Entre 1929 e 33, Buñuel assinou o que a história viria a qualificar como a sua trilogia surrealista – Un Chien Andalou (1929), L’âge d’or (1930) e Las Hurdes (1933).
O primeiro, quiçá a curta-metragem mais famosa do mundo, é tido como obra precursora do cinema surrealista e deu a Buñuel, que filmava com o dinheiro da mãe, assim como a Dalí, com quem co-escreveu o argumento, entrada no panteão do movimento surrealista. Ora, é certo que ao recusar qualquer lógica causal entre as suas imagens, Dalí e Buñuel trouxeram ao cinema, com o “filme bomba”, como lhe chamaram, a dimensão psicanalítica, com particular preocupação pela descrição do sonho e de uma realidade por debaixo da realidade. No entanto, há mais. Há uma imagem que “cresceu”, se extrapolou desta divagação humorística e instintiva, dedicada contra o “cão andaluz”, Llorca, representante de antigos valores artísticos. Essa imagem foi a do olho a ser cortado por uma lâmina. Se este é plano de corte físico, literal, não é menos imagem de corte, ela mesma, ruptura com um olho preguiçoso. O corte é com um “once upon a time” apaziguador do título que antecede a cena. Mas é ainda, ou sobretudo, Buñuel a cortar o cinema em dois, apresentando-se.
Se Un Chien Andalou fez operar esse corte, fez também colar a Buñuel a expectativa do ser cineasta, e mais, a expectativa do que seria “o” cineasta surrealista. L’âge d’or que se lhe seguiu, segunda colaboração “surrealista” de Buñuel, esconde muitas histórias polémicas que o marcaram. Uma delas contava João Bénard da Costa que Dalí, quando regressou a Espanha após o retumbante sucesso de Un Chien Andalou, o pai lhe pôs as malas à porta e o expulsou de casa porque ele se preparava para expôr um quadro que dava pelo seguinte nome: “cuspo alegremente no cadáver de minha mãe”. Seja por causa desta irreverência levada ao extremo como tique surrealista, seja por mero choque de egos, desta vez a colaboração entre o pintor e o cineasta espanhol foi mais ténue, tendo só em casos excepcionais, Buñuel acatado as sugestões de Dali. L’âge D’or é um filme que, com as suas sequências narrativas bastante mais marcadas – a chegada da burguesia ante a recepção dos bandidos, o casal que quer consumar a sua relação amorosa e carnal, o jantar burguês e a orgia inspirada em Marquês de Sade – possui um outro tipo de vínculo ao movimento surrealista. Já não há a mera rejeição causal entre imagens mas a utilização do “método de paranóia crítica”, ou seja, a capacidade de ir ao subconsciente e o articular. Venha daqui ou doutro lado qualquer a mecânica narrativa de L’âge D’or, o certo é que nele, o que é surreal (o ataque ao sentimentalismo burguês com o pontapé no cego e no cãozinho, o sonho, o anti-clericalismo) é-o ainda mais buñueliano. Há em L’âge D’or uma urgência de viver, sobretudo no seu casal de “amantes impossíveis” que é, reconhecidamente, já, a preocupação pela defesa do instinto, da carne. Esse lado de luta à repressão sexual deu à história do surrealismo outra das suas imagens (sem que esta pertença propriamente ao núcleo das suas preocupações formais): Lya Lys a chupar o pé da estátua consumida de desejo sexual. Depois, surgiu como metáfora histórica o episódio que se seguiu à estreia do filme em Paris. Falo da destruição do estúdio 28 por uma multidão conservadora de direita que entre outras coisas não suportou que Buñuel tivesse colocado uma das personagens, em clara encarnação de Jesus Cristo, a sair da orgia final. E o curioso, ou melhor, a metáfora é que para que estas “imagens novas” pudessem percorrer o seu caminho, outras tiveram de ser sacrificadas – nesse ataque algumas das obras de Man Ray, Dalí, Max Ernst, Hans Arp expostas no estúdio foram destruídas para sempre.
Após um período de transformação no interior do movimento surrealista, Buñuel, desencantado com o artifício burguês vigente no mesmo resolve sair e logo a seguir filma Las Hurdes, documentário sobre esta região espanhola que nas vésperas da Guerra Civil era uma das mas pobres da Europa, com os seus habitantes a sobreviver em cenário de horror. Como documentário, ou “ensaio sobre geografia humana” como o narrador o descreve, Las Hurdes pouco parece ter a ver com as primeiras fases do surrealismo e antes com uma das suas etapas finais, caracterizada por uma maior preocupação com a acção societária. E a estratégia de Buñuel é no filme inverter os termos: o que é real, é-o tão escandalosamente, que parece precisamente… surreal, fora de mundo. Neste, outra imagem, entre várias, a derradeira imagem surrealista de Buñuel, sobressai: o plano das crianças sub-nutridas na escola de Aceitunilla. Imagem que viria a ganhar outro corpo, anos mais tarde, em Los Olvidados (1950).
O que provam estas três imagens que Buñuel “deu” ao surrealismo é que aquele encontrou neste um abrigo estético que lhe permitiu, filme a filme, fincar âncora no real. Surrealizar primeiro, alargando o espectro para comprimir depois, e ficar apenas com essa máquina fuziladora de valores burgueses, fervilhante na afirmação de desejos insaciados que é o seu cinema.
