terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Batatas, língua e pés de porco em Frenzy

Num documentário sobre a rodagem de Frenzy, um regresso em final de carreira de Hitchcock à sua Londres, o argumentista Anthony Schaffer explica como conseguiu amenizar as imagens que o mestre tinha na mente. Primeiro, através da repetição da frase You’re my kind of woman dita pelo serial killer a Babs na cena em que ele a leva ao seu apartamento. Nós já o tínhamos ouvido dizer a mesma coisa antes de estrangular e violar a ex-mulher do herói. Essa repetição permitiu a Hitchcock a não menos perturbadora retirada em travelling pela escada do prédio até à rua. Famoso e abjecto encobrimento. Dentro no apartamento sabemos nós muito bem o que se terá passado enquanto os comerciantes do mercado de vegetais de Covent Garden passam pela rua mas inocente do mundo. A segunda água na fervura foi quando Schaffer disse a Hitchcock que não podia usar planos muito apertados de Brenda — dos seus lábios, suor e saliva — na cena da violação e estrangulamento pois isso era demais. O realizador respondeu-lhe com um nonsense my boy, mas o certo é que passado uns dias de montagem, cena particularmente difícil que demorou 3 dias a filmar, voltou atrás e retirou esses planos da versão final. Nessa cena o que nos fica é o suor do Rusk, o violador, o seu lovely, lovely, lovely enquanto a fode, o plano das mamas de Brenda e aquele momento horripilante em que Hitchcock nos dá aquele plano médio dela, estrangulada, língua ao lado. Língua que fará um raccord (não no filme, mas na minha cabeça) com a mão de porco que come o inspector da polícia.
Frenzy é um filme que corta em pedaços a ideia de que à medida que ficamos velhinhos nos tornamos mais simples e subtis. Pelo contrário. Nunca a não ser em Psycho (e creio que o desejo de aproximação naquela cena era a vontade de voltar ao chuveiro de Janet Leigh) Hitchcock estaria tão no puro terror. Como se fosse o excesso a vontade de um cineasta que já pode fazer tudo. Mas esse excesso é produzido através da transferência do que pode ser gráfico. Primeiro pelo humor macabro que é, sabe-se, um Hitchcock touch. Como é que uma cena em que um assassino parte os dedos de uma mão a um cadáver que já violou e se encontra em rigor mortis no interior de uma saca de batatas na parte de trás de um camião pode ser cómica? Mas é-o de facto e esse desvio torna-o ainda mais perverso. Depois a segunda transferência é a da comida: nojenta, rebentada, já meio comida, poeirenta, intragável. Essa ligação entre o cadáver do início que boia no rio e os pedaços de peixe que boiam na sopa horrível que a mulher do inspector lhe prepara. A mão sobre o pescoço das vítimas e o pé sobre as uvas desfeitas no chão do mercado. A poeira das batatas na testa do assassino e depois, como prova, na seu casaco. A maça roída a dois, entre a violada e o violador.

O desvio do horror para o grotesco da comida, do perecível e do podre, permite ser porco e aterrorizador sem o mais imediato. É pois essencial a todos saber gerir a porcaria. Por isso Frenzy é um filme tão extremo, que se devora com ruído, que aproveita o baixo e o prazer como últimos refúgios de um corpo também ele em irremediável decadência.   

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