desvirtua a obra da arte em causa e que contribui para obliquar, não sei com que propósitos, a relação entre a arte e os seus destinatários, passado pela dispensabilidade de uma filtragem «especialista». Filtragem essa que na arte condena a dispersão, a perda na «construção de jogos de palavras», jogos esses já permitidos ao crítico (aliás, vive deles) como a inenarrável diferença entre «ser político e ser-se político». É quase a mesma diferença entre ser «expert» e ser-se esperto.

* Por motivos óbvios, apesar de ter visto o espectáculo com curiosidade, não me passou pela cabeça fazer publicidade, escrever mal ou bem, porque criticar ou elogiar uma pessoa da família causa o mesmo embaraço que arrotar numa igreja. Contudo esta saudável distância foi perturbada pela minha leitura do referido texto que podeis ler abaixo. 





1 comentário:

  1. Boa tarde,
    Tendo lido o texto de Tiago Bartolomeu Costa, nada nele me parece polémico ou questionável.
    "...a intervenção política in your face não pode ser considerado um critério para apreciar ou depreciar uma obra de arte ...". Claro que não. Mas não é isso que Tiago Bartolomeu Costa faz, nem me parece que formule ou repita uma grelha teórica clara para a avaliação de obras de arte.
    A peça de Rita Natálio é classificada come mediócre porque, como tudo o que vi desta autora, o é. Uma manta de retalhos de texto não é automáticamente "uma reflexão teórica sobre o social e o político que invade o espaço performativo".
    Não é suficiente defender que "a dispersão pode ser hoje a forma de se ser mais coerente" para fazer esquecer que a falta de focagem, a incapacidade de criar sentido e a inabilidade sistemática de colocar um texto em cena são, mesmo hoje, sinónimos de falta de qualidade.
    Todo o texto de Carlos Natálio tenta transformar fraquezas em forças utilizando mecanismos de relativização e ataque e atribuindo um raciocínio teórico ao crítico do Público que simplesmente não existe no texto original. É bonito defender os amigos e a família, mas este texto de Carlos Natálio tenta fazê-lo eriçando-se sistemáticamente contra quaisquer critérios qualitativos que possam levar á depreciação da peça da sua parente. Fosse outro o artigo e os argumentos de Carlos Natálio seriam, pareçe-me, outros, mas com conclusões semelhantes.
    Uma estrela e meia é, talvez, mais do que justo, generoso.
    Hugo Brito

    ResponderEliminar