O primeiro, quiçá a curta-metragem mais famosa do mundo, é tido como obra precursora do cinema surrealista e deu a Buñuel, que filmava com o dinheiro da mãe, assim como a Dalí, com quem co-escreveu o argumento, entrada no panteão do movimento surrealista. Ora, é certo que ao recusar qualquer lógica causal entre as suas imagens, Dalí e Buñuel trouxeram ao cinema, com o “filme bomba”, como lhe chamaram, a dimensão psicanalítica, com particular preocupação pela descrição do sonho e de uma realidade por debaixo da realidade. No entanto, há mais. Há uma imagem que “cresceu”, se extrapolou desta divagação humorística e instintiva, dedicada contra o “cão andaluz”, Llorca, representante de antigos valores artísticos. Essa imagem foi a do olho a ser cortado por uma lâmina. Se este é plano de corte físico, literal, não é menos imagem de corte, ela mesma, ruptura com um olho preguiçoso. O corte é com um “once upon a time” apaziguador do título que antecede a cena. Mas é ainda, ou sobretudo, Buñuel a cortar o cinema em dois, apresentando-se.
Se Un Chien Andalou fez operar esse corte, fez também colar a Buñuel a expectativa do ser cineasta, e mais, a expectativa do que seria “o” cineasta surrealista. L’âge d’or que se lhe seguiu, segunda colaboração “surrealista” de Buñuel, esconde muitas histórias polémicas que o marcaram. Uma delas contava João Bénard da Costa que Dalí, quando regressou a Espanha após o retumbante sucesso de Un Chien Andalou, o pai lhe pôs as malas à porta e o expulsou de casa porque ele se preparava para expôr um quadro que dava pelo seguinte nome: “cuspo alegremente no cadáver de minha mãe”. Seja por causa desta irreverência levada ao extremo como tique surrealista, seja por mero choque de egos, desta vez a colaboração entre o pintor e o cineasta espanhol foi mais ténue, tendo só em casos excepcionais, Buñuel acatado as sugestões de Dali. L’âge D’or é um filme que, com as suas sequências narrativas bastante mais marcadas – a chegada da burguesia ante a recepção dos bandidos, o casal que quer consumar a sua relação amorosa e carnal, o jantar burguês e a orgia inspirada em Marquês de Sade – possui um outro tipo de vínculo ao movimento surrealista. Já não há a mera rejeição causal entre imagens mas a utilização do “método de paranóia crítica”, ou seja, a capacidade de ir ao subconsciente e o articular. Venha daqui ou doutro lado qualquer a mecânica narrativa de L’âge D’or, o certo é que nele, o que é surreal (o ataque ao sentimentalismo burguês com o pontapé no cego e no cãozinho, o sonho, o anti-clericalismo) é-o ainda mais buñueliano. Há em L’âge D’or uma urgência de viver, sobretudo no seu casal de “amantes impossíveis” que é, reconhecidamente, já, a preocupação pela defesa do instinto, da carne. Esse lado de luta à repressão sexual deu à história do surrealismo outra das suas imagens (sem que esta pertença propriamente ao núcleo das suas preocupações formais): Lya Lys a chupar o pé da estátua consumida de desejo sexual. Depois, surgiu como metáfora histórica o episódio que se seguiu à estreia do filme em Paris. Falo da destruição do estúdio 28 por uma multidão conservadora de direita que entre outras coisas não suportou que Buñuel tivesse colocado uma das personagens, em clara encarnação de Jesus Cristo, a sair da orgia final. E o curioso, ou melhor, a metáfora é que para que estas “imagens novas” pudessem percorrer o seu caminho, outras tiveram de ser sacrificadas – nesse ataque algumas das obras de Man Ray, Dalí, Max Ernst, Hans Arp expostas no estúdio foram destruídas para sempre.
Após um período de transformação no interior do movimento surrealista, Buñuel, desencantado com o artifício burguês vigente no mesmo resolve sair e logo a seguir filma Las Hurdes, documentário sobre esta região espanhola que nas vésperas da Guerra Civil era uma das mas pobres da Europa, com os seus habitantes a sobreviver em cenário de horror. Como documentário, ou “ensaio sobre geografia humana” como o narrador o descreve, Las Hurdes pouco parece ter a ver com as primeiras fases do surrealismo e antes com uma das suas etapas finais, caracterizada por uma maior preocupação com a acção societária. E a estratégia de Buñuel é no filme inverter os termos: o que é real, é-o tão escandalosamente, que parece precisamente… surreal, fora de mundo. Neste, outra imagem, entre várias, a derradeira imagem surrealista de Buñuel, sobressai: o plano das crianças sub-nutridas na escola de Aceitunilla. Imagem que viria a ganhar outro corpo, anos mais tarde, em Los Olvidados (1950).
O que provam estas três imagens que Buñuel “deu” ao surrealismo é que aquele encontrou neste um abrigo estético que lhe permitiu, filme a filme, fincar âncora no real. Surrealizar primeiro, alargando o espectro para comprimir depois, e ficar apenas com essa máquina fuziladora de valores burgueses, fervilhante na afirmação de desejos insaciados que é o seu cinema.
Excelente dissertação sobre um dos poucos cineastas que conseguiu, sempre, surpreender a cada novo filme!
ResponderEliminarParabéns pelo blog, já faz parte da minha lista de visitas obrigatórias.
Cumps cinéfilos.
obrigado
ResponderEliminarBuñuel é um dos meu cineastas de eleição. Sou músico e já musiquei o "Chien Andalou". Conheço-o de trás para a frente ;)
ResponderEliminarPS - só uma sugestão - não sei se é da minha resolução do monitor, mas tenho dificuldade em ler os teus textos - tens talvez o tamanho da letra demasiado pequeno...
É verdade. Aproveitei para mudar o lay out, thanks.
ResponderEliminar