sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Memórias que desencarceram


Há memórias que corrompem. Mas há também aquelas que nos desencarceram das águas paradas em que atascamos. Era bastante jovem, as cores tinham promessas — vermelho para vermelhíssimo, o escuro "luminava" numa questão de minutos. Era o tempo das portas encerradas. Sentia-me seguro, inerte, construindo fortalezas de quotidiano, engenheiro da solidão e da ilusão. Era o tempo do raio, da enxurrada, do terramoto como forma de fertilizar o presente. Nem um segundo concedido ao silêncio da neve, ao zumbido dos insectos, ou ao amor invisível. Recordo-me hoje de tudo isso: um amor desses, invisível, cores fortes, animais alados com caudas de dragão e escamas. Corações desenhados a encarnado. Palavras como "adoro-te" escrito ao inverso, espelho infantil de quem aprende a registar as palavras. Quase sempre o sol enchia o topo da página, muito grande, raios enormes amarelos, do tamanho da dádiva. Muitas vezes eu aparecia; outras vezes com a namorada da altura. Não me recordo, até hoje, de nenhum que não falasse de amor. Um amor-dinossauro, um amor-meteoro, um amor com braços elásticos, cabelos em pé, e lábios contornados.

Recordo hoje tudo isto que me ofereceu, como se fosse um rei. Na altura a porta estava fechada e recebi todos estes desenhos por debaixo dela. Que nem um correio, um presente que só hoje chega ao seu destino. Crescer também é isto: perceber partes do passado como uma oferta desaproveitada. A minha irmã relembra-se certamente destes desenhos que me enviava por debaixo da porta, destas declarações de amor, da vontade de pertencer a um mundo maior. E eu lembro-me desta bondade garrida, inocente, desapegada, destrancada. Memória esta que, anos depois, me desencarcera, lamparina que me guia na escuridão.

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