domingo, 17 de julho de 2011

O Idiota


Não deixa de nos parecer irónico que numa semana em que estreia nas salas portuguesas filme tão despudoradamente impessoal e contemporâneo como é THE GIRLFRIEND EXPERIENCE, de Stephen Soderbergh, surja também filme tão despudoradamente pessoal e permeável, segunda obra do realizador italiano Gianni Di Gregorio, GIANNI E LE DONNE. Ambos de orçamento bastante contido, um com propósitos de manifesto de apocalipse jazzísitico do post-capitalismo e outro de intenções mais comezinhas: a mera catarse pessoal de um passado de juventude e de uma cidade, Roma, palco de inesquecíveis comédias que, sob a direcção de gente como Mario Moniccelli, Dini Risi ou Luigi Comencini fixaram na história a velha comédia à italiana.

Em 2008, um homem calmo, amabilíssimo e bem-disposto fez-se passar quase despercebido na avalanche de convidados do Festival de Cinema do Estoril. Gianni Di Gregorio, quase sessenta anos, apresentava na altura a sua primeira longa-metragem, PRANZO DE FERRAGOSTO, pequeno filme fetiche da crítica que depois teve direito a estreia comercial. Tratava-se de uma comédia breve feita no apartamento do realizador, quase sem meios, em que Gianni, dirigindo-se a si mesmo, à sua mãe e restantes amigas octagenárias, num mesmo movimento, pôs de pé um límpido alter ego de um homem que tudo faz pela sua mãe e que parece adiar os seus próprios caprichos em detrimento da satisfação dos dos outros, mas também soube captar um certo ambiente familiar, um certo realismo romano, dolente até à irritação, dos pequenos momentos de prazer e submissão que podem ser as refeições e convívio num feriado na plena Roma abrasadora de Agosto.

Esse sucesso que, diga-se, ultrapassava a operação de charme e simpatia do seu protagonista e que entrava, como se disse, em terrenos de homenagem à célebre commedia all' italiana, ditou a continuação das aventuras de Gianni. Três anos depois, em GIANNI E LE DONNE o tom de comédia auto-biográfica mantém-se, embora enegrecida, conservando também a condescendência de Gianni, que faz todos os caprichos da família, incluindo do namorado da filha. Um dos seus amigos diz-lhe que apesar do envelhecimento ele pode ainda arranjar tempo para o romance. Desta forma, Gianni passa a ficar progressivamente obcecado pelas presenças femininas que o rodeiam, sendo que, embora casado com uma mulher distante, a hipótese de arranjar uma amante mantém viva a esperança de não envelhecer tão rapidamente. Está obviamente criado o terreno fértil para uma comédia em que homens de idade conquistam beldades. Contudo, Gianni Di Gregorio continua a aproveitar o manancial do seu cinema para uma actividade de exorcismo dos seus demónios pessoais, sendo que numa incursão divertida sob o ocaso da figura do macho latino italiano (feita por alguém que está nos seus antípodas), há um movimento de finíssimo lamento melancólico sobre a velhice (Gianni é uma personagem positiva que bebe demasiado, por exemplo) que nos conquista e enternece apesar das visíveis debilidades dos mecanismos internos do seu cinema.

Sejamos claros. Os filmes de Gianni não possuem a mordacidade política de Nanni Moretti (que usa também a Trastevere como palco para o seu cinema; Di Gregorio nasceu aí), ou a infantilidade dramática de Roberto Begnini, ambos trilhando também a construção dos respectivos alter-egos na desoladora paisagem do cinema italiano contemporâneo. Trata-se de um cinema muito mais económico, no sentido da transparência ou da relação imediata entre Gianni realizador e Gianni personagem. Pouca coisa parece ficar por mostrar ou dizer, o que não quer dizer que essa ingenuidade pessoal, assacada a um sexagenário de apenas dois filmes (embora com carreira como argumentista, nomeadamente como escritor do premiado GOMORRA, de Matteo Garrone), não seja compensada por uma aguda capacidade de mostrar o ritmo do envelhecimento e dos motores do desejo. Como se não existisse, para além dos mecanismos narrativos, uma diferença entre viver a sua vida e retratá-la. De uma simplicidade assinalável, vertida em liberdade e justeza de tom, é fácil ver nos seus filmes obras curtas, incapazes de dizer mais do que aquilo que dizem. Ainda assim, poucos não foram os que, e com alguma razão, viram nesta humilde busca de uma virilidade em declínio, um passeio ácido pela Itália recém re-eroticizada pelas populares festas berlusconianas.

Admitindo que GIANNI E LE DONNE possa em certos momentos comportar-se como ilha nostálgica de um cinema que já foi, há nele uma importância humana que vai muito além da ternura e que se recusa, obstinadamente, a envelhecer.



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